REVISTA CASA D’ITALIA – Ano 03, nº29, 2022

Ano 03, nº29, 2022 – Edição Sociedade e Turismo – ISSN: 2764-0841

Editorial

“Escolhi chamar de ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza.”
Zygmunt Bauman

As mudanças sociais e a preservação da história se confundem e se entrelaçam nos tempos modernos. Com essa reflexão, a Revisa Casa D’Italia chega ao seu 29º volume onde trazemos desta vez assuntos a respeito do turismo enquanto um movimento de valorização das interfaces sociais, além de um propulsor para a economia e indústria cultural, especialmente em Minas Gerais, onde falaremos sobre educação patrimonial e turismo, a importância das praças como um espaço de convivência e lazer e sobre a nova rota turística Via Liberdade. Além disso, falaremos sobre assuntos que trazem discussões para pensarmos sobre a nossa sociedade e para ilustrar a capa deste volume todos os assuntos que a permeiam, contamos com a arte gráfica de Nívia Costa.

Convidamos a todos e todas a se juntarem a nós a pensar na nossa sociedade e no turismo como forma de dar luz às questões sócio-culturais, de maneira responsável e sustentável.

A Revista Casa D’Italia é uma realização da Duplo Estúdio de Criação, em parceria com a Casa D’Italia de Juiz de Fora. Essa iniciativa tem o apoio das empresas e associações Imo Experiência Turística, Curso de Língua e Cultura Italiana, Grupo de Dança Folclórica Italiana Tarantolato, Lectio Soluções Linguísticas e do Estúdio de Arte Ponto Três. Contamos ainda com o apoio de; Paola Frizero, Rafael Bertante, Thaiana Fernandes, Rafael Moreira, Cristina Njaim Coury, Patrícia Ferreira Moreno, Arlene Xavier Santos Costa, Louise Torga, Paulo Jose Monteiro de Barros, Vinícius Sartini e Ana Lewer, que, através da plataforma Apoia-se, nos incentivam mês a mês a continuar investindo na cultura e a trazer discussões a respeito da nossa sociedade.

Desejamos excelente leitura!

Turismo e Educação Ambiental no Parque Municipal de Juiz de Fora
Inácio Botto, Mariana de Araújo e Marcos Carvalho

Escrita Criativa
Yasmin Yung Costa Gomes

Roteiros para a liberdade
Raphaela Corrêa


O termo “adolescência” vem do latim adulescens ou adolescens – particípio passado do verbo adolescere, que significa crescer

Matéria introdutória de um tema muito intrigante e fascinante por se tratar do ser humano em uma de suas fases mais complexas, que é fundamental para a formação do homem e da mulher do futuro!

Adolescência e Adolescentes no mundo de ontem

Para falar de adolescência e adolescente, ser social, não precisamos adentrarmos disciplinas e explicações de linguagens difíceis, mas é importante que saibamos alguns pontos da necessidade de compreender todo o processo. Voltando um pouco no tempo para esse registro rápido e histórico-cultural, ocidente/ Brasil, começo com o período infantil até o período da adolescência, chegando inclusive ao adulto. No entanto, o conceito de adolescência para um período em particular da vida de um indivíduo, localizado entre a infância e a vida adulta, é recente na história da humanidade e, principalmente, do ocidente.

A criança tem o período da infância com fases básicas de fundamental importância para o desenvolvimento físico, intelectual e social. Contudo, essa criança sempre foi, é e será guiada pelos comandos dos pais/responsáveis, numa duração do nascimento à puberdade que se manifesta para meninos e meninas em idades próximas e até distantes, dependendo do desenvolvimento interior e de influências externas neste. A partir daí, com muita clareza, são visíveis os sinais biológicos da puberdade, normalmente dos “dez aos doze” anos, período de transição em que começam as transformações da criança, em que seu lado infantil começa a ficar para trás e em que adentram, ao mesmo tempo, todos os sinais e sintomas de mudanças para descobertas, sensações e vivências, com escolhas e amadurecimento que farão desse adolescente um indivíduo. Desenvolve-se o sujeito responsável por suas atitudes, seus comportamentos e suas consequências para ser então, depois de vivenciar e superar traumas da infância e adolescência, um adulto equilibrado. 

“Não existia divisão entre crianças e adolescentes até por volta dos anos 50. Quando eu estudei e comecei a atender, um Pediatra tratava de crianças de 0 anos a 18 anos de idade. Há muito pouco tempo instalou-se o período da Adolescência” Içami Tiba (livro Quem ama educa).

Para falarmos de adolescentes no mundo atual é fundamental saber o que é o ser adolescente e por que recebeu essa nomenclatura. Ao sabermos a origem e o significado do conceito, fica mais tranquilo entendermos, respeitarmos e nos atentarmos para o adolescente como ser social e para a importância do período da adolescência para todo e qualquer ser humano. Há uns 50 anos é que o pediatra deixou de ser o médico que trata dos adolescentes, de 12 a 18 anos. Não havia separação entre os períodos da infância e da adolescência, sendo que se passava direto da fase infantil para o período adulto. Contemporaneamente é que, entre ambos, passou a existir o período da adolescência, transitório entre os dois anteriormente citados. Além disso, por vezes crianças/adolescentes eram tratadas como crianças, outras vezes como adultos que ainda não eram, nem mesmo biologicamente falando.

Deles eram exigidos, na maioria dos casos, muitos por questões culturais e até mesmo de sobrevivência, a postura e o comportamento de adultos em almas ainda adolescentes. É sabido que adolescentes se casavam muito cedo e logo constituíam famílias grandes. Como assim? Eram considerados adultos com 15-16 anos. No Brasil, rapazes se casavam com 15-18 anos, e moças, a partir da menarca, pois assim já poderiam cumprir o papel da mulher, reprodutora, na sociedade. Porém, não estamos falando em mulheres e homens no período adulto, mas sim, em adolescentes num período de transição entre a infância e a vida adulta. Esta carga pesada da paternidade e da maternidade era compartilhada com seus filhos mais velhos, e esse era o hábito rotineiro: nas casas, sempre eram as filhas mais velhas que ajudavam a criar os irmãos. Hoje ainda temos casos assim, mas não são como antes e, atualmente, descabidos e inaceitáveis.

Adolescência e Adolescentes no mundo de hoje

Atualmente, a adolescência é um período de vida do ser de tal importância que existem estudos específicos em diversas áreas que se importam com o desenvolvimento da espécie humana e suas convivências com os que estão em seu entorno. Os focos são atitudes, comportamentos desse público-alvo e suas consequências para si e para a sociedade em que vivem. Especialistas em adolescência estudam o comportamento desse período, que é muito psicossomático, em adolescentes pelo mundo afora, e o interessante é que, por mais que consideremos o meio ambiente, que influencia diretamente, a adolescência é um período e os adolescentes são indivíduos com similaridades de sintomas biológicos e emocionais nos países que respeitam e compreendem esse período como uma escada para a vida adulta. Contudo, os pesquisadores reforçam que, apesar de a adolescência parecer um fenômeno universal, não é, pelo simples fato de que antropólogos constataram que as sociedades tribais não passam por esse período, porque o mundo adulto é alcançado por meio de rituais de passagem, ou rituais de iniciação.

Muitas coisas já mudaram e outras ainda precisam mudar com relação ao tratamento daquele ser humano, numa transição física e mental, dentro da sociedade, visto que gerações passadas viveram sob a tortura da ignorância. Em certa medida, as atuais ainda vivem, principalmente no Brasil, que é um país de terceiro mundo e onde há muita pobreza. Mas muito melhorou! E o que resultou toda essa melhoria foram trabalhos e pesquisas que confirmaram na prática as teorias de que o adolescente está no período chamado transitório da infância para a vida adulta. Esse período se inicia na puberdade, entre 10 e 12 anos, quando começam as chamadas biológicas, que correm cronologicamente e não param mesmo com interferências físicas e psicossomáticas. Segundo Içami Tiba, aí surgem as mudanças hormonais em uma quantidade desproporcional ao cérebro incompleto e imaturo. As mudanças hormonais começam a chegar e aquela criança já não existe. Têm início os conflitos internos e externos, e é nesse momento de “onipotência pubertária” que o adolescente busca sua identidade. Mas como fazê-lo? Até então os pais das crianças são toda a referência delas para tudo o que se refira ao quesito sobreviver; elas sempre foram conduzidas e ordenadas nas tarefas por seus responsáveis. Então os adolescentes, totalmente dependentes, querem ser donos de suas independências a partir do intelectual persona, serem indivíduos sujeitos de suas atitudes e comportamentos. Muitas vezes, porém, é difícil visualizar a responsabilidade que passa a assumir por suas consequências.

Conceitos de Adolescência em vários pontos de vistas por J. D. Nasio (livro Como Agir com um Adolescente Difícil, 2010)

– Do ponto de vista biológico: “A adolescência é sinônimo do advento do corpo maduro, sexuado, doravante capaz de procriar” (NASIO, 2010, p. 14)

– Do ponto de vista sociológico: O vocábulo “adolescência” cobre o período de transição entre a dependência infantil e a emancipação do jovem adulto. Segundo as culturas, esta fase intermediária pode ser muito curta — quando se limita a um ritual iniciático, que, em poucas horas, transforma uma criança grande em adultos — ou particularmente longa, como em nossa sociedade, em que os jovens conquistam sua autonomia muito tarde, levando-se em conta os estudos prolongados e o desemprego em massa, fatores que alimentam dependência material e afetiva em relação a família (NASIO, 2010, p. 14).

– Do ponto de vista psicanalítico: Tudo nele é contraste e contradição. Ele pode ser tanto agitado quanto indolente, eufórico, e taciturno, revoltado e conformista, intransigente e esclarecido; num certo momento, entusiasta e, bruscamente, apático e deprimido. Às vezes, é muito individualista e exibe orgulho desmedido, ou, ao contrário, não se ama, sente-se insignificante e desconfia de tudo. […] (NASIO, 2010, p.15).

São muitos os conceitos de adolescência e todos muito interessantes, mas, por termos um espaço definido, terei que otimizar o que está mais próximo de todos e é o que prevalece aqui no Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é considerado adolescente todo indivíduo entre 10 e 20 anos incompletos. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vigente no Brasil, considera adolescente todo indivíduo de 12 a 18 anos. Temos, nas fases características da adolescência, mutação biofísica e consequências psicossomáticas e psicossociais. Quando essas fases são passadas, mas não são vivenciadas e seus conflitos não são sublimados, não sendo resolvidos, começam os problemas de comportamento e, por vezes, o que hoje chamamos de “adolescência retardada”, com adultos agindo e se comportando como adolescentes mesmo que, biologicamente falando, já tenham passado essa fase e estejam prontos e formados. Em outras palavras, já são adultos biologicamente, mas não têm maturidade para o serem, por terem deixado lá trás traumas e feridas abertas, sem se curar, sublimar. Atualmente um adolescente retardado pode chegar à faixa etária de 30 anos para mais.

Por acaso já ouviu falar da especialidade Hebiatria? Muitos pais de adolescentes nunca ouviram falar, mas Hebiatria é como chamamos a parte da medicina que estuda e cuida dos adolescentes (também conhecida como Medicina do Adolescente). Os médicos especialistas em adolescência são hebiatras e atendem jovens a partir de 10 anos de idade.

Querendo sanar alguma dúvida sobre adolescência, através do contato da revista, disponibilizo-me a respondê-los.


Referências bibliográficas:

DESLANDES, Leslie Ceotto – A MÍDIA E O ADOLESCENTE – TCC – Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais

NASIO, JD – COMO AGIR COM UM ADOLESCENTE DIFICIL? Um livro para pais e profissionais

MOTTA, Débora – Texto Uma análise da adolescência ao longo da história – Página da FAPERJ – https://www.faperj.br 

ROLF, Muuss – Teorias da Adolescência

TIBA, Içami – ADOLESCENTES: QUEM AMA, EDUCA! – Formando cidadãos éticos


Leslie Ceotto

É Jornalista, especializou-se em Adolescência pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais; Com cursos vários em instituições respeitáveis: Terapeuta, Leitura Corporal, Produção Cultural, Contadora de histórias, Formação para Editora, Promotora Cultural Territorial da Estrada Real. LESLIE DESLANDES é sua assinatura de Escritora. Tem três livros solos 1 – Hinos de Vida (literalmente falando) – Publicação Independente – Dois prêmios; 2 – REFLEXÕES Uma História sem Fim… – Sangre Editora; 3 – Eu Sou LESLIE DESLANDES Minha caminhada poética – Será lançado breve pela Editora Baronesa. Coautora de vários livros e premiações de concursos que participou, dentre eles dois prêmios Italianos. Foi de 2018 a 2020 e de 2020 a 01/ 2022 a Primeira Vice-Presidente da Coordenadoria de Minas Gerais da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil. É membro Acadêmico de Academias nacionais e PT, FR, IT e participa em vários grupos culturais em todo o Brasil e da Comunidade Italiana de Minas Gerais (dupla cidadania).


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Entre imagens e fumacinhas

Quando me perguntam há quanto tempo eu desenho, sempre respondo “desde sempre”. E é verdade, desenho desde os dois, três anos, nunca parei, nunca perdi o interesse. E isso, somado ao incentivo e ao apoio da família, foi crucial para que hoje eu seja um artista profissional. Mas não só isso. Se desde muito cedo eu me interessei por desenho, a narrativa veio junto. As histórias em quadrinhos embalaram minha infância, minha adolescência e continuam hoje, na minha vida adulta, agora configuradas como profissão. A linguagem dos quadrinhos é algo que faz parte de mim.

Histórias em quadrinhos como uma linguagem existem há milênios, se levarmos em consideração que uma sequência deliberada de imagens que contam uma narrativa (com ou sem texto) já era um recurso empregado na arte do Egito Antigo, nos códices Maias e também na Coluna de Trajano, que fica em Roma (tive a oportunidade de visitá-la em 2015). Porém, os quadrinhos como forma de entretenimento popular, em publicações destinadas às massas, só começaram a realmente se desenvolver no fim do século 19. 


Coluna de Trajano – Foto: arquivo pessoal

Apesar das origens lendárias, os quadrinhos não eram pensados como forma de arte ou mesmo como produto na Antiguidade. Começaram a se tornar o que conhecemos hoje a partir de experiências narrativas de artistas plásticos como Rodolphe Töpffer e do desenvolvimento do design. Porém, só com a publicação em massa de HQs nos jornais e revistas é que podemos dizer que a linguagem se consolidou. E, apesar da “batalha” para definir quem “inventou” os quadrinhos modernos (os norte-americanos obviamente querem o título para si, citando a publicação de Yellow Kid, em 1896), quem realmente leva o título é o Brasil. Quer dizer, para ser específico, um italiano que viveu no Brasil.

Angelo Agostini nasceu em Vercelli em 1843, e veio para o Brasil com 16 anos. Foi o mais importante artista gráfico de seu tempo e trabalhou em diversas publicações importantes, jornais e revistas. Em 30 de janeiro de 1869, publicou o que seria considerada a primeira história em quadrinhos brasileira: As aventuras de Nhô Quim, na publicação A Vida Fluminense.

Angelo Agostini – Foto: coleção de Waldyr Cordovil Pires

O 30 de janeiro é comemorado hoje em dia como o Dia do Quadrinho Nacional (favor não confundir com Dia Nacional dos Quadrinhos, que não é a mesma coisa), em homenagem à publicação pioneira de Agostini no Brasil. Seu nome batiza, também, um troféu muito importante para a cena brasileira, organizado pela AQC (Associação dos Cartunistas e Quadrinistas) e entregue anualmente a autores e autoras através de voto popular. Tive a honra de ser premiado duas vezes como melhor desenhista, em 2015 e 2018.

Troféu Angelo Agostini de Melhor Desenhista em 2015 Foto: acervo pessoal

As histórias em quadrinhos no Brasil sempre viveram uma montanha-russa de situações: ora a produção era grande e as tiragens imensas, ora o mercado minguava e limitava-se à republicação de material estrangeiro (com a exceção perene da MSP de Maurício de Sousa). É evidente que crises políticas e econômicas prejudicaram as possibilidades dos quadrinhos no nosso país, especialmente se pensarmos que sempre foi considerada uma “arte menor” por ser produzida e vendida para grandes públicos, e ser relativamente “superficial e descartável”. Nem preciso dizer que isso é uma falácia, não é? Quadrinhos são uma linguagem tão poderosa quanto a literatura e o cinema, e, assim como essas vertentes da produção nacional, sofrem com a falta de incentivo, investimento e público, enquanto material internacional tem espaço garantido e receptividade boa entre o público.

Então, o que os quadrinhos têm de tão especial? Como disse, trata-se de uma linguagem. Então, podemos dizer que as HQs possuem recursos próprios, que são característicos e indissociáveis dessa linguagem. Quadrinhos são uma derivação das artes visuais por serem, em essência (também questionável), baseados em imagem. Mas as HQs evoluíram para muito além disso. Não são literatura, artes plásticas ou cinema. A associação de texto com as imagens, por exemplo, já existia na literatura, mas os recursos cada vez mais inventivos foram se distanciando do que era o senso comum: texto agora poderia não só descrever a cena, o que é muito redundante numa narrativa de HQ, mas também simbolizar as falas, efeitos sonoros e narrações. Um dos grandes recursos visuais dos quadrinhos é o balão de fala (e suas derivações, como o balão de pensamento). E é justamente o balão que batizou os quadrinhos italianos. 

Na Itália, as histórias em quadrinhos são conhecidas como fumetti, ou seja, fumacinhas. O nome veio da associação do balão de fala com o ar projetado pela voz, que foi batizado de fumetto. Vale dizer que diferentes culturas chamam as HQs de um jeito: no Japão, são conhecidas como mangá. Em inglês, comics. Portugal as chama de banda desenhada, e, na França e na Bélgica, é bande dessinée. No Brasil, o termo que mais pegou foi gibi. Dentro dos quadrinhos em geral, incluindo o fumetti, existem infinitas possibilidades de contar histórias, dos infantis aos policiais, do erótico à ficção científica. Arrisco dizer que, para cada gênero narrativo, a Itália nos presenteou com pelo menos um grande nome.

A produção intensa e invejável de quadrinhos na Itália é reconhecida mundialmente. É inquestionável a qualidade e relevância dos quadrinhos Disney produzidos por lá e republicados pelo mundo todo (inclusive no Brasil). Histórias de Mickey e companhia também foram produzidas no Brasil durante décadas, pela Editora Abril, mas, infelizmente, foram descontinuadas em 2018. A produção foi retomada pela editora Culturama no ano seguinte, porém, dessa vez, sem material produzido por autores brasileiros. Há dois anos, foi anunciada a produção de HQs inéditas de Zé Carioca por autores brasileiros. Nada mais justo para nosso papagaio malandro.

Outro grande monumento dos fumetti é a Sergio Bonelli Editore. Fundada em 1940 pelo próprio Sergio Bonelli, a editora produz quadrinhos seriados de temas diversos, sendo que, entre os mais conhecidos (inclusive por leitores brasileiros), estão faroeste, policial e mistério. Diversos autores e autoras se revezaram ao longo de décadas para contar histórias de personagens já icônicos como Tex, Mágico Vento, Julia Kendall, Ken Parker e Dylan Dog (meu favorito dentre os fumetti da Bonelli).

Sergio Bonelli lendo Tex (divulgação)

Dentre os autores mais relevantes na Itália atualmente está Zerocalcare (pseudônimo de Michele Rech), que produz histórias que misturam relatos do cotidiano, memórias de sua própria vivência e reportagens (um de seus trabalhos mais relevantes é Kobane Calling, em que relata sua experiência em meio à guerra da Síria). Publicada pela Bao, a obra de Zerocalcare tem um alcance enorme na Itália e, recentemente, começou a ser publicada no Brasil pela Editora Nemo, além de ter ganho uma adaptação em animação, intitulada Entrelinhas pontilhadas, disponível na Netflix. A já mencionada Bao figura entre as maiores editoras de quadrinhos atualmente na Itália, tendo inclusive publicado a adaptação de Dois Irmãos, livro de Milton Hatoum, pelos gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon.


Ilustração de Zerocalcare (divulgação)

É inegável que as HQs sempre foram fonte de inspiração para cinema, games, TV, brinquedos e tanto mais. É inegável também que, como linguagem, os quadrinhos não param de evoluir, com cada vez mais autores e autoras criando obras incríveis e expandindo as possibilidades narrativas. Mercados como o norte-americano e o japonês, para não mencionar o franco-belga e também o brasileiro, cada um a seu modo, continuam permitindo que contemos histórias diversas para entreter e intrigar os leitores do mundo todo. 

Quero deixar claro, também, apesar de esperar que não seja necessário: quadrinhos não são (apenas) entretenimento rápido e raso e/ou para crianças; é uma linguagem com gêneros, estilos, formatos, propostas infinitas — e com certeza existe uma HQ por aí que você vai amar. Se você não é leitor (talvez tenha deixado de ler gibis quando ainda era criança), deixa eu te avisar que a produção brasileira é colossal e maravilhosa, diversa em todos os sentidos. Mas é preciso buscar: as melhores HQs brasileiras não estão nas bancas de jornal, e sim nas livrarias, comic shops, lojas on-line e na internet. Vale muito apena uma pesquisa. Vai que você (re)descobre o amor por essa linguagem?

Sempre existe muito mais a dizer sobre quadrinhos, e meu amor pela linguagem precisa ser contido para que o texto não fique longo demais. Tenho orgulho de fazer parte de um universo tão vasto, e espero poder continuar contando minhas histórias por muito tempo.


Referências bibliográficas:

Sergio Bonelli Editore, no podcast Confins do Universo: https://universohq.com/podcast/confins-do-universo-028-raios-e-trovoes-hqs-bonelli/

A História do Quadrinho Brasileiro, no podcast Confins de Universo: https://universohq.com/podcast/confins-do-universo-122-a-historia-do-quadrinho-

Guia dos Quadrinhos, uma enciclopédia das publicações de HQ no Brasil: http://www.guiadosquadrinhos.com/


Mario Cau

É autor de quadrinhos, ilustrador, editor, professor e produtor de conteúdo; formado em Artes Visuais pela Uicamp. Entre seus trabalhos mais relevantes, estão as séries Pieces, Monstruário (com Lucas Oda) e Terapia (com Rob Gordon e Marina Kurcis), e a adaptação de Dom Casmurro (com Felipe Greco). Vencedor dos mais importantes prêmios brasileiros, como o HQMIX, Jabuti e Angelo Agostini, acredita nos quadrinhos como forma poderosa de comunicação, expressão e entretenimento.


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Biblioteca Mindlin: um patrimônio bibliográfico nacional

A Biblioteca Mindlin, apesar de ser uma das mais novas bibliotecas do campus da Universidade de São Paulo, com quase uma década de existência, tem uma origem de mais de 80 anos de história. Isso porque ela foi formada por José Mindlin, um bibliófilo de grande destaque nacional que, juntamente com a esposa, Guita Mindlin, pioneira em conservação e restauro de livros no Brasil, formou esse precioso acervo. 

Devido à generosidade deles e ao senso de responsabilidade em tornar à disposição um patrimônio de grande valor bibliográfico, histórico e cultural para todos os brasileiros, sua biblioteca particular foi doada à USP em meados de 2004.  Um prédio moderno no coração da cidade universitária foi construído e especialmente equipado para abrigar a coleção de obras raras e especiais e torná-la pública. Em 2013 aconteceu a inauguração e hoje ela é um órgão ligado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária, cuja missão é preservar,, dar acesso a conteúdos relacionados a estudos de assuntos brasileiros e promover sua disseminação por meio de programas e projetos específicos. 

José Mindlin, além de ter sido um amante do livro e da leitura, foi também advogado e empresário bem sucedido no Brasil. Desde adolescente nutria a paixão pelo livro e pelo colecionismo de obras raras e especiais. Por suas viagens, principalmente como empresário em diversos países, garimpava em sebos e livrarias verdadeiros tesouros da nossa história. E, por ser uma pessoa bem relacionada no meio literário e cultural do país, tendo amizade com importantes autores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Antonio Candido, entre outros, seu acervo é marcado pela presença deles através de dedicatórias e anotações que dão mais vida à coleção, além de muitas outras marcas de proveniência como ex-libris, selos de livraria, anexos como cartas e fotografias deixadas no livro, que deixam rastros de gostos e curiosidades dos que possuíam as obras e revelam a trajetória do exemplar. 

O acervo da biblioteca é principalmente composto por um expressivo conjunto de livros, folhetos, jornais e revistas, almanaques, além de documentos impressos e manuscritos, que totalizam, aproximadamente, 32.200 títulos reunidos em cerca de 60 mil volumes. A maioria desses volumes é rara e especial, razão pela qual a BBM não é uma biblioteca circulante. O nome “Brasiliana” se deve ao fato de que ela reúne exclusivamente obras escritas por autores brasileiros e/ou estrangeiros que tratem do Brasil e dos mais variados aspectos de todos os estudos brasileiros, sejam elas publicadas no Brasil ou em outros países, em forma manuscrita ou impressa. 

As grandes vertentes que compõe a Biblioteca Mindlin são a literatura brasileira, com destaque a primeiras edições publicadas; os relatos de viajantes desde século XVI; os livros e manuscritos históricos e literários; os periódicos; os livros científicos e didáticos; os livros de artistas (em geral com gravuras); e a iconografia (que inclui estampas e álbuns ilustrados). Dentro dessas vertentes, encontram-se obras de história, incluindo temas como escravidão, Guerra do Paraguai, província Cisplatina, Guerra de Canudos, maçonaria, jesuítas e outras ordens religiosas, imigração, questões de limites, entre outras. São obras que chamam a atenção por sua beleza gráfica, importância de conteúdo, manuscritas e impressas em papel ou pergaminho, ilustradas ou não, em pequenos e grandes formatos que encantam o público que as conhecem. 

Há também importantes obras com referência à Itália, com temas como: imigração italiana no Brasil; arquitetura; arte; inquisição; contos; além do famoso tipógrafo do século XV Aldo Manuzio, que inovou na arte da tipografia, no uso do itálico e no formato dos livros, ajudando a difundi-los para os leitores europeus da sua época1.

Nos últimos anos têm sido feitos esforços para institucionalização da BBM, com a construção de políticas e promoção do seu acervo por meio de editais de pesquisa, colóquios, seminários, exposições e projetos. Pesquisadores e alunos têm desenvolvido suas pesquisas tanto através da consulta ao acervo físico, quanto ao acervo digital (este último, inclusive, vem crescendo ainda mais em número de acessos). 

Esse crescimento do meio digital também se justifica pela questão da pandemia, que restringiu por quase dois anos o uso dos espaços públicos e privados e trouxe à tona os desafios das instituições de cada vez mais unirem esforços e criarem ferramentas, na medida do possível, para facilitar o acesso aos recursos informacionais por meio digital. Nesse sentido, a BBM busca desenvolver há algum tempo, em parceria com seus diversos setores (Coleção e Serviços, Laboratório de Conservação, Laboratório de Digitalização, Setor de Mediação Cultural e Setor de Publicações), conteúdos ricos e com ferramentas que possibilita a seus usuários informação em qualquer lugar e a qualquer tempo com os recursos da tecnologia. 

Convido a todos a conhecer e explorar alguns desses recursos e projetos que estão disponíveis gratuitamente: 

BBM-Digital 

Reúne obras digitalizadas do acervo físico da BBM, muitas com seleções de textos críticos, que estão em domínio público.

https://www.bbm.usp.br/pt-br/projetos-digitais-da-bbm/bbm-digital/

Projeto BBM no vestibular 

Disponibiliza aos vestibulandos textos introdutórios sobre as obras selecionadas para a Fuvest,, assim como vídeos-aulas ministradas por grandes especialistas. https://www.bbm.usp.br/pt-br/bbm-no-vestibular/ 

Atlas dos Viajantes 

Plataforma interativa que relaciona e divulga obras e iconografias de relatos de viagens dos séculos XVI ao XIX do acervo da BBM, servindo de apoio a pesquisadores e como material didático de professores e estudantes. 

https://viajantes.bbm.usp.br/

Exposição virtual

Uma menina centenária – 100 anos de Narizinho Arrebitado 

Apresenta, em imagens e textos, a trajetória do escritor Monteiro Lobato, o nascimento da personagem Narizinho e outras informações e curiosidades. 

http://ameninacentenaria.bbm.usp.br 

Publicações BBM 

Reúne publicações realizadas pela biblioteca de livros e da Revista BBM que podem ser acessadas integralmente para leitura e pesquisa. 

https://www.bbm.usp.br/pt-br/publica%C3%A7%C3%B5es-bbm

Bibliotecas históricas e patrimoniais são únicas no sentido de possuírem livros em seus acervos que contêm características que os tornam exclusivos tanto do ponto de vista do valor documental, como do valor de memória, pois carregam fragmentos da história no que diz respeito à trajetória da obra nas mãos dos que a possuíram até o contexto histórico no qual foi adquirida. Revelam a memória do país, sua identidade e valor. A Biblioteca Guita e José Mindlin, nesse sentido, possui obras de valor inestimável para a história e a memória de nosso país. E o nosso desejo é que cada vez mais as pessoas possam conhecer, valorizar e usufruir desse patrimônio. 

[1] Por meio do catálogo eletrônico <http://dedalus.usp.br/> pode-se obter informações a respeito dessas obras e outras do acervo da BBM/USP.


Referências bibliográficas:

GAUZ, V. O Livro Raro e Antigo como Patrimônio Bibliográfico: aportes históricos e interdisciplinares. Museologia &amp; Interdisciplinaridade, [S. l.], v. 4, n. 8, p. 71–87, 2015. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/16905. Acesso em: 15 fev. 2022. 

MINDLIN, José – Uma vida entre livros: reencontros com o tempo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997

MORAES, R. B. O bibliófilo aprendiz. 4. ed. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 2005. 

SATUÉ, Enric. Aldo Manuzio: editor, tipógrafo, livreiro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.


Jeanne B. Lopez

Formada no Curso de Biblioteconomia e Documentação da Escola de Comunicação e Artes – ECA/USP. Bibliotecária da Biblioteca Guita e José Mindlin, SP desde de novembro de 2011.


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Turismo e educação – desafios para os impactos positivos da formação em turismo no Brasil

Embora o termo Turismo esteja no dia a dia, este é um fenômeno complexo, que vai muito além dos sonhos, planejamento e realizações de “viagens de final de semana e/ou de férias”. O Turismo exige tratamento profissional e ético, com aquisição de competências (conhecimentos e habilidades) com origens multi e interdisciplinares. Portanto, alinhamentos entre teorias e práticas diversas são essenciais para propostas criativas e inovadoras, que contribuam tanto para o avanço do conhecimento científico sobre o Turismo, quanto para as atuações nas mais diversas atividades que compõem a cadeia produtiva na qual está engendrado. As reflexões sobre o histórico dos Cursos de Graduação em Turismo no Brasil oferecem pistas relevantes para se compreender os desafios e as oportunidades decorrentes do impacto da educação em Turismo neste alvorecer do século XXI.

Breve histórico dos cursos de graduação em turismo

Os primeiros cursos superiores de Turismo no Brasil remontam à década de 1970, e é nesse período que o termo turismólogo passa a designar o conjunto de profissionais da área do Turismo, com o objetivo de normatizar uma categoria de trabalhadores que não possuíam o reconhecimento de suas profissões1. Há de se considerar que, à época, havia no país uma política de estímulo à criação de cursos profissionalizantes, o que fez com que a maioria dos cursos de graduação em Turismo se iniciasse em instituições, beneficiando-se dos incentivos
governamentais, ao estimular cursos que tinham como eixo central o planejamento turístico, ao compreender o turismo como um agente de desenvolvimento nos anos de 1980. Esse aspecto ligado à operacionalização do turismo acabou por dar um menor espaço à reflexão humana e à possibilidade de estímulo de um espírito crítico junto aos discentes naquele momento.

Nos anos de 1990 e início dos anos 2000, há um crescimento significativo de graduações, sobretudo em instituições privadas, num contexto de abertura a novas modalidades de cursos, tal como consolidado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. Para se ter uma ideia mais precisa acerca do grau de crescimento de cursos na área de Turismo, Ramos et al. (2011) atestam que, em 2005, as graduações de turismo e afins chegaram a 697 cursos. Cenário diferente das décadas anteriores, já que Matias (2002) apontava 25 cursos de Turismo e/ou Hotelaria no final da década de 1980, passando para 60 cursos de Turismo em 1997 (RAMOS et al. 2011).

Aliás, na área do Turismo, esse aumento causou um efeito colateral relevante: fez com que se conformasse um excesso de oferta de cursos de graduação, com reflexos até os dias atuais. Dentre esses desdobramentos, pode-se citar a existência de um significativo contingente de turismólogos formados sem, entretanto, ter acesso ao mercado de trabalho no Turismo.

Aliás, um parêntese: essa situação de um contingente de turismólogos desempregados ainda parece ser uma realidade junto ao mercado de trabalho, algo que, segundo Pimentel e Paula (2014), pode ser atribuído a três fatores: i) descompasso entre os processos de formação do turismólogo e demandas do mercado; ii) um excesso de mão de obra com formação de nível superior para ocupar cargos intermediários e superiores, ao passo que há uma carência de profissionais de nível operacional; iii) diversidade da área de turismo, o que gera que atividades afins possam contar com profissionais com outras formações.

Observa-se que, a partir de 2008, após forte crescimento, começa a haver um declínio dos bacharelados de Turismo, chegando a 99 cursos em 2018 (BRASIL, 2019). Desse total, 47 cursos (47,5%) são de instituições públicas e 52 (52,5%) provêm de instituições privadas. Outro fator relevante para se pensar a distribuição e o oferecimento dos cursos de Turismo no país relaciona-se à distribuição geográfica desses. Dos 99 cursos superiores regulares, 41,4% do total nacional provinham da região Sudeste. Por sua vez, tanto as regiões Nordeste e Sul contavam com 21 cursos cada, correspondendo a 42,4% do total de cursos. (BRASIL, 2019).
Bom, feito essa síntese do panorama e da história dos cursos de graduação em Turismo no Brasil, eis que surge a questão: qual o impacto da educação no setor do turismo?

O impacto da educação em turismo na área: desafios e oportunidades

Uma análise das publicações científicas relativas a Cursos Superiores de Turismo, utilizando o suporte do software Iramuteq versão 0.7 Alpha 2, executada a partir do Portal Publicações de Turismo utilizando o termo “superior” e filtro “título”, alcançou 82 resultados, dos quais 36 foram validados – por apresentarem afinidade temática e resumo em português – e demonstram o que tem sido mais recorrente ao se tratar a temática em âmbito científico (vide Figura 1):


Nuvem de Palavras – Fonte: Elaboração própria utilizando Iramuteq versão 0.7 Alpha 2

É importante destacar, contextualmente, que esse Portal Publicações de Turismo, na data da consulta (08/08/2022), abarcava 50 periódicos iberoamericanos de Turismo com mais de 15 mil artigos indexados. Ainda, na Figura 1 ficou evidente que, sobre Cursos Superiores de Turismo, vários termos são muito representativos, tais como: “pesquisa” (n=54), “área” (n=38), “formação” (n=31), “profissional” (n=28), “egresso” (n=26), “mercado” (25), “educação” (n=21), entre outros, e são essenciais.

Diante desse cenário, o papel da educação para o Turismo é objeto de discussão não só da academia ou do mercado de trabalho, mas também de toda a sociedade. Ao que tudo indica, parece haver uma percepção mais ou menos generalizada de que os cursos de graduação em Turismo carecem ultrapassar uma formação genérica, introdutória e dispersa. Isso quer dizer que parece haver a necessidade de especialização mais específica em alguma das áreas do turismo, mediante competências específicas. E isso envolve uma revisão dos currículos dos cursos, de maneira a possibilitar outras habilidades, como: i) domínio avançado de idiomas; ii) manejo de softwares; iii) habilidade na produção de projetos interdisciplinares.

Outro ponto é referente ao quantitativo ainda reduzido de cursos de pós-graduação na área do Turismo no Brasil. Para ilustrar isso, a partir do primeiro semestre de 2022, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) fomentou, por meio do edital 09/22, a abertura de 156.120 novas vagas em cursos de graduação e especialização lato sensu das instituições públicas de ensino superior integrantes do Programa Universidade Aberta do Brasil (UAB). Apenas 8 propostas ligadas ao Turismo foram submetidas. Desse universo, uma foi indeferida (Especialização em Turismo e Hospitalidade) e, das sete propostas aprovadas, apenas 1 curso era de pós-graduação (lato sensu), o curso de Especialização em Gestão Pública de Turismo e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal de Juiz de Fora, oferecendo 150 vagas por entrada, isto é, 0,10% do total de vagas. Dos demais cursos, um se tratava de um bacharelado e cinco eram cursos tecnológicos (BRASIL, 2022).

Já no campo da pós-graduação stricto sensu, Rejowski, Ferro e Sogayar (2022) identificam a existência de seis doutorados em Turismo, Hospitalidade e Lazer no Brasil (Turismo e Hotelaria – UNIVALI; Turismo e Hospitalidade – UCS; Hospitalidade – UAM; Turismo – UFRN; Turismo – USP; Estudos do Lazer – UFMG), onze mestrados acadêmicos e três mestrados profissionais, aí excluídos os interinstitucionais.

Todavia, a despeito do panorama ligado à formação profissional em Turismo no Brasil, a inserção de profissionais de Turismo oriundos de instituições de ensino superior parece estar contribuindo sobretudo para as políticas públicas e as inovações (vide Quadro 1):

Fortalecimento de políticas públicas de TurismoSeja do ponto de vista municipal, seja nas esferas estaduais e nacional, visualiza-se a eclosão de diferentes iniciativas de governança do Turismo, muitas delas intimamente ligadas ao setor público. No caso de Minas Gerais, não só se visualiza certa permanência da Secretaria Estadual de Turismo no Estado, como também se tem o desenvolvimento de um conjunto de dispositivos capazes de contribuir para o fortalecimento das políticas da área: conselhos municipais de turismo, circuitos turísticos (Instâncias de Governança Regional – IGR) e legislação específica sobre o setor.

Desenvolvimento de inovações na área do Turismo

Através da educação, existe a possibilidade de formação de profissionais capazes de atuar na melhoria do oferecimento de bens e serviços, bem como o desenvolvimento de novos materiais, técnicas e tecnologias que busquem oferecer experiências turísticas compensadoras e melhoramentos à atuação de outros profissionais da área. Além disso, através da educação, pode-se aprimorar os processos de gestão com vistas a trazer mais fluidez na administração de instituições públicas ou privadas fazendo a inserção de diferentes ferramentas organizacionais. Outro ponto que merece destaque é a utilização de métodos e técnicas para posicionamento e reposicionamento no mercado de determinada oferta ou de produto turístico. Diante disso, a educação pode vir a ser uma ferramenta significativa para a formação de profissionais capazes de manejar
softwares
, novas tecnologias e produzirem projetos factíveis a partir das necessidades do mercado e da sociedade.

Quadro 1: Contribuições da Educação no Turismo para a área – Elaboração Própria

Breve reflexão final

Como se observa, a educação superior na área do Turismo apresenta desafios. Todavia, alguns desdobramentos já podem ser vistos junto ao setor público, ao setor privado e também ao terceiro setor. Para que avanços ocorram, parece haver a necessidade de uma mudança. Ela consiste em que os atores envolvidos na área do Turismo (poder público, comunidade acadêmica, sociedade civil e iniciativa privada) possam superar as diferenças e contribuir para uma melhor sinergia nas relações, de modo a reorganizar o quadro de trabalho dos turismólogos no Brasil, procurando compreender as singularidades e as dificuldades da área no país.


Referências bibliográficas:

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Relatório síntese de área: artes visuais (licenciatura). Brasília: Inep, 2019.

BRASIL. Lei nº 12.591, de 18 de janeiro de 2012. Reconhece a profissão de Turismólogo e disciplina seu exercício. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12591.htm. Acessado em 10 ago. 2022.

BRASIL. Chamada Para Articulação de Cursos Superiores na Modalidade Ead no âmbito do Programa Universidade Aberta Do Brasil – Uab Edital 9/2022 – Resultado Final. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/resultados-dos-editais/18052022_Edital_1710771_SEI_CAPES___1706694___Edital_9_2022.pdf . Acesso em: 08 ago. 2022.

IRAMUTEQ. Disponível em <http://www.iramuteq.org/>. Acesso em: 08 ago. 2022.

MATIAS, Marlene. Turismo: formação e profissionalização. São Paulo: Manole, 2002.

PIMENTEL, Thiago Duarte.; PAULA, Sara Conceição de. A inserção profissional no mercado de trabalho face às habilidades adquiridas na formação superior em turismo. Revista de Turismo Contemporâneo, [S. l.], v. 2, n. 1, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/turismocontemporaneo/article/view/5474. Acesso em: 08 ago. 2022.

PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. Política Municipal de Turismo. Disponível em: https://www.pjf.mg.gov.br/e_atos/e_atos_vis.php?id=97754. Acesso em 10 ago 2022.

PUBLICAÇÕES DE TURISMO. Disponível em <http://www.each.usp.br/turismo/publicacoesdeturismo/&gt; Acesso em 08 ago. 2022.

RAMOS, Maria da Graça Gomes; GARCIA, Tania Elisa Morales; HALLAL, Dalila Rosa; MÜLLER, Dalila. Ensino superior em turismo no Brasil: da expansão à diversificação. Tourism & Management Studies, Universidade do Algarve, Faro, Portugal, v.1, p. 777-786, 2011.

REJOWSKI, Mirian e FERRO, Rafael Cunha e SOGAYAR, Roberta. Pós-graduação em Turismo, Hospitalidade e Lazer no Brasil: da consolidação dos mestrados à emergência dos doutorados. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, v. 16, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.7784/rbtur.v16.2217. Acesso em: 08 ago. 2022.

VIEIRA, Rodrigo. Falta de mão de obra especializada afeta setores do Turismo. Disponível em: ttps://www.panrotas.com.br/gente/movimentacao/2022/07/falta-de-mao-de-obra-especializada-afeta-setores-do-turismo_190502.html. Acesso em: 07 ago. 2022.


Edwaldo dos Anjos

Professor do Departamento de Turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Coordenador do Curso de Especialização em Gestão Pública de Turismo e Desenvolvimento Regional. Líder do Grupo de Pesquisa e D’ELAZ – Educação e lazer (CNPQ/UFJF). E-mail: edwaldo.anjos@ufjf.br

Carla Fraga

Professora substituta do Departamento de Turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do Grupo de Pesquisa e D’ELAZ – Educação e lazer (CNPQ/UFJF). E-mail: romildaalopes@ufjf.br

Romilda Lopes

Professora do Departamento de Turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Vice – Coordenadora do Curso de Bacharelado em Turismo. Líder do Grupo de Pesquisa Transportes e Turismo – GPTT (CNPQ). E-mail: carlota.fraga@ufjf.br


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O papel das praças da cidade na vida do juiz-forano

Boa parte dos acontecimentos urbanos e dos encontros e reencontros acontecem nas praças da cidade. Sua importância vem desde a antiguidade, sediando grandes acontecimentos históricos, sendo palco de trocas de mercadorias e representando a dimensão cultural dos povos e das civilizações. Até os dias atuais, a praça ainda exerce seu papel fundamental para as cidades, sendo importante não somente para a organização espacial, atuando como marco visual, mas também influenciando na qualidade de vida e bem-estar da população.

O conceito de praça é abrangente, pois ela exerce diversas funções no cotidiano urbano, tanto no contexto social quanto físico. No seu aspecto funcional, as praças se apresentam como local propício para a realização das necessidades de ocupação do tempo livre, com oportunidade de prática de atividade física, de lazer, social e recreação. No campo ambiental, as praças acabam por se caracterizar como “respiro urbano”, dado ao fato de serem áreas não edificadas, auxiliando na ventilação e iluminação; quando ajardinadas, ajudam no controle da temperatura, promovendo áreas sombreadas para a população e auxiliam na drenagem das águas de chuva, por exemplo. Desta forma, auxiliam no enfrentamento dos impactos das mudanças climáticas, que se destaca como um grande desafio contemporâneo das cidades de uma maneira global.

A presença das praças no contexto urbano é importante, também, para a qualidade de vida da população, uma vez que promovem o uso para lazer e prática de atividades físicas, além da socialização, proporcionando bem-estar para seus usuários. Destaca-se ainda que, recentemente, no período da pandemia de COVID 19, as praças tornaram-se elementos estratégicos, sendo reconhecidas como equipamentos saudáveis para a população urbana.

Entendemos como praças espaços livres de edificação, públicos e urbanos, destinados ao lazer e ao convívio da população, acessíveis aos cidadãos e livres de veículos, definição dada por autores da área. Sendo assim, a cidade de Juiz de Fora apresenta um total de 95 praças, onde não são consideradas organizadores de trânsito, espaços cercados com acesso público restrito, não apropriados para se estar, lotes abandonados, largos, pertencentes a distritos. Esse valor representa 1 praça a cada 6.000 habitantes, número considerado pequeno.

Nós conseguimos classificar as 95 praças avaliadas de acordo com o tamanho. Neste sentido, 75% são de pequeno porte, com área menor que 4.000m², sendo que quase metade dessas são menores que 1.800m² (+- 25% da área de um campo), as maiores possuem em média 11.000m², como por exemplo a Praça CEU, o Parque Halfeld, a Praça de Esportes Dejair Dias Ferreira (Linhares) e a Praça Presidente Antônio Carlos.

Um dado extremamente importante é que o porte das praças é considerado pequeno, o que dificulta a disponibilidade de áreas maiores de esporte como, por exemplo, quadras cobertas e descobertas. Com relação aos playgrounds, apenas 60% das praças avaliadas possuem este equipamento,e apenas 40% da população reside a 400 m de praças que possuem playground. Esta distância de 400 m é considerada ideal para que os residentes se desloquem a estes espaços, correspondendo a 5 minutos de caminhada.

A presença de pessoas nos espaços públicos é um fator importante que proporciona vitalidade e segurança a estes ambientes. William Whyte, autor relevante do urbanismo internacional, destaca a importância da presença de “grupos de pessoas” na praça, pois demarca que a praça se configura como um espaço de destino escolhido por esse grupo de pessoas, ou seja, devido às suas qualidades específicas, diferente das praças que se configuram apenas como espaços de passagem, sem maiores atrativos.

A variedade das áreas de atividade proporciona um uso múltiplo, agregando cada vez mais usuários e possibilitando variados tipos de uso, como, por exemplo, a prática de atividade física vigorosa proporcionada por espaços de esporte como quadras e pistas de caminhada, agregando cada vez mais usuários. O uso destes espaços contribui de diversas formas para a saúde, pois influencia a saúde física, mental e as relações sociais daqueles que utilizam estes espaços. Além disso, outro fator importante para a utilização destes espaços é a qualidade e manutenção. Quando bem conservadas, acabam incentivando o uso e, assim, promovem a saúde da população, pois facilitam a atividade física recreativa.

Outra autora da área, Jane Jacobs, acredita que tais espaços devem ser cercados pelos “olhos das ruas”, ou seja, com portas e janelas voltadas para a praça e possuem entorno com uso variado, mesclando residencial, comercial e institucional. E destaca que “os parques de bairro bem-sucedidos raramente têm a concorrência de outras áreas livres” (JACOBS, 1961, p. 111)

Neste sentido, com relação ao entorno destes espaços, Jane Jacobs (1961) defende que o sucesso dos “parques de bairro” está relacionado a um entorno de uso variado, ou seja, à presença de uma mescla de espaços comerciais e espaços residenciais. Para a autora, tal fato promove uma variedade de usuários que utilizam o parque em horários distintos, gerando um movimento contínuo. Contudo, em Juiz de Fora, o entorno das praças avaliadas a partir do térreo dos lotes foi caracterizado como predominantemente residencial, pois somando-se os usos residencial unifamiliar e multifamiliar, somam-se 64,1% dos lotes.

Assim como Jacobs, Kevin Lynch defende a diversidade de uso, de funções ao redor das praças. Em sua obra “A boa forma da cidade”, o autor define que uma boa praça deve ter por hábito, ou disposição intencional, usos sobrepostos, seja como terminal rodoviário, mercado de legumes, parque infantil e local de reunião para os adultos. Desta forma, os horários das atividades podem ser manipulados de maneira a compartimentar o comportamento no tempo. Ou seja, tendo movimentação ao longo do dia todo.

A praça é presença cotidiana, é parte do tráfego, do trânsito, da saúde e do esporte. Juiz de Fora tem história marcada em diversos destes espaços. Sua importância, em todos os âmbitos, revela a necessidade de políticas públicas para manutenção, conservação e implementação de novas praças, com o crescimento da cidade e dos empreendimentos.


Referências bibliográficas:

WHYTE, W. H. The social life of small urban spaces. Washington, D.C: 1980. 125 p.

GEHL; JAN. Cidade Para Pessoas. São Paulo: Perspectiva 2013.

JACOBS, J. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ROBBA, Fábio; MACEDO, Silvio Soares. As Praças Brasileiras. São Paulo: Emesp, 2002.

MACEDO, Silvio Soares. Espaços Livres. Paisagem Ambiente Ensaios. São Paulo, n. 7 p. 15 – 56 jun. 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/paam/article/view/133811/129684 Acesso em: 28 agosto 2018

QUEIROGA, Eugênio Fernandes. Sistemas de espaços livres e esfera pública em metrópoles brasileiras. RESGATE – vol. XIX, N0 21 – jan. /jun. 2011 – p. 25-35.


Silvia Senra

Autora do livro Praças de Juiz de Fora, é mestra em Ambiente Construído pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É membro do núcleo de pesquisa VIRTUS.Lab e tem trabalhado em projetos de pesquisa que investigam o espaço livre público urbano a partir de estudos que envolvem saúde e qualidade de vida. É sócia proprietária do escritório Silvia Senra arquitetura, onde atua no desenvolvimento de projetos de arquitetura de loteamentos, residencial, comercial e interiores.

Eduarda Beraldo

Autora do livro Praças de Juiz de Fora, é mestra em Ambiente Construído pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É membro do núcleo de pesquisa VIRTUS.Lab e tem trabalhado em projetos de pesquisa que investigam o espaço livre público urbano a partir de estudos que envolvem saúde e qualidade de vida. É sócia proprietária da Ligne arquitetura e Interiores, onde atua no desenvolvimento de projetos de arquitetura residencial e interiores.


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Sobre casas e suas ruínas: Na casa dos sonhos, de Carmen Maria Machado

As metáforas sobre a escrita e sobre o modo como as escritoras e escritores a criam e produzem me são irresistíveis. A escrita como arquitetura e construção, a escrita como costura, a escrita como caminhar e como travessia. Ou então, como a escrita ensaística, por exemplo, como cavar fundo, montar um quebra-cabeça com diferentes peças, ligar os pontos. Metáforas que me tomaram durante a leitura de Na casa dos sonhos, de Carmen Maria Machado — que se refere à feitura do livro, seu jeito de mergulhar e escrever sua história, como tendo sido um ato de “emendar uma ideia na outra”.

Nessa tentativa, fazendo um experimento de costurar memórias, vivências, reflexões sobre filmes e séries da cultura pop, de pesquisas e de leituras, Carmen conta sobre um relacionamento abusivo que viveu com uma mulher. O cenário habitado por aquele casal — intensamente apaixonado, cheio de desejo, planos e vontade de escrever histórias —, denominado como Casa dos Sonhos, parecia estar cercado contra as opressões heterossexistas e violentas, mas aos poucos vai se desmanchando no decorrer dos dias.

Carmen desconstrói a Casa dos Sonhos, tijolo por tijolo, pedaço por pedaço, a cada cômodo, cada capítulo. No entanto, para esse ato de desconstrução, precisa reconstituir tanto as cenas que a ergueram quanto as de seu desmoronamento, para então, ver e entender através das ruínas, dos fantasmas, o que fora uma fantasia.

Em suas reflexões, também destrói a ideia de que os relacionamentos homossexuais são sempre respeitosos e sem casos de abusos e violência. Como ela conta, uma história construída pela comunidade LGBTQIA+ para se defender contra os ataques e a homofobia. Porém, esconder a sujeira para debaixo do tapete, ou as marcas roxas na pele com corretivo, não deixa o vale mais colorido, não o fortalece.

Antes disso, em seu capítulo inicial, “Casa dos sonhos como prólogo”, declara sua escrita uma investida contra o apagamento dos arquivos, das histórias e, principalmente, das experiências queer. “Decidir o que entra ou fica de fora do arquivo é um ato político, ditado pela arquivista e pelo contexto político no qual ela vive”. A decisão, como sabemos, sempre foi tomada a partir de moldes heteronormativos. Pois, o outro, o diferente, não se encaixa nas narrativas. Ou  mesmo suas partes desagradáveis.

Ler Carmen Maria Machado me levou a outros lugares, e emendou pensamentos trazidos pelo livro a outros. Me recordei de A dançarina (La Danseuse, 2016), filme sobre Loie Fuller, a dançarina francesa criadora da serpentine dancer e encantadora figura presente nos curtas do primeiro cinema. No filme, a artista, uma mulher lésbica, é representada como uma mulher heterossexual.

No artigo “Crônica da lesbofobia ordinária”, Aude Fonvieille critica a escolha da diretora do filme, que se acoberta através de uma dita “liberdade artística” de criação, por invisibilizar a homossexualidade de Loie como algo desonesto e desonroso à sua memória.

A invisibilidade lésbica, o apagamento de suas vivências e narrativas, assim como de mulheres, negros e travestis na literatura, cinema e demais artes, é algo violento. Ao ocultar suas existências, seus direitos, tiram sua humanidade e suas complexidades. Não há história de horror mais assustadora do que um mundo branco, masculino e hétero — o mundo como conhecemos. Nada mais aterrorizante do que esconder as histórias.


Fernanda Castilho

Formada em Jornalismo e estudante de Letras. Foi bolsista de comunicação do Cineclube Lumière e Cia, Cine-Theatro Central e Coral da UFJF. Ama fotografia, os livros, os filmes, as músicas, as ruas e as janelas da cidade.


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Cuidado ancestral entre mulheres no partejar

A potência feminina se revelou de forma prematura para mim. E para muitas outras pessoas, tenho certeza. Fui parida – em uma cesárea – e criada por uma mãe solo que se ancorava em outra mulher como única rede de apoio. Ambas dividiam o cuidado uma com a outra, com o mundo e comigo.

Mulheres que servem mulheres.

Dentro do universo de cuidado entre mulheres, nasce a doulagem. Doula é um termo de origem grega que significa “mulher que serve”. Mulheres que servem e cuidam de outras mulheres no período gestacional, parto e pós-parto com apoio físico, espiritual, emocional e informativo, independente do tipo de parto. Sempre digo que, quando acompanho um trabalho de parto, não sou eu ali. Quem será? Meu cuidado é ancestral e se torna uma entidade que percorre minhas mãos e minhas palavras feito uma seiva.

Nesse mesmo lugar de zelo e cura, as parteiras tradicionais fazem presença.

O ato de partejar foi e ainda é importante em algumas regiões que enfrentam dificuldades financeiras e de acesso à saúde, contribuindo em vários âmbitos na vida da gestante, desde o processo de gestação, até o parto e pós-parto. O parto e nascimento domiciliar, assistidos por parteiras tradicionais, ainda é muito comum, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, sobretudo nas áreas rurais, ribeirinhas e em populações tradicionais quilombolas e indígenas. As parteiras, em grande maioria, aprenderam o partejar com mulheres mais velhas. Sabedoria e conhecimentos práticos transmitidos de forma natural.

Essas mulheres, parteiras e doulas, representam a primeira linha de cuidado para muitas gestantes e puérperas.


Anna sendo gestada por Natália Marcato, doulada por mi m e envolvida por nossas mãosFoto de Thiago Britto

Rio de passagem

O parto é rio de passagem que deságua. Rito. Lugar de transporte. Dor ao alívio. Andarilho que caminha ao encontro do desconhecido. Mistério.

No artigo “Gestação, Parto e Pós-parto entre os Munduruku do Amazonas: confrontos e articulações entre o modelo médico hegemônico e as práticas indígenas de autoatenção”, Raquel Dias-Scopel compartilha que, do ponto de vista Munduruku, o parto é um produto das relações sociais cotidianas e cosmológicas efetivadas durante a gestação e não somente um evento de ordem fisiológica e individual centrado na biologia do corpo feminino, ditada pela ideologia biomédica do modelo de saúde hegemônico.

O portal Geledés compartilhou uma fala de Suelly Carvalho, parteira tradicional que atua no nordeste brasileiro: “O parto tradicional, herança ancestral, permite a interação social, conta a história de um povo; reforça suas crenças, expõe suas emoções, define suas relações sociais e reafirma a identidade sociocultural coletiva; este sistema de pertinências e significados se manifesta no parto. Assim o modo como se nasce, o local onde se nasce, a prática na forma de dar à luz e nascer e quem atende o parto é tão importante quanto o próprio ato de nascer, passando a integrar a memória sociocultural de uma família e de uma comunidade”.

Naoli Vinaver, parteira mexicana que combina a sabedoria tradicional mexicana da parteria com o conhecimento baseado em evidências científicas contemporâneas, diz que o parto humanizado deve ser sentido pelo coração. Dessa forma, a mulher que for escolhida pela gestante para acompanhá-la durante esse processo carrega sabedoria para fortalecer a estrada, cuidar do caminho e conectar o sentir. De coração.


Referências bibliográficas:

https://apublica.org/2019/07/para-as-parteiras-indigenas-da-amazonia-o-parto-natural-e-um-ato-comunitario/

https://www.geledes.org.br/arte-de-partejar-o-legado-das-parteiras-tradicionais-como-heranca-ancestral-e-os-impactos-para-saude-das-mulheres/

https://periodicos.claec.org/index.php/relacult/article/view/1099/1069

SCOPEL, Raquel. Gestação, Parto e Pós-parto entre os Munduruku do Amazonas: confrontos e articulações entre o modelo médico hegemônico e as práticas indígenas de autoatenção. 2017.

https://www.naolivinaver.com/arte-do-parto-online.html

https://apublica.org/2019/07/para-as-parteiras-indigenas-da-amazonia-o-parto-natural-e-um-ato-comunitario/


Ariadne Bedim Rezende

Doula, jornalista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, redatora e encantada pelos encantados.


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Turismo e Educação Ambiental no Parque Municipal de Juiz de Fora

Por suas características físicas e sociais, os parques são locais apropriados para a prática de atividade física ao ar livre e lazer; as atividades que são desenvolvidas nesses locais trazem diferentes benefícios psicológicos, sociais e físicos à saúde dos visitantes.

Além disso, pesquisas científicas demonstram que frequentar ambientes naturais alivia o estresse da rotina diária, afastando a possibilidade até mesmo do desenvolvimento de doenças como depressão e ansiedade, ou seja, estar em meio à natureza diminui o estresse e melhora a qualidade de vida.

O Parque Municipal foi inaugurado no dia 12 de outubro de 2021 e, em quase dez meses de funcionamento, já alcançou a expressiva marca de 72 mil visitantes. O espaço oferece uma estrutura única em Juiz de Fora, com campos de futebol, parquinho, churrasqueiras, quadras poliesportivas, ambientes arborizados e lagos. Também são oferecidos à população projetos esportivos para todas as idades e que podem ser acessados por meio do seguinte link: (https://linktr.ee/parquemunicipaljf).

Além de utilizar os espaços e equipamentos do Parque Municipal, os frequentadores podem participar das visitas guiadas. Desenvolvidos pela equipe de Turismo e Eventos, os passeios realizados pelos monitores de turismo, em pouco mais de quatro meses, se tornaram uma das principais atrações do Parque.

Mais de 4 mil pessoas já participaram e puderam aproveitar os roteiros disponíveis: “Caminhos da Mata”, com passeio pela trilha do Parque, na área do estacionamento; “Caminhos do Parque”, onde o interior do Parque é explorado; e “Caminhos do Bosque”, em que os visitantes têm a experiência de conhecer um lugar cercado pela Mata Atlântica, rica em fauna e flora.

As visitas guiadas têm como objetivo proporcionar momentos de lazer e contato com a natureza; apresentar o Parque Municipal e suas dependências através da mediação feita pelos monitores de turismo; sensibilizar, por meio da fauna e flora do parque, a necessidade de preservação do meio ambiente.

Em agosto, oferecemos uma nova modalidade: As Visitas Temáticas. Foram escolhidos quatro temas que se relacionam com o parque: saúde, família, patrimônio cultural e folclore.

Destaca-se também a Oficina Aprender com a Natureza que, em quatro edições, contou com a participação de mais de 70 crianças. Foram trabalhados temas relacionados à questão ambiental, por meio de brincadeiras e atividades lúdicas e culturais, utilizando a natureza como “matéria – prima” para a confecção das artes elaboradas pelas crianças.

Mas como mediar os conhecimentos ambientais, culturais por meio da ludicidade? É simples: por meio da mediação levamos crianças, jovens, adultos e idosos a refletirem sobre os problemas do cotidiano, como mudanças climáticas, desmatamento, queimadas, reciclagem e poluição dos rios.

As atividades lúdicas e interpretativas envolvidas na Educação Ambiental no Parque Municipal despertam a atenção do visitante para questões, por exemplo, como a ideia de que a natureza é um recurso inesgotável (NÃO É!) e como as nossas ações individuais e coletivas influenciam o meio ambiente.

Nesse bojo, percebemos a relevância do turismólogo em nossa sociedade, por ser capaz de planejar, organizar, dirigir, controlar, gerir e operacionalizar atividades ligadas ao turismo,I contribuindo, assim, para o desenvolvimento local mais consciente, promovendo e preservando a cultura local, as tradições e também o meio ambiente.

Ficou interessado em visitar o Parque Municipal? Agende uma visita guiada conosco. Para grupos é necessário ligar para o telefone (32) 3690-3655 ou pelo e-mail parquemunicipaljf@gmail.com. As visitas são feitas de terça à sexta-feira, em dois horários: às 8h e às 14h. Nos finais de semana, às 11h e às 15h, sem necessidade de agendamento, com encontro na praça central do Parque.

O Parque Municipal está localizado na Rua do Contorno 8, no bairro Nova Califórnia, e funciona das 8h às 17h, permitindo a entrada de visitantes até às 16h). Para quem precisa do transporte público, as linhas que atendem o Parque são 520 (Aeroporto), 531 (Nova Califórnia) e 537 (Jardim da Serra). No letreiro está escrito “Via Parque Municipal”.


Referências bibliográficas:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Legislação sobre Patrimônio Cultural do Brasil. 

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA.UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio. Disponível em: https://fdr.org.br/mediadoresdeeducacaoparapatrimonio/. Acesso em: 01/07/2022.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Disponível em:  http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218. Acesso em: 28/07/2022.


Inácio Botto

Mestrando em Turismo pela Universidade Federal Fluminense. Bacharel em Turismo com ênfase em Patrimônio e Gestão de Destinos Turísticos pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Guia e Turismo (MTUR).

Mariana de Araújo

Turismóloga formada pela UFJF e atualmente Técnica de Turismo do Parque Municipal.

Marcos Carvalho

Graduado em Turismo – UFJF – MG. Técnico em Turismo – Parque Municipal de Juiz de Fora.


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Escrita Criativa

Antes de mergulhar em um tema tão diverso como a escrita criativa, gostaria de tecer algumas reflexões que realizei acerca da maneira como interpreto a escrita e suas muitas ramificações, especificações, formatos e gêneros. Primeiro, acredito que a escrita é parte da vida de toda a sociedade, em diferentes âmbitos. Tudo perpassa a escrita, desde a própria linguagem e a fala, os livros, a internet e as redes sociais, e até mesmo coisas mais simples como listas de mercado e receitas culinárias. Somos seres que vivem a escrita, seja consciente ou inconscientemente, mas poucas vezes lhe damos a devida importância e protagonismo.

Uma outra consideração que faço sobre a escrita é acerca do termo “escrita criativa”. Na minha visão, toda escrita é criativa, uma vez que mesmo para escrever um simples bilhete com os dizeres “Fui à padaria. Volto logo.” é necessário pensar e exercitar a linguagem para adequá-la ao contexto e necessidades das pessoas envolvidas no processo comunicativo. Óbvio que não acredito que copiar dizeres ou resumos da internet seja escrita criativa, mas até para adaptar uma cópia para nossas próprias palavras, é necessário criatividade.

Dito isso, acho importante destacar a maneira como a escrita se tornou tão presente na minha vida. Aprendi a ler com aproximadamente 4 anos, e sempre fui muito incentivada pela minha avó, que lia os livros didáticos da escola comigo para me ajudar a estudar. Minha mãe tinha um diário com longos textos preenchendo páginas, meu bisavô escrevia canções e poemas belíssimos, minha avó não ficava atrás, e minha bisavó era uma assídua fazedora de palavras cruzadas. Com isso, aos 6 anos já era aspiradora a poeta, fazendo versinhos nas cartas e bilhetes que escrevia nos aniversários dos meus parentes e outras datas comemorativas, aos 10 já competia com minha bisa para finalizar suas palavras cruzadas e, nesse mesmo período, lia os dicionários da língua portuguesa para aprender “palavras difíceis”.

Posso dizer com orgulho que tive sempre muito incentivo dentro de casa no que diz respeito à leitura, arte e cultura no geral, mas foi durante a adolescência, em meio aos conflitos típicos que esse período traz, e mais alguns conflitos adicionais, como o fato de minha mãe ter sido vítima de violência doméstica quando eu tinha 14 anos, e os desdobramentos do meu longo relacionamento com os transtornos alimentares entre os 12 e 16 anos, que eu me encontrei na escrita. Mergulhada em todas essas questões somadas à pressão dos estudos, eu senti que precisava de um meio de extravasar o que eu sentia, todos aqueles pensamentos que borbulhavam em milhares de palavras que eu não conseguia dizer.

Assim, voltei a regar a pequena poeta que havia adormecida em mim, porém sempre em particular, como se o mundo não pudesse vê-la ou tudo daria errado. As palavras que antes enchiam a minha cabeça, agora se derramavam sobre as páginas junto a uma imensidão de sentimentos, reflexões, observações e impressões que eu fazia sobre diversos assuntos e acontecimentos sem um tema ou critério fixo: escrevia sobre o que me desse na telha. Acredito que toda pessoa que se dispõe a escrever sobre a vida e seus pormenores, acaba se tornando uma grande observadora, ou pelo menos passa a reparar muito mais nas miudezas que a cercam.

Já escrevi poemas inteiros inspirados por uma simples xícara de café, em estranhos que vi e ouvi pelas ruas e até mesmo na própria vastidão das ruas. Me considero um tipo de poeta urbana, se é que isso existe de fato. Gosto de me aventurar nos mistérios que permeiam os arredores, as vielas, as esquinas e as encruzilhadas, as vidas cruzadas das pessoas e os mundos particulares que se misturam na dança do cotidiano. A cidade sempre me trouxe um “quê” de musa inspiradora, cigana ardilosa e mulher livre. Acho que me identifico com ela de alguma forma.

Aos dezenove anos decidi que era hora de parar de me esconder do mundo. Criei a coragem que um dia ocorreu a todos os poetas e despi minha alma ao mundo, baixando a minha guarda espalhando meus versos íntimos e vulneráveis para quem os quisesse ouvir. A coragem do poeta é algo certamente inspirador. Ao publicar o vil, o romântico, quase servil, o trauma, a dor, o medo, os anseios, o erótico, o proibido, o cruel, mordaz e feio, o poeta mostra do que é feito por dentro, em um mundo onde todos utilizam das mais diversas armaduras para se esconder.

Não me considero uma grande poeta, mas acredito que nenhum dos grandes poetas algum dia chegaram a cogitar o tamanho de seu legado. Eu sou só mais uma pessoa no mundo, que gosta de observar as coisas e que tem um senso de imaginação aguçado, além de um jeito especial com as palavras. Acredito que a vida de quem se dedica a sentir com tanta devoção é certamente uma montanha russa emocional, uma vez que a alegria e inspiração do artista são capazes de mover o mundo, ao mesmo passo que sua tristeza, desolação e desamparo têm a força de naufragar a humanidade sem pestanejar.

É preciso um certo equilíbrio, talvez, para escrever e expressar os sentimentos mais vis e dolorosos sem deixar que eles corrompam o seu íntimo, de forma a externá-los e não internalizá-los. Não sei ao certo se possuo tal equilíbrio, ou se qualquer outro poeta já o possuiu, talvez seja apenas uma idealização da minha cabeça. De certa forma, é uma tarefa muito difícil, especialmente no que diz respeito aos poetas, separar a obra do artista ou o artista da obra, porque no caso da prosa e da poesia, creio que a obra é o artista e vice versa.

O poeta é indissociável de sua obra, uma vez que a poesia é algo que nasce das dores, impressões e da vivência humana; é impossível escrever um texto sem deixar nele a sua opinião, sentimentos, crenças ou qualquer marca pessoal. Para mim, seria mais fácil tirar a roupa em público do que deixar que alguém lesse meus textos mais íntimos sem permissão, porque neles estão escancaradas as portas do meu interior, talvez eles digam mais sobre mim do que eu jamais serei capaz de demonstrar. É aí que mora a beleza e a coragem que se escondem na vulnerabilidade dos poetas.

Ser poeta é estar sempre imerso, sempre atento e, acima de tudo, sempre receptivo. As ideias e sentimentos borbulham, e você precisa saber como lidar com isso. Veja bem, uma vez acordei às 3h50 da manhã para beber água e quando me deitei novamente, simplesmente pipocaram ideias em mim, e não tive outra opção senão me levantar, colocar essas ideias no papel e somente depois de me sentir satisfeita, voltar a dormir. Essas coisas são comuns para mim e muitos outros que se dispõem a escrever. Tudo pode ser o combustível de uma nova composição, até mesmo a frustração em não conseguir concebê-la. Quantos textos magníficos já li sobre bloqueio criativo, que eram na verdade desabafos de pessoas imersas no ciclo vicioso de encarar o papel por horas, sem respostas.

Algo que me fascina nos poetas é a maneira como eles são capazes de, em suas palavras, ecoar as vozes de tantos outros seres, outros lugares, pessoas e realidades. Quem nunca se emocionou ou se sentiu reflexivo, até perturbado, após ler um texto específico? A beleza de exprimir em palavras os sentimentos do mundo nunca falha em me fascinar. É impossível encontrar alguém que, nunca na vida, leu um manuscrito e não ouviu a sua própria voz sussurrar de volta para as páginas “eu também…”.

Talvez seja por isso que muitos poetas tiveram vidas difíceis e mortes ainda mais difíceis. O peso de sentir as dores do mundo, falar as palavras dele e carregar seus anseios é certamente um fardo em diversos momentos.

Mas também a simplicidade do poeta é encantadora. Quando se passa a observar a vida em tantos detalhes, a gente percebe algumas belezas ocultas, fragmentos de luz em meio às rachaduras nas calçadas do cotidiano. É aí que mora o extraordinário: nas páginas de um velho livro, nas palavras gastas em um muro antigo, nos folhetins amontoados na calçada, o aroma do café fresco, o doce som das chuvas, o sol, etc. Se fecho os olhos, enxergo a beleza que somente a minha alma é capaz de ver. Essa é a beleza de ser poeta: a beleza de fechar os olhos para ver.

Em sua vulnerabilidade, o poeta interpreta os mais diversos papéis do imaginário coletivo, pintado em todas as cores e facetas. Vai de mocinho a carrasco, rei a bufão, de zero a um, e de um a um milhão. O poeta é todas as pessoas do mundo em uma só. Vive anônimo na multidão, e dentro de cada um de nós. Vemos poetas e conversamos com eles todos os dias, sem sequer nos darmos conta, porque ele é um de nós, ele vive em nós. Em alguns casos, nós somos os poetas, ou eles se inspiram em nós.

A vida cotidiana é uma mágica fonte de inspiração se você a observa com cuidado, e isso vale para qualquer expressão de arte ou cultura. Faça um teste simples: ande pelas ruas com os olhos bem abertos e a mente receptiva ao que lhe aparecer no caminho, observe os detalhes do trajeto que você realiza todos os dias. Tenho certeza que notará coisas novas, ou até mesmo coisas surpreendentes que sempre estiveram bem debaixo do seu nariz.

Talvez observar com tanta admiração as coisas simples da vida seja a chave para escrever com as vozes do mundo, tocar os corações das pessoas, e criar com elas uma identificação. Talvez seja esse o grande trunfo dos poetas: as pessoas os veem observando e jamais imaginam o que se passa na mente deles, que observam a todos e sabem exatamente o que se passa dentro de cada um de nós.


Yasmin Yung

Ensino Médio Completo Colégio Cristo Redentor – Academia de Comércio, Graduação em Jornalismo Universidade Estácio de Sá – UNESA/FES


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Roteiros para a liberdade

Estamos superando um longo período de confinamento e distanciamento social devido à pandemia do covid-19, durante o qual tivemos nossa mobilidade reprimida e com ela nosso direito de ir e vir. De modo que poderíamos ousar em parafrasear Clarice Lispector para tentar expressar o que sentem, nesse momento, todos aqueles que amam viajar: “Liberdade é pouco. O que desejamos ainda não tem nome”! Contudo, como ainda não temos outro termo que dê conta desse sentimento que nos domina nesse contexto de um “novo normal”, não há de fato outro melhor que essa palavra que, tal como escreveu Cecília Meireles, “o sonho alimenta e não há quem explique e ninguém que não entenda” e por que não dizer, que não deseje.

Logo, parece muito acertada a escolha do título “Via Liberdade” para o projeto de uma nova rota turística que pretende se firmar como a maior do Brasil. Através de um acordo de cooperação técnica assinado pelos governos de Minas, do Rio de Janeiro, de Goiás e do Distrito Federal em outubro de 2021, a Via Liberdade conta com ações e programas estratégicos que serão desenvolvidos ao longo da BR-040 e imediações , interligando as belezas históricas, culturais e artísticas entre os quatro territórios.

Vale ressaltar, entretanto, que para além do desejo latente que vem ressignificar tal título no referido contexto pandêmico, a rota foi criada em comemoração ao Bicentenário da Independência do Brasil e aos cem anos da Semana de Arte Moderna, visto que percorre as cidades que tiveram protagonismo nesses momentos históricos, desde a fase do Brasil Império no Rio de Janeiro, passando pelos movimentos libertários em Minas, a conquista do interior, em Goiás, e o apogeu da Independência do Brasil, sintetizado na criação modernista de Brasília. São mais de 300 cidades nesse percurso, que apresentam sete Patrimônios da Humanidade e 80 Patrimônios Memória do Mundo. O percurso de 1.179 quilômetros da BR-040 envolve mais de 300 cidades1.

Não cabe neste breve artigo apresentar esse projeto, já que isso foi feito diretamente pelos idealizadores em seus canais de divulgação. O objetivo aqui é aproveitar a oportunidade deste espaço para destacar a importância dos roteiros para o turismo e, principalmente, para “a expansão das liberdades humanas e constitutivas que são “o fim e o meio” do desenvolvimento”, tal como defende Amartya Sen (2018), economista indiano, Professor de Harvard (EUA), um dos idealizadores do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH e fundador do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento da ONU2. Afinal, nesse movimento expansivo, não cabem privações nem tampouco “invólucros”, “rolos”, “envelopes”, “embrulhos”, que possam impedir potencialidades nelas contidas, como expressam os significados da própria palavra “desenvolvimento” em várias línguas: “dé- (en)veloppment”; “des- arrollo”; “s – (in)viluppo”; “ent –wicklung”.

Com tal objetivo, é preciso lançar um olhar crítico sobre todas as etapas e princípios básicos da roteirização, alertando também para os diversos desafios que esse processo envolve, entre os quais eu destaco a integração e a gestão compartilhada tão aclamadas no turismo e que indiscutivelmente são as principais estratégias de operacionalização de roteiros e ao mesmo tempo são as maiores dificuldades, principalmente quando envolve diferentes municípios e estados, que quase sempre possuem não somente realidades estruturais, econômicas, sociais e culturais distintas, como também possuem posicionamentos políticos e ideológicos distintos. Não raro, a descontinuidade política também compromete significativamente a continuidade de projetos dessa natureza.

Da mesma forma, ocorre com as prioridades a serem definidas, que são diferentes dependendo da lente de cada instituição envolvida nas tomadas de decisões, por exemplo, o que é prioritário para o poder público pode não ser o mesmo para uma organização que visa fomentar negócios em prol da classe empresarial. Para equacionar e tentar afinar essas dissonâncias é consenso que as decisões sejam tomadas pela via comunitária, ou seja, que a comunidade seja protagonista em todo o processo e, para tanto, é preciso atuar em diversas frentes de mobilização. O que igualmente não é tarefa fácil, haja vista a enorme expectativa dos envolvidos por retorno financeiro imediato, a qual projetos de longo prazo, como são os de roteirização, muitas vezes não conseguem atender.

É preciso, entretanto, que essa via se torne uma busca permanente porque, de fato, não há outro caminho para a roteirização. Sem integração e gestão participativa não é possível conceber roteiros, sejam eles de qual dimensão for – local, regional, nacional, continental – sejam eles voltados para o público em geral ou para um segmento específico. Podem criar produtos ou atrativos turísticos isolados, mas não um roteiro.

É também esse o percurso inescapável quando se pretende fomentar a economia criativa, com bens e serviços baseados no capital intelectual e cultural que buscam melhorar e inovar a indústria do consumo promovendo outras formas de desenvolvimento, diferentes de muitas que estão em curso e que nitidamente já se mostram incompatíveis com os ideais de sustentabilidade, em todas as dimensões que a ONU tenta promover articulando os países de todo o mundo, em âmbito econômico, mas sobretudo, ambiental, cultural, social. A tomar como exemplo destinos e/ou atrativos turísticos cuja liderança é monopolizada por empreendedores do ramo imobiliário, mineração e pecuária ou pelo sistema de concessão pública.

A liberdade que aqui prezamos também é fundamental para conquistar os mais variados públicos, para que a criatividade, principal insumo da economia criativa que move o turismo, se manifeste e que alcance a representatividade cultural em toda sua diversidade e todo seu potencial de inovação, seja com mídias, tecnologia ou com as diversas linguagens artísticas, como audiovisual, música, literatura, fotografia, arquitetura, artes plásticas, artes cênicas, gastronomia.

E ao disseminar essa ideia, multiplica-se também o potencial da mesma para recriar, ressignificar, reinventar. Vale se inspirar na sabedoria popular através da canção “da abóbora faz melão, do melão faz melancia, faz doce, Sinhá, faz doce, Sinhá Maria”! Criam-se, assim, ações estratégicas para atrair visitantes durante todo o ano, para ampliar a visibilidade dos destinos envolvidos e com ela a valorização de artistas e pequenos empreendedores como forma também de resistência à hegemonia e aos padrões de mega indústrias culturais, sobretudo norte-americanas e chinesas. Para tanto, se faz igualmente necessário compreender a importância do planejamento, governança e estratégias inteligentes para a captação de recursos, bem como dos impactos econômicos significativos gerados sob toda a cadeia produtiva enquanto evidencia a cultura como direito e a importância da democratização de acesso.

Nesse sentido, os roteiros também são estrategicamente muito interessantes para criar, organizar, descentralizar e direcionar os fluxos de viajantes, na medida que contribuem para ampliar, segmentar, diversificar, qualificar e agregar valor à oferta turística. Consequentemente, podem otimizar e melhor distribuir a renda gerada e as oportunidades de trabalho que são geradas pela cadeia produtiva envolvida. É esse movimento que o processo de roteirização jamais deve perder de vista, na busca para transformar ou ao menos aproximar o tão repetido discurso do turismo como indutor de desenvolvimento sustentável de uma realidade, porém, não de forma utópica, e sim efetiva.

Ao incorporar a diversidade da produção criativa, tão potente, é possível ir ainda mais além, enriquecendo as narrativas de guiamento e interpretação dos atrativos e roteiros, despertando a atenção dos visitantes, tocando-os pela emoção, com laços de memória coletiva e social capazes de construir sentidos, tecer significados. Logo, nos vemos também diante de uma grande oportunidade para revelar histórias esquecidas / apagadas e culturas que estão à margem dos circuitos convencionais. A título de exemplos, ainda inspirados na palavra chave deste artigo, podemos citar iniciativas focadas na valorização das trajetórias de comunidades negras, como as empreendidas pelas agências “Rota da Liberdade”3 e “Diáspora Black”4 de São Paulo, bem como a produtora de Juiz de Fora-MG, “Da Mata Cultural”5, a qual criou o roteiro “JF Negra”.

Indo além do trivial, dos enquadramentos tradicionais e das histórias “oficiais”, provoca-se o olhar curioso, instiga-se a descoberta de algo novo e que de fato vai marcar uma experiência turística. Afinal, os roteiros também buscam ir além da técnica, da compreensão “do que” se fazer na viagem. Eles buscam evidenciar a essência do “porquê” e “como conhecer”. E ter isso em mente é fundamental em um contexto no qual ao mesmo tempo podemos observar, de um lado, um crescente fluxo de turistas mais interessados em tirar fotos para postar nas redes sociais e, de outro, uma demanda crescente de turistas que buscam sentir plenamente o lugar do outro e através dele melhor conhecer a si próprio por meio de vivências que revelem um mundo desconhecido ou agreguem informações e sentimentos que transformam sua maneira de ver esse mundo.

“O turismo depende dos roteiros”, já dizia Miguel Bahl, pesquisador e autor de publicações sobre o tema. E que para esses roteiros possam contribuir efetivamente para o desenvolvimento do turismo e serem libertadores, precisamos superar todos esses desafios de modo que deixem de ser meros percursos compostos por lugares de passagem e se transforme em caminhos capazes de otimizar a interação, a cooperação e a interpretação de todo o universo simbólico e afetivo que faz pulsar a cultura das comunidades locais e semear seus territórios.

[1] Para saber mais acesse: https://mgturismo.com.br/maior-eixo-turistico-do-brasil-e-lancado-o-via-liberdade/ e na página oficial do projeto: https://www.vialiberdade.com.br/

[2] Amartya Sen foi Prêmio Nobel de Economia em 1998 por sua contribuição às teorias da escolha social e do bem-estar social. É reconhecido internacionalmente por sua dedicação ao combate à pobreza com soluções concretas e estratégias complexas em obras traduzidas para mais de 30 idiomas.

[3] https://rotadaliberdade.site/

[4] https://hospedagem.diaspora.black/

[5] https://www.instagram.com/damatacultural/


Referências bibliográficas:

BAHL, Miguel. Viagens e roteiros turísticos. Curitiba: Protexto, 2004.

BRASIL. Ministério do Turismo. Coordenação Geral de Regionalização. Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil : Módulo Operacional 7 Roteirização Turística. Brasília, 2007.

RAMOS, Silvana Pirillo (org). Planejamento de Roteiros Turísticos. Porto Alegre: Editora Asterisco, 2012 (Coleção Espaço e Tempo)

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


Raphaela Corrêa

Turismóloga com pós graduação em Comunicação e História. Possui experiência em gestão, produção cultural, projetos e pesquisas no campo do patrimônio e turismo que perpassam espaços museológicos, roteiros educativos e criativos. É professora do Departamento de Turismo da UFJF, onde também leciona para o Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas.


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Autores:
Leslie Ceotto Deslandes
Mario Vitor Gouveia Cau
Jeanne Bezerra Lopez
Edwaldo dos Anjos, Carla Fraga e Romilda Lopes
Silvia Senra e Eduarda Beraldo
Fernanda Castilho de Almeida
Ariadne Bedim Rezende
Inácio Botto, Mariana de Araújo e Marcos Carvalho
Yasmin Yung Costa Gomes
Raphaela Maciel Corrêa

Arte da capa:
Nívia Costa

Revisoras:
Táscia Souza
Ana Lúcia Jensen
Luana Sofiati

Ilustrações:
Laura Coury Bernardes

Projeto Gráfico:
Rafael Moreira Teixeira

Coordenação Geral:
Rafael Moreira Teixeira

Edição:
Paola Maria Frizero Schaeffer

Diagramação:
Thaiana Fernandes Pinto Gomes

Periodicidade:
Mensal

ISSN:
2764-0841