O arquivista, o arquivo, a sociedade

Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 21, 2022 – Arlene Xavier |  O arquivista, o arquivo, a sociedade 


Não é comum pensarmos na palavra arquivo e, muito menos, na instituição arquivo. Nunca conheci uma criança que tenha afirmado, em algum momento, “quando crescer, quero ser arquivista” ou, tampouco, pais que tenham essa expectativa profissional para suas crias. Minha sobrinha, Alice, nasceu há poucos dias, quem sabe eu consiga influenciá-la. Calma, pessoal, estou brincando.

Curva do Lacet. Arquivo Fotográfico Roberto Dornelas. s/d Acervo AC/UFJF.

Quando o curso superior de Arquivologia chegou à cidade em que eu morava, cursava Licenciatura em História, profissão que exerci por alguns anos. No entanto, sempre trabalhei também em arquivos, em projetos como bolsista ou como voluntária. Conhecia um pouco desse nicho de mercado e a sua carência de profissionais. Ao contrário do que acontecia, na época, com a área de história, mal remunerada e pouco valorizada. Não hesitei em apostar nessa ficha.

E ter sido da primeira turma de Arquivologia daquele estado foi uma experiência interessante. As perguntas, as reações das pessoas, as impressões que nos chegavam eram hilárias. Porém, devíamos levar tudo com seriedade, pois tínhamos ali uma grande responsabilidade. E foi essa responsabilidade e essa militância pelos arquivos que ali iniciei que motivaram a escrita deste artigo.

– Arqui… o quê? – Era a primeira pergunta.
– Arquivologia.
– Ah, arqueologia, aquele negócio que mexe com os ossinhos?
– Então, você vai trabalhar na biblioteca?
– Não, vou trabalhar em arquivos, com gestão documental.
– Ah, pensei que isso era trabalho de secretária, precisa de curso superior para isso?

Essas foram situações recorrentes ao longo do curso. Porém, a mais intrigante que eu passei foi uma vez, já formada e no mercado de trabalho, quando um colega, administrador descobriu que Arquivista é um cargo de formação de nível superior. E, mais uma vez, anos depois da faculdade, eu voltei a escutar “não sabia que precisa de curso superior para isso”. Procurei dialogar com o colega e explicar que isso envolve muito mais do que mera ordenação numérica e alfabética. 

Busquei demonstrar como o meu serviço poderia contribuir com toda uma Instituição, haja vista que entre as minhas atribuições estava a de planejamento e normatização de todo fluxo documental dos setores. Esse e tantos outros diálogos, cursos ministrados, visitas técnicas foram importantes para que os colegas compreendessem a função do Arquivista na estrutura organizacional da empresa. O termo arquivo morto passou a ser um motivo de brincadeira dos meus colegas como forma de me provocar. Nos cursos ministrados eu costumava dizer, fazendo gracejo: “pensem, cada vez que se diz arquivo morto estaremos matando um arquivista, e, um dia, meus caros, a vítima pode ser eu”.

Visita de estudantes ao Arquivo Central em 12/04/2018. Acervo AC/UFJF.

Se perguntarmos a transeuntes em via pública quais as funções de um advogado, um médico, um engenheiro, um contador, um enfermeiro etc., a maioria das pessoas saberá responder, de alguma forma, com certa propriedade, inclusive, você, estimado leitor. Com relação à profissão de arquivista o mesmo não irá acontecer. 

Se indagarmos a essas mesmas pessoas se já estiveram em um arquivo, provavelmente responderão que não. E eu afirmo que, provavelmente, sim. Arquivos fazem parte do pleno exercício de cidadania desde o nascimento das pessoas. E, mais do que isso, trazendo Silva, Pinheiro e Fragoso (2020, p. 99), “Trazer à baila da memória na Arquivologia é compreender o lugar do arquivo nessa conjuntura social, uma vez que esse exerce uma relevância fundamental para garantir o direito dos cidadãos”.

Ao preencher formulários diversos até muito pouco tempo, a profissão arquivista não constava entre as opções. Eu acabava, não sem algum constrangimento, assinalando o campo “outros”. Nessa semana, quão grande foi meu espanto ao preencher um formulário no qual havia uma inusitada combinação como opção: arquivista museólogo. Particularmente, não só admiro a museologia como pretendo um dia cursar, caso tenha uma oportunidade. Eis que, nesse questionário, marcando um xis em um milésimo de segundo, realizei ludicamente um sonho de vida.

É possível relacionar essa falta de reconhecimento social do profissional arquivista com o desconhecimento ou, ainda, uma visão negativa da instituição arquivo. E infelizmente esse processo de desconhecimento do arquivo começa pelo próprio Estado e sua negligência com seus acervos documentais. A maioria das instituições não prioriza o tratamento adequado aos documentos e, consequentemente, à sua memória. Por vezes os arquivos são vistos como tomadores de espaços que poderiam ser usados para escritórios, salas de reuniões e circulação. Logo, temos situações em que conjuntos documentais são relegados a espaços inadequados para sua preservação e acesso às suas informações.

As tensões são constantes, pois a intenção de se livrar de documentos nos escritórios para liberar espaços é diretamente proporcional à necessidade de recuperação urgente e imediata de informação de documentos enviados aos arquivos. No tocante a arquivos permanentes, que já cumpriram seu valor administrativo, o trabalho do arquivista na produção de instrumentos de pesquisa é fundamental para o usuário interno e externo à instituição, isto é, para a sociedade em geral.

Na esfera privada, o cenário aparentemente melhor se dá, em alguns casos, unicamente em função de auditorias. No entanto, na realidade, se na esfera pública a figura do arquivista ainda se encontra presente, pelo menos em números, em órgãos federais, no setor privado, apenas grandes grupos empresariais contratam arquivistas que, por vezes, acumulam outras funções. É justo também comentar que há uma fatia de mercado para historiadores e arquivistas na esfera privada quando se trata de resgate de memória de empresas e personalidades públicas influentes. No entanto, este não se constitui em números significativos em termos de contratações profissionais.

No entanto, este artigo não é um espaço para lamentações. Confesso, inclusive, com um certo nível de vaidade, que acho charmoso exercer uma profissão sobre a qual, volta e meia, preciso explicar às pessoas. E, neste momento encontro, oportunidade para falar da importância dos arquivos para temas relacionados a pesquisa, memória, cidadania, acesso, transparência, governança, entre outros.

Onde reside, então, a preocupação dessa arquivista que vos escreve? Na invisibilidade dos arquivos perante a sociedade e os gestores públicos e, consequentemente, na falta de políticas públicas voltadas para os arquivos. É incômodo responder perguntas como: por que não queima logo todos esses papéis? Por que ocupar esse prédio inteiro com papel velho? E a mais recorrente na atualidade: com o documento digital, a profissão do arquivista vai ser extinta?

Para essa última pergunta, sempre me vem à cabeça uma paródia que fiz com base em uma canção de um ídolo, o príncipe do samba, Paulinho da Viola, a qual externalizo pela primeira vez com vocês: 

Há muito tempo eu escuto esse papo furado
Dizendo que o trabalho do arquivista acabou
Só se foi quando o expediente terminou
1

De fato, a transformação digital gera fortes discussões na área da informação. Essas tensões incluem questionamentos acerca do trabalho do arquivista frente ao objeto digital. Duranti (1994) comenta que o erro, nessa situação, é acreditar que a realidade está mudando radicalmente, sendo que a função do arquivista é a mesma na produção do documento digital: compreender a estrutura administrativa do órgão, identificar a relação orgânica dos documentos e buscar estabelecer sua proveniência. 

Na década de 1970, em uma reunião com a Secretaria de Cultura da França, Bruno Delmas, então diretor-geral do Arquivo da França, foi surpreendido com uma pergunta: arquivos servem para quê? Esse questionamento inesperado, feito por uma autoridade de Estado, gerou posteriormente um artigo cujo título é a própria indagação realizada, que veio a servir de referência para toda uma geração de arquivistas. O autor afirma que seria possível elencar infinitas funções para arquivos. Porém, agrupa em quatro as utilidades fundamentais do arquivo, “provar, lembrar-se, compreender-se, identificar-se” (Delmas, p. 21, 2010). Na perspectiva do autor, o arquivo tem papel mnemônico para o indivíduo.

O Arquivo Central da Universidade Federal de Juiz de Fora vem desenvolvendo na sua seção de Arquivo Permanente um trabalho de divulgação de seu acervo em mídias sociais2, e o retorno do público tem sido positivo, enquanto uma experiência que afasta essa impressão negativa de que arquivos são infrutuosos. É um universo de possibilidades que se expande diante da sociedade, que passa a vislumbrar o arquivo como uma instituição propagadora da cidade, costumes e eventos de outros tempos. Vias públicas, prédios antigos, alguns que já nem existem mais, personalidades públicas relevantes para a história da região, das quais provavelmente esses cidadãos cresceram ouvindo histórias contadas por parentes anciões. Os temas relacionados à migração são os mais requisitados para pesquisa em nosso acervo. As utilidades fundamentais de Delmas se fazem presentes no cotidiano de nosso trabalho. 

Funções arquivísticas. PEREIRA, D.B. SILVA, E.P. da. Ágora: Arquivologia em debate. 29 (58) 1-22. 2009.Imagem

E o arquivo então? Como se diz no Piauí, é muito ótimo

 [1] Canção de referência: Eu canto samba. Autor: Paulinho da Viola

 [2] No Instagram e Facebook, @arqcentralufjf 


Referências Bibliográficas:

DELMAS, Bruno. Arquivos para quê? Tradução de Danielle Ardaillon. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), 2010. 

DURANTI, Luciana. CRUZ, Adélia Novaes e. (Trad.) Registros Documentais Contemporâneos. Revista Estudos Feministas. 1994/13 Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1976/2164 Acesso em: 16/02/2022.

SILVA, Luiz Eduardo Ferreira; PINHEIRO, Mariza de Oliveira; FRAGOSO, Ilza da Silva. Dentro ou fora da memória? o arquivista da memória e a capacidade antidota do fazer lembrar. Revista Analisando em Ciência da Informação, , p. 99-110. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/v/141392 Acesso em: 14/02/2022 


Arlene Xavier

Arquivista do Arquivo Central/UFJF. Mestra em Políticas Públicas, Gestão e Avaliação da Educação Superior (MPPGAV/UFPB-2020). Bacharel em Arquivologia pela UEPB (2010). Licenciada em História pela UFPB (2008). Membro do Laboratório de pesquisa em História e Arquivologia (Lapharq/UFJF). Atuou no ensino de história na rede pública e privada no Estado da Paraíba. Foi estagiária, pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça no Projeto de resgate da documentação relativa ao Brasil conservada no Arquivo Histórico da Fundação Basso em Roma-IT (2013). Possui experiência na área de organização e pesquisa em acervos do período do Regime Militar no Brasil; gestão de arquivos institucionais e patrimônio documental. CV: http://lattes.cnpq.br/0891705357375156