Eu, homem: raça e gênero na construção das masculinidades negras

Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 2, n. 17, 2021 – Estela Gonçalves | Eu, homem: raça e gênero na construção das masculinidades negras


O histórico do Brasil nos séculos anteriores, assim como a construção de sua história nacional, incidiu diretamente nas relações sociais estabelecidas entre brancos, negros e indígenas, bem como na forma com que a pirâmide de privilégios foi estabelecida, contendo os brancos no topo e indígenas e negros em sua base. Do mesmo modo que a pirâmide foi estabelecida, a história dos povos indígenas e negros também foi, e ainda é, hierarquizada, não possuindo protagonismo no plano social e educacional. Por conseguinte, os estereótipos, preconceitos, discriminações e racismo1 perpassaram os séculos de existência do país desde a chegada dos europeus, sendo presença marcante no cenário brasileiro.

Advêm desse fato os contornos do racismo estrutural e institucional. Para compreender esses racismos, é preciso saber que, conceitualmente, o racismo, segundo o autor Sílvio Almeida2,  “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios”. Logo, o tratamento diferenciado a partir da categoria raça passou a compor o cotidiano brasileiro, sendo a discriminação a principal justificativa para o funcionamento das normas sociais vigentes. Nesse sentido, os corpos negros estão submetidos aos males do racismo, de forma a influenciar diretamente nas relações estabelecidas entre o negro e a sociedade à qual é pertencente.

Olhar negro. Foto: Freepik

Por mais que se queira falar dos negros na sociedade brasileira, é impossível não tocar no assunto da escravidão e na forma com que tal agiu diretamente na história individual e coletiva desses sujeitos no país. A crença na superioridade de uns e inferioridade de outros delineou a atual estrutura sócio-hierárquica nacional, em que o Estado potencializa e mantém o sistema racializador destinado aos diferentes grupos étnico-raciais3

As discussões em torno de raça e gênero são essenciais para compreender a complexidade da masculinidade. Frantz Fanon nos expõe que há um constante sentimento de inferioridade entre os homens negros, e que as bases da construção de sua masculinidade se dão através da assimilação do homem branco. A contínua ideia, cunhada ao longo do período colonial e transmitida durante gerações, de que os homens africanos eram seres inferiores, selvagens, menos evoluídos foi suficiente para associar cor e gênero aos desdobramentos do ser homem. A opressão vinda da associação entre gênero e raça foi construída historicamente.

Compreendem as inúmeras violências destinadas aos corpos negros as armadilhas da masculinidade. Ou seja, a exigência em torno do papel que o homem deve possuir conduz o homem negro a se enquadrar num padrão que muitas vezes ele próprio não consegue seguir. A masculinidade foi construída como sinônimo de poder e submissão. Os padrões da masculinidade trazem consigo expectativas e exigências do “ser homem”. O ser homem está condicionado também à raça, assim como as condutas necessárias a ela. Desse modo, a masculinidade branca é construída a partir de um poder natural e se torna o modelo ideal a ser seguido, que está presente no imaginário social com todas as benesses de ser homem. A masculinidade branca confere superioridade ao homem branco, uma vez que a representatividade de sua cor atrai as concepções positivas de inteligência, beleza, poder, status. A teórica e feminista bell hooks nos expõe que

Mais do qualquer outro grupo de homens em nossa sociedade, os homens negros são muitas vezes concebidos como sujeitos desprovidos de habilidades intelectuais. Sob a visão estereotipada do racismo e do sexismo que os veem como mais corpo do que mente, homens negros estão propensos a serem recebidos pela sociedade da supremacia branca capitalista, imperialista e patriarcal, como sujeitos que parecem ser idiotas.

Atributos destinados ao papel de homem, como a força, a imponência, o não demonstrar emoções, o “macho alfa”, a necessidade de se afastar daquilo que possa ser associado ao feminino, são desígnios da masculinidade. As estruturas sociais e políticas moldam o ser homem. Além desses aspectos, o homem negro ainda tem que lidar com o fato de ser racializado. A exigência em torno do homem negro é o dobro da exigência existente em relação ao homem branco. A masculinidade negra é construída a partir do seu domínio sobre as mulheres, principalmente as negras. Atualmente, segundo Silvio Almeida, os homens negros encontram-se deslocados em relação à construção da sua masculinidade sobre as mulheres negras, pois elas, com suas lutas e vivências históricas, se desvencilham das situações impostas pelo fator da masculinidade.

A construção do homem negro está baseada na afirmação de que deve ser forte. Para isso, não deve demonstrar suas emoções nem buscar por ajuda. Deve, por si só, lidar com o fato de ser homem e ser negro numa sociedade estruturalmente racista. O homem negro encontra-se nas estatísticas mais pessimistas no plano nacional brasileiro. O mapa da violência4 do ano de 2019, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), destaca que o índice de homicídio tendo como vítimas os negros (que, na categoria do IBGE, engloba pretos e pardos) no ano de 2017 foi de 75,5%. Numa análise geral do instituto, 92% das vítimas de homicídio eram homens. Para os homens negros, o extermínio, principalmente de sua juventude, é outro fator a ser ressaltado, advindo do viés da raça e, posteriormente, da classe. É universal o medo do homem negro em ser enquadrado pela polícia.

Um dos principais locais em que a violência destinada aos homens negros se inicia é no ambiente escolar. O geógrafo Caio César, em seu livro “Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades” (2019), expõe que a vivência e a experiência escolar é violenta para a maior parte dos homens negros. Ao serem denominados como “alunos-problema”5, os estudantes negros passam por um processo de isolamento, exclusão e invisibilização social, instâncias reforçadas pela violência advinda do racismo. A escola como instituição não possui estrutura para lidar com a complexidade de raça, gênero e classe. 

É preciso que a escola, enquanto instituição, e a educação sejam trabalhadas de forma a olhar atentamente para os jovens que vão compor as sociedades futuras do país. Essa é uma das maneiras de contribuir diretamente para o fim da evasão escolar desses sujeitos, além de lhes direcionar um olhar mais humanizado. Voltar o olhar para as masculinidades negras e problematizá-las é um passo para a desarticulação da dominação masculina em âmbito social. 

Capa do documentário The mask you live in. Créditos à Filmow

[1] O termo racismo é aqui utilizado como conceito classificatório e hierarquizante de indivíduos e coletividades. Essa estrutura dá lugar, identifica, cria subjetividades dentro de um grupo e estabelece relações de poder que independem do indivíduo.

 [2] ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. p. 25

[3] Para o filósofo Achille Mbembe, o Estado como instituição atua diretamente na observação de seus indivíduos e seleciona a partir de características físicas, poder aquisitivo, disposição genética etc. uma espécie de consignação racial, voltada para a proteção, bem estar, e co-participação na construção de uma sociedade cuja proteção está voltada para as pessoas brancas.

[4] Dados disponíveis no ADados disponíveis no Atlas da Violência 2019 no site do Ipea. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784&Itemid=432

[5]  O aluno problema é aquele encarado como bagunceiro, com defasagem de aprendizagem, e que gradativamente vai sendo isolado dentro da sala de aula.


Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural. Ed. Letramento. Belo Horizonte. 2018.

BOLA, JJ. Seja Homem. A masculinidade desmascarada. 2020. Versão Ebook Amazon.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.

hooks, bell. Escolarizando homens negros. Revista Estudos Feministas. Florianópolis. vol.23 nº 3. Setembro-dezembro 2015. 


Sugestão de documentários que tem masculinidades como ponto central de análise e discussão:

AMARELO, É TUDO PARA ONTEM. Netflix e Laboratório Fantasma. Fred Ouro Preto. Brasil, 2020. 

O SILÊNCIO DOS HOMENS. Papo de Homem e Instituto PdH. Ian Leite e Luiza de Castro. Brasil, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVXCE

THE MASK YOU LIVE IN. Netflix. Jennifer Siebel Newsom. Estados Unidos, 2015.


Estela Gonçalves

Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), cujo tema de pesquisa são as masculinidades negras dos sujeitos históricos. Licenciada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduanda na modalidade do Bacharelado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é pesquisadora CAPES e possui experiência na área de Ensino de História e Africanidades. Atua na área de pesquisa relativa às temáticas étnico-raciais na educação básica, assim como nos desdobramentos das relações interseccionais perpassadas por gênero, raça, classe, sexualidade. Atua como voluntária no projeto de iniciação científica do LabAfrikas, é integrante do laboratório de pesquisa LABHOI/Afrikas, também na UFJF. Integra o GT Emancipações e Pós Abolição do CNPq em Minas Gerais. Integrante do Coletivo Negro Resistência Viva, formado para discussão e defesa de pautas raciais em Juiz de Fora, coletivo este que foi eleito para ocupar uma cadeira no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR-JF) durante a gestão 2021-2023. É também professora do ensino fundamental e médio da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais (SEE-MG).