Mérica, Mérica, Mérica, cosa sarà la ‘sta Mérica?

Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 19, 2022 – Louise Torga |  Mérica, Mérica, Mérica, cosa sarà la ‘sta Mérica?


Cantavam os imigrantes, camponeses cheios de esperança, que deixavam a Itália atraídos por uma promessa de vida melhor na “Terra do Café”. Uma centena de anos depois, a memória da imigração italiana no Brasil amarga mais esquecimentos do que lembranças.

Uma lembrança particular que compartilho aqui e que me marcou profundamente foi a primeira vez que minha vó percebeu meu interesse pelos antepassados italianos e pela cultura deles.   De prontidão ela disse: “se sua bisa estivesse viva, estaria indignada, perguntando que diabos você quer com aquela terra maldita!”. Naquela época eu tinha poucos recursos para pesquisa, quase nenhuma fonte familiar a quem pudesse perguntar e ela, minha vó, também não soube me explicar, apenas encerrou o assunto.

Essa frase me perseguiu até os dias de hoje. A cada busca, investigação, estudo, ela me assombrava. Mas, motivada por um outro assunto, talvez tenha encontrado a minha resposta. Há alguns anos eu me dedico ao estudo do café e sua história no Brasil, e foi assim que, no meio de tanta pesquisa e leitura, eu encontrei o motivo de palavras tão duras.

Voltando no tempo, no século XIX, a Itália vivia uma verdadeira confusão nacional. Era o término de uma dominação monárquica, que durou cerca de 700 anos, e o início da discussão sobre a unificação do território, até então formado por inúmeros principados e reinos. No cenário macro, temos o crescimento da industrialização na Europa e o declínio das pequenas e médias propriedades rurais. O povo italiano, aqui especificamente falando do povo Trentino, já estava acostumado a emigrar com frequência em busca de trabalho, visto que habitava terras altas, pedregosas e geladas. Eram pessoas em sua maioria trabalhadores rurais que cada vez menos tinham trabalho nas suas comunas de origem e buscavam trabalho longe de casa, às vezes temporário, às vezes definitivo. Um cenário de miséria e expulsão dos campos gerou um contingente de milhares de camponeses vagando pela Europa em busca de trabalho ou mesmo apenas de comida. Outro fator  de grande contribuição para a crise no campo foi o serviço militar obrigatório, retirando das famílias braços trabalhadores necessários durante a colheita, onerando ainda mais o camponês. Muitos acabavam partindo para a América sem os filhos, e outros eram forçados a desobedecer às autoridades e fugir para conseguirem finalizar a travessia com a família completa.

Com todo esse cenário desolador em uma Itália de muita fome e miséria, por outro lado, temos aqui no Brasil um país em plena expansão e uma acelerada mutação de suas estruturas políticas, econômicas e sociais. O cultivo do café, que se tornou o principal produto agroexportador do país, estava em pleno desenvolvimento, com o crescimento cada vez maior das lavouras cafeeiras e a expansão de novas terras para o interior. Com a constante pressão para a libertação dos escravizados, não haveria tempo suficiente para requalificação de uma mão de obra que vivia no litoral ou nos centros urbanos e que nada conhecia  de agricultura. Assim, a solução proposta por muitos foi a introdução de imigrantes europeus para suprir a escassez de trabalhadores.

Houve um grande investimento por parte do governo imperial com a criação de Sociedades Imigrantistas e “caçadores” de imigrantes na Europa. O objetivo era fazer propaganda do Brasil no continente europeu, a fim de atrair os camponeses e suas famílias, uma massa proletária, desarraigada de suas origens europeias e privada de bens que comprariam o sonho Americano. Esses “caçadores” recebiam gordas quantias a cada grupo enviado ao Brasil, que financiavam passagens de terceira classe nos navios para as famílias que assinavam os contratos de trabalho. Foram mais de cinco milhões de cidadãos italianos que emigraram para as Américas entre 1876 e 1927;  alguns estudos sugerem mais de seis milhões.

Com o término do tráfico negreiro e com a criação das leis abolicionistas no mundo, a imigração se tornou o grande negócio da vez, e com ela surgiram novos problemas. Aproveitadores inescrupulosos se valiam da inocência e escassez dos camponeses, contratando embarcações em condições insalubres e inseguras, fazendo com que muitos infelizmente não completassem a viagem e acabassem morrendo antes mesmo de chegarem ao destino final. Navios lotados, animais misturados aos humanos, pouca ou  nenhuma ventilação facilitavam a proliferação de doenças e surtos de piolho, cólera e sarampo. Aqueles que não sobreviviam durante a viagem, que levava cerca de 20 a 30 dias em navio a vapor, tinham seus corpos enrolados em lençóis e lançados ao mar para evitar mais contaminações.  

A chegada era muitas vezes um alívio, apesar de somente descobrirem para onde seriam levados quando o navio aportava. Primeiramente eram levados para as Hospedarias dos Imigrantes e, após, seguiam para as fazendas a que eram designados. E depois de todo o sofrimento da viagem, muitas vezes, durante o caminho para a “terra prometida”, eram mal recebidos e acomodados, dormindo em casebres insalubres e recebendo alimentação sem condições de consumo devido ao mau acondicionamento. Barreiras linguísticas e culturais também marcaram a penosa chegada desses bravos italianos.

Bilhete imirante

Quando enfim chegavam às fazendas de café, já com dívidas contraídas durante a viagem e desprovidos de qualquer capital, acabavam por viver em um sistema de colonato, com oportunidade de ganho suplementar praticamente reduzida ou às vezes nula. Muitos foram contratados para ocupar áreas ainda inóspitas, um território vasto e fracamente povoado e só receberiam lucros pelo serviço muitos anos depois, visto que um cafezal, para se tornar economicamente produtivo, leva aproximadamente 5 anos.

Com isso, nasce uma revolta entre os imigrantes, que começam a abandonar os campos e seguem para as cidades em formação, buscando novas oportunidades de emprego. Um exemplo claro é a cidade de São Paulo, com seus bairros típicos italianos e o próspero comércio. Em Minas Gerais podemos observar um movimento diferente e temos motivo para isso, porém é assunto para uma próxima conversa.

Foi assim que eu comecei a entender sobre a “terra maldita” que a minha finada bisavó Julia dizia, e que aprendemos sobre uma falsa ideia de imigração europeia. Cosa sarà la ‘sta Mérica? Não sei o que foi a América para ela, nem para os meu ancestrais que vieram para cá, mas sou grata por terem vindo e tenho um orgulho enorme de ter ascendentes tão fortes, batalhadores e resistentes que, apesar de tantas dificuldades, ajudaram a construir o Brasil moderno ao lado de tantos outros imigrantes que vieram em busca de uma vida melhor.


Referências bibliográficas:

BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigração. 3. Ed. São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1985.

GROSSELI, Renzo M. Colônias Imperiais na Terra do Café – Camponeses trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas brasileiras. Espirito Santo 1874-1900. Vol. 114  Brasília: Edições do Senado Federal, 2009.


Louise Torga

Turismóloga, Fotógrafa e Barista. Graduada em Turismo pela UFJF e pós-graduada em Gestão de Patrimônio Cultural, pela Faculdade Metodista Granbery. Há 4 anos me rendi ao mundo do Café e hoje sou sócia da Giotti Cafés, uma Cafeteria Itinerante especializada em eventos, atuando como barista, fotógrafa e também como pesquisadora da história do Café.