Brasil e Itália nas rotas do tráfico ilícito de bens culturais

Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 2, n. 10, 2021 – Rodrigo Christofoletti | Brasil e Itália nas rotas do tráfico ilícito de bens culturais


Os Carabinieri expuseram as 34 caixas de madeira repletas de artefatos recuperados antes que os tentáculos do tráfico os tirassem do país em contêineres disfarçados no porto de Civitavecchia. Na mesa da polícia, já com a presença da Superintendência dos Bens Culturais, repórteres entusiasmados fotografam e entrevistam os responsáveis pela apreensão. O espetáculo da interceptação põe fim ao primeiro ato.

Beni sequestrati dallarma dei carabinieri di Crotone

Um colecionador abastado do leste europeu, após pesquisa fortuita na internet, encontra em sites de compras internacionais, como eBay, a possibilidade de adquirir, facilmente, exemplares de fósseis brasileiros traslados ilegalmente do Nordeste do país, por meio dos aeroportos internacionais da região. O segundo ato chega ao ápice quando se pensa na quantidade monumental de exemplares paleontológicos traficados no Brasil.

O contraponto entre as duas cenas é significativo, pois mostra o quanto a fiscalização, em um país de proporções continentais, dificulta a ação fundamental da polícia na coibição de situações de evasão de bens culturais patrocinadas pelo tráfico ilícito. Aliás, é curioso que o conceito seja tão redundante, afinal, tradicionalmente, o conceito do tráfico está embebido na ilegalidade. No entanto, a tradução jurídica brasileira aproveitou a concepção original de tráfico como tráfego (ou seja, mobilidade), advinda dos modismos modernos italianos, para condicionar a ideia de que o tráfico ilícito nada mais é do que a mobilidade de algo realizado de maneira ilegal. Por isso, comumente chamamos de tráfico ilícito de bens culturais aqueles que são trafegados sem a devida autorização dos órgãos responsáveis.

Há exatos dez anos, tomei contato, em uma temporada de estudos que fazia pela Itália, com o curso “Introduzione al traffico illecito di beni culturali”, ministrado na Università Sapienza di Roma, interessante oportunidade de aprofundar o que àquela época começava a se constituir em um substantivo problema internacional. Desde a década de 1950, para a Itália, e a década de 1990, para o Brasil, este tema tem suscitado curiosidades e parcerias acadêmicas que visam conhecer as capilaridades desse que é hoje uma das modalidades de tráfico mais rentáveis do planeta. Passada uma década desde meu primeiro contato com o tema, Itália e Brasil continuam sendo dois países que figuram no ranking dos que mais perdem bens culturais para o tráfico, essa engenhosa engrenagem que vincula muitas peças e que vem mobilizando esforços internacionais no sentido de sua coibição, sanção e punição. Mas, nesse pêndulo entre quem perde mais, o tráfico tem vencido de goleada.

O combate aos atentados contra riquezas arqueológicas, históricas e artísticas exige cooperação internacional, quer na prevenção das infrações, quer para assegurar a restituição dos bens subtraídos. Mas, diferentemente da Itália, que possui um consolidado know-how sobre essa temática, o Brasil tem insistido em permanecer como ponta de lança de uma rota internacional de tráfico de bens culturais e obras de arte, espaço esse que tem mobilizado importantes estudos sobre sua atuação. A compreensão dessa ideia ajuda a perceber como o tráfico ilícito de bens culturais e obras de arte se constitui hoje na terceira modalidade de tráfico mais rentável em volume financeiro no mundo, movimentando mais de 6 bilhões de dólares na última década, de acordo com o FBI, a Interpol e a Unesco. Nesse sentido, a política de repatriação dos bens traficados se coloca como um desafio aos Estados contemporâneos, fator pelo qual se torna relevante o estudo dessa temática.

Mas, diferentemente da Itália, onde os artefatos arqueológicos da antiguidade são responsáveis por quase 85% da modalidade de perda do espólio patrimonial, no Brasil, a multiplicidade de bens traficados potencializa não só a necessidade de ampliar as restrições e sanções, mas, sobretudo, de compreender como essa pluralidade de bens vem tomando espaço nos anais das perdas permanentes. Daqui desaparecem artefatos sacros e grandes pinturas, peças arqueológico/paleontológicas e livros raros, fauna/flora e acervos documentais, de forma que o Brasil, dos países latino-americanos, acaba dividindo os holofotes com o Peru e o México, países que também detêm altos índices de perda de patrimônio devido à evasão ilegal.

Fosseis apreendidos pela Policia Federal

Longe de comparações indevidas e descuidadas, o fato de se colocar em paralelo Itália e Brasil nesse quesito nos ajuda a compreender o quanto nosso país precisa cuidar dessa parte tão fragilizada, na manutenção de seu espólio cultural. Para você conhecer mais sobre as ferramentas disponíveis pelos dois países na busca pela coibição do tráfico ilícito de bens culturais, visite as páginas italianas dos Carabinieri (http://www.carabinieri.it/) e do  Ministero per i Beni e le Attività Culturali (https://www.beniculturali.it/);  e, no Brasil, da Polícia Federal do Brasil, por meio da Divisão de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico, e do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), por meio de suas listas de bens culturais procurados. Nesses sites se concentram o que de mais interessante tem sido realizado para a preservação dos mecanismos de coação ao tráfico ilícito de bens culturais em ambos os países.

Ao mesmo tempo que as duas situações apresentadas neste texto poderiam acontecer em qualquer um dos países, o que vem efetivamente diferenciando um país do outro é seu comprometimento na coibição da evasão de seu espólio cultural. Pode ser um sintoma de que o Brasil ainda está engatinhando num terreno em que apenas se permite o trânsito de quem anda ereto. Enquanto essa lição não for apreendida, continuaremos perdendo sensivelmente partes significativas de nosso espólio cultural pelos poros cada vez mais abertos de nosso tecido cultural. A ideia é que alertas como este possam, em certa medida, mobilizar aqueles que se interessam pela temática, ampliando, assim, os contatos com essa realidade, cada vez mais censurada. Para o bem do nosso patrimônio.


Para saber mais, acesse:

http://www.carabinieri.it/

https://www.beniculturali.it/

https://www.embrapa.br/documents/1355163/15676515/DMAPHApresentacaoEmbrapa.pdf/f0c458b6-714d-4c27-aa9c-ba497a2b5d4b

http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1020

http://antigo.cultura.gov.br/documents/10883/1527715/cartilha_2510_traficoilicito.pdf/7939b8b8-3119-4787-aa0e-9b999e6b2a63

https://www.ufjf.br/lapa/files/2008/08/O-tr%C3%A1ficohttps://www.ufjf.br/lapa/files/2008/08/O-tr%C3%A1fico-il%C3%ADcito-de-bens-culturais-e-a-repatria%C3%A7%C3%A3o-como-repara%C3%A7%C3%A3o-hist%C3%B3rica-Rodrigo-Christofoletti.pdf

https://traffickingculture.org/

https://www.ufjf.br/lapa/

Rodrigo Christofoletti é autor de diversos livros e textos sobre a temática dos quais se destacam:

CHRISTOFOLETTI, R. & OLENDER, Marcos. (Org.) World Heritage Patinas: action, alerts and risks. Switzland. Springer, 2021.

CHRISTOFOLETTI, Rodrigo & BOTELHO, Maria Leonor. Dossiê: Patrimônio e Relações Internacionais. Revista Locus. Vol. 26, nº 2. Novembro de 2020. 

CHRISTOFOLETTI, Rodrigo. Bens Culturais e Relações Internacionais: o patrimônio como espelho do soft power. 1. ed. Santos -SP: Leopoldianum. v. 01. 2017.


Rodrigo Christofoletti

Professor do Departamento de História da UFJF e coordenador do Grupo de Pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais vinculado ao LAPA — Laboratório De Patrimônios Culturais da UFJF


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