REVISTA CASA D’ITALIA – Ano 04, nº34, 2023

Ano 04, nº34, 2023 – Edição ‘A atuação e luta das mulheres na política’ – ISSN: 2764-0841

Editorial

A arquitetura italiana teve uma influência altamente significativa a partir do século XX, abrangendo uma ampla gama de movimentos e estilos arquitetônicos. A Itália possui uma tradição arquitetônica profundamente enraizada, remontando a civilizações antigas, como os romanos, que deixaram um legado arquitetônico de longa duração. 

No entanto, o século XX foi um período, para a história, marcado por muitos acontecimentos e transformações, influenciando a nascente de novos estilos arquitetônicos particulares, em especial na Itália, como, por exemplo: o Futurismo, um movimento originalmente artístico que buscava criar uma nova estética que refletisse a velocidade, a dinâmica e a modernidade da era industrial; o Rationalismo italiano, também conhecido como Movimento Moderno italiano, inspirado pelo racionalismo funcionalista europeu; o Neorrealismo, que emergiu no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, em que a Itália passou por um período de reconstrução e desenvolvimento. No final desse período e já influenciando as primeiras décadas do século XXI, surgiram o pós-modernismo e o interesse crescente da Itália pela renovação urbana e pela preservação do patrimônio arquitetônico. Nesse contexto, o país testemunhou um foco cada vez maior na revitalização das áreas urbanas e na salvaguarda do legado arquitetônico.

Assim, nesta edição, os leitores terão a oportunidade de mergulhar na vasta influência da arquitetura italiana no Brasil. Oferecendo uma perspectiva única, esta edição permite aos leitores explorar pesquisas de autores que apresentam reflexões profundas e necessárias sobre a temática arquitetura, patrimônio e história.

A Revista Casa D’Italia é uma realização da Duplo Estúdio de Criação, em parceria com o Departamento de Cultura da Associação Casa D’Italia. Essa iniciativa tem o apoio das empresas e associações Imo Experiência Turística, Curso de Língua e Cultura Italiana, Grupo de Dança Folclórica Italiana Tarantolato, Estúdio de Arte Ponto Três e Afra Cultural. Contamos ainda com o apoio de Cristina Njaim Coury, Patrícia Ferreira Moreno, Rafael Moreira, Arlene Xavier Santos Costa, Louise Torga, Paulo Jose Monteiro de Barros, Vinícius Sartini, Ana Lewer, Thaiana Fernandes, Rafael Bertante, Paola Frizero, Ana Carolina de Paula Fellet e Lucimar Therezinha Grizendi, que, através da plataforma Apoia-se, nos incentivam mês a mês a continuar investindo na cultura e a trazer discussões a respeito da nossa sociedade.

Desejamos a toda e todos uma excelente leitura!

Editorial: Paola Maria Frizero Schaeffer.


Arquitetura Hostil:
é possível controlar o espaço público? 

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Valéria Ferraz Severini | Arquitetura Hostil: é possível controlar o espaço público? 

Resumo: Utilizada como uma estratégia de desenho urbano, a arquitetura hostil impede que certos grupos sociais, em especial as pessoas em situação de rua, permaneçam, descansem ou pernoitem nas calçadas, no mobiliário urbano, nos recuos dos lotes, nas muretas dos jardins ou junto às entradas de edifícios. Esta pesquisa tem como objetivo aprofundar o debate sobre as tentativas de controlar o espaço público a partir da instalação de dispositivos de arquitetura hostil. Para tanto, investiga aspectos teóricos relacionados ao tema e aborda políticas públicas proibitivas de controle do espaço das cidades.

Palavras-chave:arquitetura hostil. hospitalidade. espaço público. políticas públicas.

Abstract: Used as an urban design strategy, hostile architecture prevents certain social groups, especially homeless people, from staying, resting or staying overnight on the sidewalks, on street furniture, in the recesses of lots, on the walls of gardens or next to the building entrances. This research aims to deepen the debate on attempts to control public space through the installation of hostile architectural devices. To this end, it investigates theoretical aspects related to the theme and addresses prohibitive public policies for controlling the space of cities.

Key words: hostile architecture. hospitality. public place. public policy.

Riepilogo: Utilizzata come strategia di progettazione urbana, l’architettura ostile impedisce ad alcuni gruppi sociali, in particolare ai senzatetto, di sostare, riposare o pernottare sui marciapiedi, sugli arredi urbani, negli anfratti dei lotti, sui muri dei giardini o accanto agli ingressi degli edifici. Questa ricerca si propone di approfondire il dibattito sui tentativi di controllo dello spazio pubblico attraverso l’installazione di dispositivi architettonici ostili. A tal fine, indaga gli aspetti teorici legati al tema e affronta le politiche pubbliche proibitive per il controllo dello spazio delle città.

Parole chiave: architettura ostile. ospitalità. luogo pubblico. ordine pubblico.

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Hostilidades no espaço público  

De acordo com Ferraz (2013), certas qualidades urbanísticas são essenciais para a geração de bem-estar e acolhimento no espaço público. Mas, quando a cidade opta por um outro tipo de desenho urbano, o efeito pode ser o oposto à hospitalidade, ou seja, a hostilidade. Considerado essencial para a geração de encontros, o espaço público é um local de livre acesso, de uso comum, que não exige reservas, tampouco regras de uso. É nele que as pessoas circulam e se exercitam, que o turista tem suas primeiras impressões sobre a cidade e, infelizmente, que muitas pessoas moram.

O aumento dos crimes nas grandes cidades vem sendo a justificativa para se adotar um tipo de arquitetura que, em tese, traria mais segurança a todos. Dentre as tipologias mais utilizadas, estão os condomínios residenciais fechados  cercados por muros altos e cercas elétricas. Não é à toa que esse tipo de arquitetura é conhecido como “arquitetura penitenciária” ou, para Caldeira (2003), como “enclaves fortificados”. Mas essa segregação não necessariamente é sinônimo de segurança.

De acordo com Jacobs (2000), uma cidade segura se dá pelo movimento de pessoas nas ruas e nos espaços públicos. E isso só é possível por meio de edificações de uso misto que dialoguem com o espaço público. Dessa forma, os moradores poderão ficar com os “olhos na rua”. Além disso, a permeabilidade do sistema viário e o tamanho das quadras gera uma gama maior de trajetos entre origem e destino. Para Hillier (1996), a estrutura da malha urbana é um fator fundamental de estímulo de movimento em uma cidade, aumentando sua conectividade. Opinião compartilhada por Jacobs (2000), que defendia bairros com ruas bem conectadas e quadras curtas.

Não se pode afirmar, portanto, se o esvaziamento do espaço público é decorrente do aumento dos crimes ou se é decorrente desse tipo de arquitetura. Para Cintra (2019), a limitação do uso do espaço público pode ser o objetivo ou pode ser apenas a consequência. E isso pode ser prejudicial a todos, pois, mesmo que existam grupos específicos da sociedade como foco da exclusão, todos que transitam pelos espaços públicos da cidade podem ser afetados (CINTRA, 2019).

A população em situação de rua também sofre com outro tipo de hostilidade, a chamada “arquitetura hostil”. O termo remete a uma estratégia de desenho urbano que limita, afasta e segrega pessoas. A técnica se utiliza de dispositivos físicos instalados no espaço público que restringem encontros e dificultam o convívio. “O tamanho e o formato dos bancos, as pontas de ferro implantadas nos parapeitos  de  edifícios  públicos,  as  pedras  instaladas  sob  os  viadutos  e  os  alambrados  cercando fontes e chafarizes” são exemplos desse tipo de arquitetura, segundo Severini & Nunes (2022, p. 78).

 O termo “aporofobia” também é utilizado para representar esse tipo de hostilidade. A terminologia da palavra vem do grego á-poros, que significa pobre, desamparado, e fobos, que significa medo, fobia. A filósofa espanhola Cortina (2020), que popularizou o termo, afirma que, em muitas situações, o que classificamos como “racismo” ou “xenofobia” deveria ter outro nome: “aporofobia”. Para a autora, não rejeitamos estrangeiros se forem turistas ou pessoas famosas, rejeitamos se forem pobres.

Os dispositivos de arquitetura hostil são implantados tanto no espaço público quanto no alinhamento do lote, junto à calçada. Tomando como base o centro de Curitiba, Faria (2020) classificou os dispositivos de arquitetura hostil que mapeou. De acordo a autora, a área estudada tem onze tipos de arquitetura hostil classificados em: pinos, espetos, arcos de ferro, gradis, arranjos verticais, grades, muros de vidro, mobiliários, planos inclinados, híbridos e tipos particulares. Quanto à função, Faria (2020) encontrou quatro restrições básicas da arquitetura hostil: sentar, deitar, abrigar-se e acessar determinado espaço.

Exemplos de arquitetura hostil na Avenida Paulista: pinos e espetos. Fonte: Autora, 2023.

Políticas Públicas que vedam o emprego de técnicas de Arquitetura Hostil

Reconhecido por sua luta pelos mais pobres, o padre Júlio Lancelloti ganhou destaque na mídia pelo episódio em que retirou as pedras colocadas debaixo de um viaduto, situado na zona leste de São Paulo, que visavam impedir que pessoas em situação de rua ali se instalassem. Coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, o padre retirou os blocos de paralelepípedos e colocou flores sobre o piso. O evento ficou famoso e a seguinte frase viralizou nas redes sociais: “Menos pedras, mais flores”. Esse alerta fez com que o senador Fabiano Contarato elaborasse o Projeto de Lei. 488/2021 para alterar a Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, com o intuito de vedar o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público.

O Estatuto da Cidade estabelece e normatiza uma série de mecanismos e procedimentos para a institucionalização de políticas públicas municipais. Agora fica sob a responsabilidade de cada cidade avaliar se esse Projeto de Lei deve ser incorporado (ou não) a seu Plano Diretor.

Até o momento, apenas a capital pernambucana aprovou no Plenário da Câmara Municipal uma lei que incorpora as diretrizes da Lei 488/2021. Essa medida é mais um avanço na defesa dos mais vulneráveis que se soma à Política Municipal de Atenção Integral à População em Situação de Rua (Lei 18.968/22), que visa garantir serviços socioassistenciais e programas públicos voltados para essa população. O PL faz parte do “Recife Acolhe”, um programa formado por seis eixos: ampliação dos serviços; moradia; segurança alimentar; educação, emprego e renda; doação; e institucional.

Apesar de a proposição da capital pernambucana ser um avanço, o PL não prevê punições, tampouco reserva orçamento para a fiscalização. Talvez por isso, o Projeto de Lei 01-00534/2022 (ainda não regulamentado e elaborado por um vereador da capital paulista) seja tão importante, pois “institui no Município de São Paulo o Programa de Combate e Conscientização da Aporofobia”. De acordo com o Parágrafo Único do Art. 1º. “Para os fins da presente Lei, considera-se aporofobia a prática de atos de intolerância ou que ofendam a dignidade ou decoro de pessoa em razão de sua condição de pobreza e vulnerabilidade social”.

Diante da situação de vulnerabilidade em que as pessoas em situação de rua se encontram, o povo brasileiro, que se considera hospitaleiro, deveria assumir uma postura anfitriã e cidadã e exigir a aprovação das políticas públicas acima mencionadas.


Referências bibliográficas:

Caldeira, Teresa P. do Rio. 2003. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP.

Cintra, Claudia M. 2019. A arquitetura e a qualificação do espaço público. Arquitetura hostil e um estudo de caso no bairro da Saúde. (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). FAU-USP.

Cortina, Adela. 2020. Aporofobia, a Aversão ao Pobre: um Desafio Para a Democracia: Volume 1. São Paulo: Ed. Contracorrente.

Faria, Débora Raquel. 2020. Sem descanso: arquitetura hostil e controle do espaço público no centro de Curitiba. Dissertação. (Mestrado em Planejamento Urbano). UFPR.

Ferraz, V. de S. 2013. Hospitalidade urbana em grandes cidades. São Paulo em foco. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – FAU-USP.

Hillier, Bill. 1996. Space is the machine. Cambridge: University Press.

Jacobs, Jane. 2000. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.

Recife. 2022. Projeto de Lei Ordinária nº 23/2022. Dispõe sobre a vedação do emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público, no Município de Recife. Recife, Poder Executivo.

Senado Federal. 2021. Projeto de Lei N. 488/2021 – Altera a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, – Estatuto da Cidade, para vedar o emprego de técnicas de “arquitetura hostil” em espaços livres de uso público – Lei Padre Júlio Lancelotti.

Severini, Valéria Ferraz; Nunes, Gabriela Parreira. 2022. Arquitetura hostil: cidade para quem? Revista Cadernos CERU, Hospitalidade, v. 33, n. 2, dez. 


Valéria Ferraz Severini

É formada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduanda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Integrante do Grupo de Estudos “Variações Ecofeministas Críticas”, coordenado pela professora Dra. Elaini da Silva (PUC-SP). Entusiasta das artes, ciências sociais e filosofia contemporânea. E-mail para contato: fernanda.f.isaac@gmail.com


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Arquitetura e Patrimônio Sustentável 

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Joyce Falci de Aguiar Rodrigues | Arquitetura e Patrimônio Sustentável 

Resumo: Arquitetura e Patrimônio Sustentável se relacionam com a preservação do meio ambiente, mas também ao desenvolvimento sustentável das cidades e ao sentimento de pertencimento das comunidades em relação aos espaços. Manter um patrimônio material, como uma edificação, requer técnicas, mas também conhecimento de que, ao se preservar uma edificação, você está impactando positivamente no desenvolvimento sustentável de uma cidade. É necessário conhecimento para que as edificações estejam sempre recebendo manutenção e reforma, para garantir maior tempo de vida da construção. O desenvolvimento sustentável também ajuda a prevenir uma expansão urbana desacerbada, que por vezes ocupa áreas que deveriam ser preservadas, como áreas de mata, margens de rios e encostas, por exemplo. Dessa forma, ao se incentivar o Patrimônio e Desenvolvimento Sustentável, as cidades são capazes de manter sua história viva e auxiliar para que, no futuro, os impactos urbanos que o meio ambiente sofre sejam menos agressivos do que tem sido ao longo de todos esses anos.

Palavras-chave: Sustentabilidade; desenvolvimento sustentável; patrimônio.

Abstract: 

Architecture and Sustainable Heritage are related to the preservation of the environment, but also to the sustainable development of cities and the sense of belonging of communities. Maintaining material heritage, such as a building, requires techniques and knowledge that by preserving a building you are positively impacting the sustainable development of a city as well. It is necessary knowledge so that the buildings are always receiving maintenance and renovation, to guarantee a longer life of the construction. Sustainable development also helps to prevent unbridled urban expansion, which sometimes occupies areas that should be preserved, such as forest areas, riverbanks, and slopes, for example. In this way, by encouraging Heritage and Sustainable Development, cities can keep their history alive and help so that in the future the urban impacts that the environment suffers are less aggressive than they have been over all these years.

Key words: Sustainability; sustainable development; heritage.

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O artigo tem por finalidade apresentar, de forma simples e sucinta, a relação entre arquitetura e patrimônio sustentável e desenvolvimento sustentável. Abaixo fala-se sobre a arquitetura e a relação com o espaço e o patrimônio, o que é desenvolvimento sustentável e os benefícios para a sociedade.

Patrimônio e Desenvolvimento Sustentável

  1. Sustentabilidade e Patrimônio

 Ao passear pelas ruas de uma cidade, se você se atentar aos detalhes, verá que há muita história que está sendo contada. Você pode admirar construções que outrora foram importantíssimas para o desenvolvimento da cidade, local em que até seus avós podem ter trabalhado. Você pode ver ruas que deram origem à cidade, ou que abrigaram um bonde, no qual seus pais andavam e sobre o qual certamente têm um “causo” para contar. Provavelmente, na sua memória, você também vai se lembrar de algum momento importante que viveu em sua cidade ou em algum prédio específico, algo que lhe traz um sentimento de nostalgia. Você pode admirar belas construções, pode perceber que algumas foram construídas em épocas diferentes e que simbolizam também as mudanças que o mundo foi sofrendo ao passar dos anos, representações artísticas, entendimento de mundo, formas de produção etc. 

Essas mudanças nos trouxeram ao momento em que vivemos, um momento de busca da sustentabilidade para prolongar e melhorar nossa qualidade de vida no planeta. 

Mas o que é sustentabilidade? Atualmente muito se fala em sustentabilidade, moda sustentável, material sustentável, gastronomia sustentável, entre muitas outras coisas. Mas o que de fato é ser sustentável? Segundo o dicionário Aurélio, o adjetivo sustentável significa “que se consegue sustentar, manter (…)”. Se pensarmos em Arquitetura e Patrimônio, a sustentabilidade ganha uma profundidade e uma complexidade admiráveis. A sustentabilidade de uma construção já existente envolve a conservação e o uso da edificação, o que evita a geração de resíduos de demolição e a extração de mais matéria-prima para a construção de um novo edifício. Porém, também está relacionada à manutenção da história, ao desenvolvimento de uma sociedade e, claro, ao afeto e ao sentimento de pertencimento das pessoas.

Segundo o site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, caracteriza patrimônio como algo “composto por monumentos, conjuntos de construções e sítios arqueológicos, de fundamental importância para a memória, a identidade e a criatividade dos povos e a riqueza das culturas” (site IPHAN, 2014).

O “Relatório de Brundtland”, considerado o documento que disseminou a ideia de desenvolvimento sustentável pelo mundo, acredita que o desenvolvimento de uma sociedade deve prezar pelo equilíbrio entre qualidade de vida, preservação ambiental e crescimento econômico (CIB; UNEP-IETC, 2002).  Isso dá a entender que a sustentabilidade do espaço urbano está vinculada tanto à preservação do meio ambiente quanto à qualidade de vida de todas as pessoas, o que engloba saúde, direito a saneamento básico, lazer, educação. E à economia, que está ligada ao desenvolvimento das empresas e a geração de trabalho.

Posteriormente, mais documentos foram sendo criados nas conferências mundiais. A Agenda 21, documento proveniente da Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992 (Rio 92), foi um dos documentos que enfatizou a importância de “promover atividades na indústria da construção”, o que começou a promover mais a ideia.  Na Rio + 10, em 2002, surgiu a “Agenda 21 para a Construção Sustentável em Países em Desenvolvimento”.

Segundo Brum (2010, p. 41), 

Na “Agenda 21 para a Construção Sustentável em Países em Desenvolvimento” o Patrimônio Cultural, especialmente no que concerne aos edifícios históricos, é tido como uma oportunidade para promoção do Desenvolvimento Sustentável. O documento prega que o patrimônio construído, enquanto parte da construção civil, deve ser reconhecido como de grande valor para a comunidade. 

A sustentabilidade e o patrimônio são capazes de andar lado a lado quando há o interesse em preservar tanto a arquitetura quanto o meio ambiente e a sociedade. Quando há a preservação de espaços arquitetônicos, a expansão urbana consegue ser controlada, a extração de matéria-prima para a construção civil diminui, menos poluentes gerados durante a produção e o transporte de vários produtos são lançados da atmosfera. De acordo com Jokilehto (1999, p. 317), em seu livro “A History of Architectural Conservation”,

A preservação do patrimônio cultural possui, de fato, um movimento paralelo ao da natureza e do meio ambiente, à consciência crescente dos limites do crescimento e à necessidade de gerenciar os recursos do mundo considerando a sustentabilidade ambiental. 

O Patrimônio pode também colaborar com o desenvolvimento econômico da cidade, gerar empregos e renda local. Segundo Brum (2010, p. 52),

Na geração de benefícios tangíveis o Patrimônio Cultural pode ser particularmente eficiente na medida em que propicia uma economia local forte e contribui para a geração de emprego e renda. Através da revitalização de ambientes históricos, gera-se maior número de postos de trabalho diretos e indiretos e maior incremento na utilização da infraestrutura do turismo (hotéis, bares e restaurantes). 

  1. Conclusão

A Arquitetura e o Patrimônio andam lado a lado com a sustentabilidade. Este tema é bastante complexo e envolve vários setores, como pode-se perceber. Para vivermos a sustentabilidade devemos entender o que ela propõe e sabermos que sustentar/manter é mais do que não demolir.  É viver a cidade, é se importar com as comunidades, é preservar o meio ambiente, é valorizar o caminho traçado até aqui e almejar um futuro melhor. 


Referências bibliográficas:

Dicionário Aurélio: https://www.dicio.com.br/sustentavel/;

Site IPHAN: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/29

CIB; UNEP – IETC. The International Council for Research and Innovation in Building and Construction (CIB); United Nations Environment Programme International Environmental Technology Centre (UNEP-IETC). Agenda 21 for Sustainable Construction in Developing Countries. A discussion document. 2002 ; 

 JOKILEHTO, Jukka. A History of Architectural Conservation. Londres: ButterworthHeinemann, 1999.

BRUM, Cristiane Vieira Cabreira. Patrimônio Sustentável: a Experiência Francesa e a Realidade Brasileira. 2010. 222 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura, Sustentabilidade, Conforto Ambiental e Eficiência Energética) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

PEREIRA, Júlio César. Sustentabilidade no Patrimônio Histórico nas edificações revitalizadas. 2018. PATORREB 2018.


Joyce Falci

Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pós-graduada em Sustentabilidade na Construção Civil pelo Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais. LEED Green Associate pela U.S. Green Building Council. 


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O edifício Casa D’Itália no Rio de Janeiro

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Adrielly Ramos | O edifício Casa D’Itália no Rio de Janeiro

Resumo: O artigo relata a história da construção da Casa D’Itália do Rio de Janeiro, abordando seus principais acontecimentos e trazendo uma perspectiva social e histórica sobre a construção

Palavras-chave: Casa D’Itália. Cultura. 

Rio de Janeiro. História. 

Abstract: The article tells the story of the construction of Casa D’Itália in Rio de Janeiro, addressing its main events. Bringing a social and historical perspective on the construction

Key words: Casa D’Itália. Cultura.

Rio de Janeiro. History.

Riepilogo: L’articolo racconta la storia della costruzione della Casa D’Italia a Rio de Janeiro, affrontandone gli eventi principali. Portare una prospettiva sociale e storica sulla costruzione

Parole chiave:Casa D’Italia. Cultura. Rio de Janeiro. Storia.

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Atualmente os centros urbanos se tornaram grandes espaços de influência na sociedade, logo a Zona Central do Rio de Janeiro não fica de fora. A localidade possui alta relevância, partindo do pressuposto de sua visibilidade, pois já foi palco de grandes reviravoltas sociais. A Central do Brasil, por exemplo, já foi título e espaço de filmes indicados ao Oscar, assim como o Campo de Santana já foi utilizado para coroação de D. Pedro I em 1822.

Logo, a Zona Central do Rio de Janeiro é um local de grande persuasão para a população carioca. Nela está o Edifício Casa D’Itália, nosso objeto de pesquisa, que fica localizado na Avenida Presidente Antônio Carlos, número 40.  Atualmente o local é utilizado pelo Consulado Italiano, pelo Instituto Italiano de Cultura e pelo Instituto Europeu de Design. A base de nossa pesquisa será a bibliografia publicada em 2022 pelo Consulado Italiano, escrita por Aristides Corrêa Dutra: “EDIFÍCIO CASA D’ITALIA do Rio de janeiro uma biografia”.

Segundo a biografia, a pedra fundamental para a construção do edifício foi colocada em 1931, fazendo assim com que o prédio tenha mais de 90 anos. Embora tenha passado por diversos problemas, o local ainda se mantém de pé e em pleno funcionamento. 

O imóvel foi construído em um dos locais mais movimentados do país, visto que foi um dos projetos pioneiros na Esplanada do Castelo, que era o centro do poder antes de a capital ser transferida para Brasília. A localidade em questão contava com diversos prédios importantes, como o Ministério da Fazenda e o Ministério do Trabalho. Logo, podemos compreender a magnitude da construção do edifício Casa D’Itália, pois se situava em um local de extrema importância para a política brasileira, onde se decidiam os próximos passos da nação.

O local foi construído para abrigar o Consulado da Itália e para gerenciar algumas atividades ítalo-brasileiras na época. 

O Brasil é um país miscigenado e temos forte influência Italiana, bem antes da construção do edifício Casa D’Itália. Em 1842, quando Teresa Cristina de Bourbon — Duas Sicílias casou-se com Dom Pedro II, diversas famílias italianas imigraram para o país a fim de encontrar melhores qualidade de vida. Além do contexto relatado acima, outro momento de grande imigração italiana foi após a Segunda Guerra Mundial, quando houve a diáspora italiana, em que os moradores do país em questão procuraram se abrigar em outros países e uma grande quantidade se acomodou no Brasil. Além dos acontecimentos citados, houve diversas imigrações italianas, mas colocamos em questão algumas das que mais impactaram a história de nosso país. 

Há diversas Casas D’Itália espalhadas pelo Brasil, e seu nome era Casa degli Italiani (Casa dos Italianos). Já no início do século XX, havia diversas associações italianas, criadas por influência de Teresa Cristina de Bourbon — Duas Sicílias. Entretanto, as associações não possuíam um local próprio. Foi então que começou a circular a ideia de se ter uma construção para fortalecer e integrar as associações em um único local, que não seria apenas uma sede, mas sim um espaço de relações sociais e culturais entre Brasil e Itália. A ideia não foi aceita no momento em que foi proposta e a Casa D’Itália só começou a ser desenvolvida quando um novo cônsul italiano, o comendador Ludovico Censi, chegou ao país, em 1928.

Edifício Casa D’Itália do Rio de Janeiro Uma biografia. A antiga sede da Casa d’Italia de Nova Friburgo, RJ, localizada às margens do Rio Bengalas, já foi
demolida.

Em dezembro de 1930, representantes brasileiros e das associações italianas efetuaram a compra de um terreno, no local onde está situada a edificação que estamos pesquisando, para erguer um edifício de oito andares, que a priori serviria para acomodar o Consulado Italiano, as associações italianas, uma biblioteca e uma enfermaria.

Após a compra do terreno e de uma breve cerimônia de apresentação do espaço, foi aberto um concurso de projetos arquitetônicos, direcionado para profissionais da arquitetura que morassem no Rio de Janeiro e fossem italianos.

Infelizmente o concurso não chegou à conclusão cabível: passando por três etapas, a equipe de análise não escolheu nenhum anteprojeto. Assim, em 1933, a Itália mandou o arquiteto Clemente Busiri Vici para projetar a Casa degli Italiani do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora.

Edifício Casa D’Itália do Rio de Janeiro Uma biografia. A Casa D’Italia em construção [Foto: Sacha. Fonte: Archivio Centrale dello Stato, Roma – CLBV-FOT/021bis]

A construção foi finalizada em 1936, com a comemoração de uma festa cumeeira de tradição europeia, que só é realizada quando a construção faz o teto do último andar. Não haviam sido instaladas as janelas e o prédio não possuía acabamento, mas, mesmo assim, a festa foi realizada.

Em 18 de outubro de 1936, a Casa D’Itália do Rio de Janeiro ficou pronta.O espaço ficou disponível nos anos seguintes para execução de eventos importantes e para utilização do público.

Capa do livro “Edifício Casa D’Itália do Rio de Janeiro Uma biografia.” Mostra a fotografia mais antiga que conseguiram encontrar do edifício.

É necessário relatar alguns acontecimentos que aconteciam na Itália durante a construção. Em 1936 (ano em que o local foi inaugurado), o país era liderado por Benito Mussolini, com um sistema fascista, de extrema direita conservadora, um regime totalitário que dizimou grande parte da população italiana.

Em seguida, durante a Segunda Guerra Mundial, a Itália se juntou à Aliança do Eixo, composta por  Alemanha, Japão e Itália. Além do fascismo, portanto, havia no grupo outro país com sistema conservador de extrema direita, o nazismo liderado por Adolf Hitler, na Alemanha, que dizimou uma parte da população global.

Somente durante a Segunda Grande Guerra o Brasil rompeu seus laços com a Itália. Em 1942, quando os países do continente americano suspenderam as relações diplomáticas com as nações do Eixo, o Brasil ainda baixou uma portaria, interditando algumas associações que seriam ‘súditos do Eixo’, incluindo a Casa D’Itália, que foi entregue ao governo de Getúlio Vargas.  O espaço começou então a ser utilizado pela faculdade nacional de filosofia, e entre outras destinações do governo não relatadas.

Em 1943, a Itália foi derrotada. Em 1944, o Brasil se juntou aos Aliados e declarou guerra contra a Alemanha, enviando soldados para ajudar na remoção das tropas alemãs. Em 1947 o consulado da Itália começou a se reerguer, mas somente em 1949 o Brasil abriu os caminhos para que o país pudesse recuperar seus bens. O processo, contudo, era lento.

O artigo “Os italianos e a Casa d’ Italia de Juiz de Fora” aborda a questão das construções de diversas Casa D’Itália que foram postas em vários países do mundo, uma vez que Mussolini tinha a intenção de se infiltrar nas colônias italianas espalhadas pelo mundo para tentar ganhar a confiança dos italianos fora da Itália também. Isso nos leva a ter uma visão de outro ângulo.

É de grande percepção a existência de um edifício espetacular com uma bagagem histórica que não pode ser relatada apenas nessas páginas. A profundidade de nosso objeto de pesquisa é nítida e ainda há muito a se descobrir sobre a Casa D’Itália do Rio de Janeiro. O livro relatado foi um dos únicos documentos encontrados que aborda a história do local, fazendo assim com que a verdadeira história fique apenas nas paredes do imóvel. Em uma abordagem palimpséstica, podemos  compreender que não se pode apagar o que foi vivenciado, mas, com as informações abordadas, viajamos no tempo para uma época de grandes conflitos que nos fazem questionar e compreender um pouco da cultura e da construção do edifício.


Referências bibliográficas:

CORRÊA, Aristides. Edifício Casa D’Itália do Rio de Janeiro Uma biografia. Consolato Generale d’Italia Rio de Janeiro. Editora Comunità. Rio de Janeiro, 2022.

VALÉRIA LEÃO FERENZINI. Os italianos e a Casa d’ Italia de Juiz de Fora. Locus: Revista de História, [S. l.], v. 14, n. 2, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/31012. Acesso em: 16 maio. 2023.


Adrielly Ramos

Bacharel em turismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisadora na área do turismo com grande aspiração no âmbito da comunicação social, abrangendo temas como imaginário turístico e palimpsesto, acerca da Zona Central do Rio de Janeiro.


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Casa d’Itália e o Stille littorio

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Marina Coelho | Casa d’Itália e o Stille littorio

Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar o estilo de origem fascista nomeado como Stille Littorio e toda a concepção da produção arquitetônica que também englobou a concepção arquitetônica da Casa d’Itália de Juiz de Fora.

Palavras-chave:Arquitetura, Stille Littorio, Fascismo.

Abstract: This text aims to present the style of fascist origin named as Stille Littorio and the entire conception of architectural production that also encompassed the conception of the Casa d’Itália in Juiz de Fora

Key words: Architecture, Stille Littorio, Fascism.

Riepilogo: Questo texto intende presentar elo stile di origine fascista demoninato Stille Littorio e l’intera concezione della produzione architettonica che comprendeva anche la concezione della Casa d’Italia a Juiz de Fora.

Parole chiave: Architettura, Stille Littorio, Fascismo.

“Giovinezza, Giovinezza,
Primavera di bellezza
Per la vita, nell’ asprezza
Il tuo canto squilla e va!

I Poeti e gli artigiani
I signori e i contadini
Con orgoglio di Itáliani
Giuran fede a Mussolini.
Non v’è povero quartiere
Che non mandi le sue schiere
Che non spieghi le bandiere
Del fascismo redentor.”

A canção patriótica acima, Giovinezza, reconhecida como hino fascista da juventude italiana, expressa o quanto foi importante esse movimento político na comunidade italiana durante o período fascista (1922-1943).

O fascismo obteve a simpatia dos imigrantes, e seus descendentes,  com a utilização de técnicas publicitárias (Trento, 1989) e estratégias de intervenção como: “escolas, livros, cadernos escolares, colônias de férias, Opera Nazionale Dopolavoro — para socializar classes populares, Institutos Ítalo-brasileiros de Alta Cultura, criação de representações do Partido Nacional Fascista (PNF), incentivo de manifestações populares e patrióticas a favor da Itália fascista, expulsão do corpo diplomático e ocupação dos cargos por fascistas, ampla divulgação na imprensa na década de 20 e as fundações das Casa d’Itália na década de 30. (Ferenzini, 2008, p.151)

Nesse panorama político, cria-se um movimento no qual tentam esboçar um estilo arquitetônico que pudesse remeter ao regime totalitário.

Marcello Piacentini era o principal arquiteto do regime fascista e fez vários projetos de edifícios ao longo do período, como por exemplo a sede da reitoria, a biblioteca e a aula magna da Universidade de Roma e o Palácio da Justiça de Milão. Desse modo, tornou-se figura inspiradora, principalmente para os arquitetos que projetaram as “Casas d’Itália”, pelo Brasil.

Universidade de Roma La Sapienza, projeto de autoria do arquiteto do regime fascista Marcello Piacentini.
Fonte:http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/11/reitoria-da-universidade-de-roma-praa.html

Segundo Machado (2004, p.66), com todo o intuito de propagar a marcação do movimento político e, consequentemente, a construção identitária, cria-se também uma forma de expressar o fascismo através da arquitetura (auxiliada pelo simbolismo) que representasse o estilo “Imperial Fascista” que Marcello Piacentini “disseminou” com o estilo littorio. O autor complementa:

“[…] Stille littorio, um estilo baseado em uma abstração do Classicismo, com paralelepípedos arranjados de uma maneira à Sitte, ou pitoresca, estereometria das fachadas, bandas de cor horizontais alternadas; recursos abandonados, em seguida, para um nível de abstração mais elevado, com a articulação de fachadas feita somente pela modulação de aberturas retangulares sobre panos de pedra absolutamente planos, simples e monótonos, com ausência de ordens, preferência por pilares de seção retangular e pilastras, e, ainda, cornijas extremamente simplificadas”.

E Christo (2000, p.158) complementa:

“Na década de 30, a arquitetura racionalista era comumente identificada com a retórica fascista, principalmente pelo caráter de monumentalidade. Os anos de 1938 e 1939 marcam a presença, no Brasil, do arquiteto Marcello Piacentini”.

Nos anos 30, foram disseminadas, pelo Brasil, as “Casa d’Itália”, que para os Fasci seriam uma forma de externalizar o fascismo para as comunidades italianas que estavam consolidadas. Ainda assim, Trento (1989, p.333) complementa: 

“[…] atualizando-o, o mito da ‘più grande Itália’ [Itália maior], o PNF viu desde o início a emigração como a expressão máxima de uma vigorosa vitalidade expansionista dos Italianos. Convencido de que era necessário desenvolver uma ação em profundidade com a finalidade de levar os que residiam fora das fronteiras da pátria a identificar a Itálianidade com o fascismo, o partido propôs-se estar presente e, sobretudo, ativo onde existisse Italianos”

Entretanto, em Juiz de Fora, o projeto da Casa d’Itália foi elaborado pelo arquiteto Raphael Arcuri (filho do Pantaleoni Arcuri). A Casa foi inaugurada em 1939 e Raphael conseguiu exprimir na arquitetura toda a ideologia política vigente nos anos 30. A Casa d’Itália, em Juiz de Fora, possui três andares e foi construída para abrigar várias atividades. Passaglia (1985, p.48) complementa:

“O edifício em si, com dois andares e um amplo sub-solo, foi concebido para abrigar as funções básicas então previstas.O mesmo pode ser descrito como sendo composto por um bloco fronteiro que abrigava múltiplas funções além da solução simbólica dada a sua fachada, elaborada dentro da linguagem neoplástica, reinterpretando a estrutura dos pórticos clássicos dentro de uma proposição plástica arquitetônica de influência fascista, funções estas que eram as seguintes: no pavimento térreo, ladeando o corredor central se tinha as salas do Vice-Cônsul e sua correspondente Secretaria, um Museu, a sala da Diretoria da Escola, e a sala do Fachio”; no pavimento superior o hall de entrada para o salão-auditório, bar biblioteca, sala de jogos e sala de palestras. No corpo subsequente, cuja volumetria é definida e formada pelo amplo espaço do salão-auditório que fica no piso superior, no pavimento térreo se distribui as salas de aula e no sub-solo, se localizam outras salas tais como a sala do médico, refeitório e sala de ginástica. ”

Esboço da fachada da Casa d’Itália, em Juiz de Fora.
Fonte: Retirado do acervo de Mário Arcuri, disponibilizado pelo Departamento de Cultura da Casa d’Itália

Desse modo, conclui-se que o fascismo instaurou-se na produção arquitetônica criando o Stille Littorio com o intuito de disseminar a movimentação política no modo de construir e na paisagem das cidades, como é o caso das Casas d’Itálias que estão espalhadas pelo Brasil.


Referências bibliográficas:

CHRISTO, Maraliz de Castro. Italianos: Trabalho, enriquecimento e exclusão. In: BORGES, Célia Maria (org.) Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000.

FERENZINI, Valéria Leão. I Os italianos e a Casa d’Itália de Juiz de Fora. Locus: Revista de História, v. 14, n. 2, 2008.

MACHADO, Fernando dos Santos Rocha. RACIONALISMO ITALIANO (1926-1943) E O FASCISMO: CONTRADIÇÃO OU CONVERGÊNCIA? Porto Alegre, 2004 Dissertação (Pós-Graduação em Arquitetura) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989.

PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Prefeitura de Juiz de Fora, s/d.

Periódicos:

Acervo fotográfico do Departamento de Cultura da Casa d’Itália

Outras mídias:

GIOVINEZZA.GIUSEPPE Blanc, Marcello Manni, Salvator Gotta, 1922. Disponível em: https://ao.wikiqube.net/wiki/Giovinezza


Marina Coelho

Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora com pesquisas com ênfase no estudo do patrimônio cultural. Possui pós-graduação em Patrimônio e Restauro pela PUC Minas e atualmente é graduanda do curso de Conservação e Restauro do IFMG — Ouro Preto.


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Modernismo e Racismo

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Dalila Varela Singulane | Modernismo e Racismo

Resumo: A breve explanação é resultado de uma pesquisa maior para evidenciar o racismo presente do patrimônio cultural brasileiro, fruto do mestrado da autora. Nesse fragmento, analisou-se o Marco do Centenário de Juiz de Fora, no qual é possível observar a capilaridade da ideia de raça e democracia social presentes em nosso imaginário social. 

Palavras-chave: Marco do Centenário. Juiz de Fora. Patrimônio Cultural. Racismo. 

Abstract: The brief explanation is the result of a larger research to highlight the racism present in the Brazilian cultural heritage, the result of the author’s master’s degree. In this fragment, the Juiz de Fora Centennial Milestone was analyzed, in which it is possible to observe the capillarity of the idea of race and social democracy present in our social imaginary.

Key words: Centennial landmark. Juiz de Fora. Cultural heritage. Racism.

Riepilogo: La breve spiegazione è il risultato di una ricerca più ampia per evidenziare il razzismo presente nel patrimonio culturale brasiliano, frutto del master dell’autore. In questo frammento è stata analizzata la Juiz de Fora Centennial Milestone, in cui è possibile osservare la capillarità dell’idea di razza e socialdemocrazia presente nel nostro immaginario sociale.

Parole chiave: Punto di riferimento del centenario. Juiz de Fora. Eredità culturale. Razzismo.

***

Como uma sociedade profundamente racializada por conta, principalmente, dos mais de 300 anos de escravidão, ter em vista a “raça, como categoria sociológica, é fundamental para a compreensão das relações sociais cotidianas (…)” (Schucman 2012, 12). Contudo, como afirma Schucman (2012, 12) com base nos estudos desenvolvidos em 2001 por Winant, num país como o Brasil, que se “identifica e atribui, como marca positiva da identidade nacional, valores de miscigenação cultural e mistura racial”, falar sobre o racismo nas dinâmicas sociais ainda é um terreno movediço. Como vimos no capítulo anterior, a primeira metade do século XX ainda estava permeada por discursos acerca das vantagens e desvantagens da miscigenação, políticas de branqueamento sendo adotadas, já que acreditava-se que a moral e o caráter eram formados de acordo com a etnia predominante no indivíduo. 

No cotidiano brasileiro esses temas ainda constituem um tabu, já que o racismo brasileiro revela a faceta contraditória deste discurso, que sedimenta e estrutura não só de desigualdades socioeconômicas, mas também simbólicas e culturais, relativas à população não branca do Brasil. (Schucman 2012, 13-4)

Assim, com um discurso destoante da prática cotidiana, temos um Brasil que cultua a ilusão da democracia racial, enquanto o racismo estrutural molda as práticas sociais. Há uma profunda discrepância entre a preservação de expressões culturais entre brancos e grupos não brancos, como negros e indígenas.

Não raro, é possível ver nas cidades a proteção de lugares importantes para grupos de imigrantes europeus que vieram exercer trabalho braçal, seja na indústria, comércio ou lavoura, enquanto em tradicionais bairros formados por trabalhadores negros, com história de migração da lavoura após a abolição, não termos nenhum bem protegido por tombamento.

Nesse sentido, a cidade de Juiz de Fora também nos serve como caso de análise, visto que seu patrimônio cultural urbano conta com lugares de memória tombados, sejam habitações ou locais públicos, italianos e alemães trabalhadores, mesmo que estes não estejam dentro do pensamento histórico positivista – que é a forma mais comum de seleção de bens edificados­ –, isto é, com grandes feitos ou com proeminentes personalidades.  Como no caso da residência localizada na rua Tenente Paulo Maria Delage, 930, bairro Borboleta, descrita em documento oficial como “Casa Colônia Alemã”1 (Prefeitura Municipal de Juiz de Fora 2019), entre tantas outras inventariadas, o que entra em contradição quando comparado a bairros como São Benedito, local historicamente identificado como de ocupação negra, ou seja, de trabalhador negro que se tornou  trabalhador urbano após a abolição, sobre o que falaremos mais detidamente adiante, e que não conta com nenhum bem tombado referente a pessoas ou grupos da comunidade.

Esse enaltecimento da branquitude2, em sua estética e padrão de beleza, em detrimento da estética e cultura negra, pode ser atribuído a processos próprios do racismo brasileiro, segundo estudo de Guerreiro Ramos citado por Schucman (2012, 21). Isso porque, no caso dos brancos brasileiros, “apesar de a grande maioria destes ter ascendência miscigenada cultural e biologicamente com os negros, este é um fator negado por eles” (Schucman 2012, 21). Portanto, o indivíduo que se identifica e é reconhecido como branco no Brasil enaltece a cultura européia/branca ao mesmo tempo que despreza sua ancestralidade e influência cultural negra (Schucman 2014, 21)

Dessa forma, o contexto multirracial brasileiro propicia mediações bastante diferenciadas para a constituição de sujeitos e, portanto, para a subjetividade de brancos e não brancos. A marca dessa diferença e dessa desigualdade perpassa toda a socialização de tais indivíduos, na casa, na escola, na rua, e todos os espaços públicos são marcados pela supervalorização da branquitude e pela preferência do branco em relação ao não branco. (Schucman 2012, 14)

Assim, como pontuado por Bourdier (2001) acerca do habitus, dentro da esfera do patrimonial também vemos a reprodução dos comportamentos sociais, onde o indivíduo considerado branco “não é apenas favorecido nessa estrutura racializada, mas é também produtor ativo dessa estrutura, através dos mecanismos mais diretos de discriminação e da produção de um discurso que propaga a democracia racial e o branqueamento” (Schucman 2012, 14).

Nesse sentido, é interessante a análise do Marco Comemorativo do Centenário de Juiz de Fora (1951), obra modernista projetada por Arthur Arcuri, com mosaico de Di Cavalcanti. Tombado pela municipalidade e pela União, a obra, localizada na Praça da República, no bairro Poço Rico3, próximo às antigas instalações da construtora Pantaleone Arcuri – de quem falaremos mais à frente –, retrata em seu mosaico três indivíduos puxando formas circulares, o que, segundo Viana (2017, 124), pode ser entendido como uma alegoria do progresso.

Fig.1: Marco Comemorativo do Centenário de Juiz de Fora. Fonte: Pinterest “Juiz de Fora em imagens”. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/51650726954007733/?nic_v2=1a1VbPrZr. Acesso em: 09/10/2020.
Fig.2: Marco Comemorativo do Centenário de Juiz de Fora em 1 de julho de 2020. Fonte: Tribuna de Minas, “Marco do Centenário, em Juiz de Fora, é incendiado”. Juiz de Fora, 01 de julho de 2020. Disponível em: https://tribunademinas.com.br/noticias/cultura/01-07-2020/marco-do-centenario-em-juiz-de-fora-e-incendiado.html. Acesso em: 13/10/2020.

As figuras humanas podem ser encaradas como símbolos das três raças – como se pode ver uma é de cor escura, uma de cor clara e a que aparece em primeiro plano tem as duas cores, representando provavelmente o mestiço –, como sugere o memorial produzido pela PERMEAR (Programa de Estudos e Revitalização da Memória Arquitetônica e Artística) e anexado ao processo de tombamento. O monumento representa sobretudo “a espiral do progresso na cidade industrial” (Viana 2017, 124). Juiz de Fora é uma cidade de baixas temperaturas no inverno, e o fogo provavelmente se originou em uma fogueira acesa por pessoas em situação de rua que dormem na praça. A situação é complexa e diz de políticas que vão muito além do patrimônio.

Todavia, também é profundamente simbólica, visto que o progresso puxado pelas três raças, como se quer na democracia racial, é controverso ao incidente, já que 67% da população em situação de rua é preta ou parda4. Como conclui Carneiro (2011, 57), a pobreza tem cor no Brasil, após análise dos dados apresentados pelo economista Marcelo Paixão em ocasião do II Foro Global sobre Desenvolvimento Humano. A autora demonstra, aludindo à matéria do periódico O Globo, que “se brancos e negros tivessem as mesmas condições de vida, o país subiria 26 degraus na lista da ONU ­– hoje está em 74º lugar” (Carneiro 2011, p.58).

Não foi a primeira vez que houve um incidente com o Marco atribuído ao cotidiano das pessoas em situação de rua, o que denuncia ainda mais o descaso do poder público com as pessoas em vulnerabilidade social. Nesse sentido é interessante notar que as notícias veiculadas na mídia lamentam sobretudo o dano causado ao patrimônio, fruto da intelectualidade dos modernistas Arthur Arcuri e Di Cavalcanti, ignorando quase que totalmente as causas do incêndio e depredação como resultado da crescente desigualdade social do país5. Em 2011, uma matéria veiculada pelo Estado de Minas, de 28 de outubro, denunciando o abandono do patrimônio, faz menção à situação das pessoas que habitam a praça na seção “Lixo total”. A matéria informa que o quadro de deterioração da praça entristece o morador entrevistado, que é tecnólogo, casado e pai de dois filhos, dizendo que “desde que a prefeitura inaugurou aqui perto um lugar para a população de rua almoçar e lanchar, a praça começou a ficar degradada. Eles vêm para cá e se tornam donos do lugar” (Estado de Minas 2011). Ele ainda disse que não passeia mais com seu cachorro na praça, pois as pessoas em situação de rua interagiam com seu animal de estimação, e isso o incomodava.

A fala desse morador evidencia de forma objetiva a questão da discriminação espacial da cidade, empreendida deliberadamente desde os projetos de reformas urbanas do início do século passado como forma de higienizar a cidade, isto é, a exclusão dos pobres das áreas centrais.

[1] Processo 4557/97. Decreto/ Data: 9453/18.02.08.

[2] Segundo Almeida (2020, 42): “o termo tem origem na hegemonia que a cultura europeia passou a ter ao longo dos últimos séculos em função da escala mundial do projeto colonial. Esse processo permitiu que o sistema econômico, os valores religiosos, a estrutura política e a tradição cultural dos países europeus se tornassem parâmetros universais. (…) Todos esses processos aparentemente impessoais, mas estão associados a um grupo racial específico”.

[3] Bairro localizado no entorno imediato da área central da cidade.

[4] Esse dado foi retirado do site “Poletize!”, que utilizou o método do IBGE de junção dos números de autodeclarados nessas cores (Disponível em: https://www.politize.com.br/pessoas-em-situacao-de-rua/. Acesso em: 13/10/2020).

[5] Nos referimos às matérias “Marco do Centenário, em Juiz de Fora, é incendiado”, do Tribuna de Minas (2020), e “MP pede preservação do Marco do Centenário de Juiz de Fora”, do Portal de Notícias G1 (2014), nas referências bibliográficas do capítulo.


Dalila Varela Singulane

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestra (2021) em História pela UFJF. Bacharela em História (2018) pela UFJF com habilitação em Patrimônio Cultural. Vinculada ao Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA-UFJF). Pesquisas e trabalhos na área de Racismo e Patrimônio Cultural, com foco em políticas públicas de preservação. E-mail: dalilavarela.s@gmail.com


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Colônia Rodrigo Silva em Barbacena – MG e a necessidade de se preservar a memória

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Alexandre Costa | As políticas públicas culturais e o desafio da universalidade

Quem caminha pelas ruas da Colônia Rodrigo Silva, em Barbacena, talvez não faça ideia de que ali foi a primeira experiência de colonização imigrante no estado de Minas Gerais. Inaugurada em 15 de abril de 1888, durante o reinado de D. Pedro II, o assentamento foi batizado com o nome do então ministro da Agricultura, grande motivador da colonização europeia. A Itália, recentemente unificada em 1870, vivia uma profunda crise social e econômica, com desemprego, fome e epidemias, em especial na região do Vêneto, na Lombardia. O Brasil, que necessitava de mão de obra para a manutenção da indústria do café, profundamente abalada pelo fim da escravatura, anunciada na Lei Áurea de 13 de maio de 1888, começou a se preparar para receber imigrantes europeus. A Colônia Rodrigo Silva, inaugurada em 15 de abril daquele mesmo ano, era uma das estratégias que buscavam amenizar o problema que se anunciava com o impedimento da mão de obra escravista. Assim, pela articulação do Império de D. Pedro II, inicialmente, 25 famílias italianas assentaram-se na Colônia Rodrigo Silva em 1888, com custeio das passagens e da moradia, subsidiadas pelo Estado.

Nesses mais de 130 anos, porém, não há referenciais visuais que confortem o olhar do observador, especialmente na arquitetura. A paisagem, rodeada por verdes pastos e contornada por capoeiras de araucárias que trazem o frescor da região da Mantiqueira, rivalizam com a caótica ocupação urbana, que se constituiu, ano a ano – ao que tudo indica – até o presente, sem planejamento. A referência ao passado efervescente de imigrantes se faz presente de outra forma: na Festa das Rosas, criada pelos imigrantes que comemoravam as colheitas todos os anos – fato que, aliás, fez Barbacena ser conhecida como a “Cidade das Rosas”, nos encontros anuais de família, nos antigos moinhos abandonados em fazendas, nos edifícios da Estação Sericícola – hoje, sede do Grupo de Teatro Ponto de Partida e da Universidade de Música Popular (Bituca) – erguida na antiga escola de ofício das operárias,  – e ainda, nos restaurantes que remetem à Itália, como Pavarotti, Tulha du Chef e Pesque e Pague Viol. Ao esvaziamento do lugar – pedra e cal – que tenta, com dificuldades, resistir à força implacável do tempo Cronos, paradoxalmente, prosperou em Barbacena-MG uma certa  identificação com a Itália, seja no esforço vanguardista de homens como Amílcar Savassi, que inaugurou uma nova dinâmica enquanto diretor da Colônia Rodrigo Silva, em fins do século XIX e início do século XX , em substituição à primeira fase de economia agrícola, com estudos e testes de amoreira e no cultivo de ovos do bicho da seda para a instalação da Estação Sericícola de Barbacena (a primeira indústria de seda do Brasil em 1912); ou mesmo Gino Calvi, proprietário do tradicional restaurante de massas Gino’s il Candelabro e fundador da Casa D’Italia em 2013; ou ainda na ressonância da parole nos significantes em sobrenomes que desenham o imaginário da Cidade das Rosas e que se encontram em toda parte: Bertolin, Bertola, Bertolucci, Ceolin, Discacciati, Romano, Paulucci, Savassi, Turquetti, Viol, entre outros. 

Amílcar Savassi, um inquieto empreendedor italiano, quando nomeado diretor da Colônia Rodrigo Silva em 1898, se propôs a impor um novo ritmo e transformar a matriz econômica do lugar, até então calcada na agricultura de subsistência. Retornou à Itália, em 1905, com apoio do Governo do Estado, para estudar, na Real Escola de Sericultura de Milão, todos os processos de produção da seda, e voltou à Barbacena cheio de ânimo para implementá-lo. Incentivou, na primeira década do século XX, o cultivo de amoreira – alimento do bicho-da-seda (Bombyx mori), além de outras iniciativas agropecuárias, como a plantação de uvas para produção de vinho. Neste mesmo tempo, como tinha bom trânsito com autoridades políticas, conquistou subsídios para compras de maquinário – que vieram da Itália e da Suíça – e transporte dos produtos da produção da seda pela via ferroviária. 

Localizada na antiga Fazenda do Facão, que pertencia ao Dr. Francisco Gustavo Pacheco Penna, a Estação Sericícola de Barbacena se tornou uma realidade através do Decreto Nº 9.662, de 10 de julho de 1912, sendo um marco também como uma das primeiras iniciativas de ofertas de trabalho feminino no setor industrial brasileiro. 

Em virtude deste rico passado, a Casa D’Italia de Barbacena-MG busca preservar essas memórias e experiências da imigração italiana. Fundada em 2013 por Gino Calvi, a entidade tem se dedicado à construção de um acervo fotográfico e documental, na assessoria para obtenção de cidadania italiana e na realização de uma feira anual, no campo de futebol do Grêmio – às margens da BR-338 (batizada de Rodovia dos Imigrantes pela Lei Estadual 9803/1989). Com sede própria, desde 2019, a Casa D’Italia se empenha em recuperar parte da cultura, esvanecida pelos anos na descaracterização urbana e no enfraquecimento das tradições. A Feira Italiana, que em 2023 caminha para a 12ª edição – em 2019 e em 2020 foi adiada em função da pandemia do Covid 19 – busca se reconectar a este passado para iluminar o presente. Porém, ainda esbarra em alguns equívocos, especialmente quando oferta alimentos no evento que não compõem a tradição culinária italiana. Um dos pontos cardeais da feira é a premiação “Italiano Vero”, concedida àqueles que prestaram relevantes serviços à comunidade. O título, que pode ser considerado uma espécie de invenção da tradição, como salientam Terence Ranger e Eric Hobsbawn (1997), na mesma medida, se configura como uma das principais referências simbólicas dos descendentes de italianos na colônia e ao passado de seus ancestrais, ofuscada pelos anos.

Neste esteio, os encontros de família parecem também manter viva essa chama. Nos encontros anuais da Família Viol, por exemplo, a tradição culinária é apresentada em uma mesa farta de variados tipos de massas, aliada a fotos de ancestrais na parede e objetos de antepassados que remetem ao passado imigrante. Reunidos com camisetas do brasão da família (adaptado da internet), os Viol relembram histórias antigas, enquanto se divertem e fortalecem seus laços. Os causos e feitos dos antepassados (com muita disposição para o trabalho duro na roça) são recontados, numa identificação Pós-Moderna, se poderia dizer, como aponta Stuart Hall (2015), de forma a atualizar essa “identidade” italiana, na medida em que se propõem, através destas memórias recordadas, ser uma chave para a compreensão do presente. 

Fazer o caminho às avessas, percorrer a trajetória dos antepassados a partir de fragmentos esparsos requer um grande esforço. Há lugares que só podem ser compreendidos pela experiência de se estar no lugar, como dizia Walter Benjamin. É através dela que nos abrimos à estética, à memória e construímos o significado das coisas, tal qual da ação do signo em Saussure. A grande descaracterização do tecido urbano, a pouca estruturação e preparo turístico são empecilhos a uma experiência mais qualificada, ao visitante, da importância da Colônia Rodrigo Silva. É quase que o papel de um arqueólogo o que  historiadores, memorialistas e descendentes de italianos fazem na busca de compreenderem o sentido deste signo da imigração em Barbacena-MG do final do Século XIX e início do Século XX. 

Em “Barbacena, ontem e hoje” (2015), de Doorgal Andrada e Angelo Oswaldo, essa percepção é latente quando percorrem as fotografias da cidade, comparando, em um mesmo plano, passado e presente: um passado de uma paisagem urbana exuberante e um presente cada vez mais confuso de sua identidade. A produção e disseminação do conhecimento tornam-se, assim, um imperativo do tempo presente, para que esse passado, tão rico e marcado por proeminentes personagens da vida pública, como Amílcar Savassi, pela transformação das relações de trabalho – na substituição ao escravismo e na ascensão e oportunidades das mulheres na produção industrial da seda – seja oportunizado a todos que queiram não só conhecer  as histórias que permeiam este núcleo crucial da vida e da identidade de Barbacena, que é a Colônia Rodrigo Silva, como também aprofundar tais conhecimentos. Neste sentido, o trabalho dos museus, como o Museu Municipal (que guarda uma diversidade de objetos, maquinário e fotografias da fundação do assentamento e da antiga Estação Sericícola), das instituições culturais como o grupo de teatro Ponto de Partida e da Universidade de Música Popular Bituca (instaladas nas dependências da antiga fábrica), da Casa D’Italia de Barbacena, dos pesquisadores (acadêmicos ou memorialistas), é fundamental para a preservação da memória e da história da imigração da Colônia Rodrigo Silva. Essa sinergia talvez seja a única saída possível para que este passado não seja, apenas, um retrato dolorido na parede, como a Itabira de Drummond, mas antes, um mapa de compreensão e interpretação do presente. 


Referências bibliográficas:

Andrada, Antônio Carlos Doorgal de. 2006. Um século de história – A imigração italiana em Barbacena (1888-1988). Barbacena: Gráfica e Editora Cidade de Barbacena.

Hall, Stuart. 2015. A identidade cultural pós-modernidade. Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro (trad.). 12ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina

Hobsbawm, Eric e Ranger, Terence. (Org.). 1997. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Savassi, Altair José. 1991. Barbacena 200 anos. V.1, Ed. Lemi S.A, BH, p. 267-268.

Alexandre Costa

Jornalista, doutorando em História (UFJF), docente do curso de Publicidade e Propaganda do Unipac Barbacena-MG.


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As políticas públicas culturais e o desafio da universalidade

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 34, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Carine Silva Muguet | As políticas públicas culturais e o desafio da universalidade

A política cultural tornou-se garantia após um longo processo que tem a Constituição Federal de 1988 como um marco. Contudo, a efetivação dos direitos do cidadão a partir de políticas públicas que garantam o acesso, fomento, liberdade de ideias e criação de uma maneira democratizante e universal não nos parece um trabalho simples. Para compreender a ideia de uma “política de cultura” no Brasil, consideramos essencial alcançar o conceito de cultura. Nesse sentido, entendemos que a palavra cultura transita em diversas vertentes sociais até alcançar o conceito sociológico, passando ainda pela interpretação na História, quando é utilizado enquanto campo metodológico. 

A Cultura se mostra, então, como um elemento de constante construção, relacionado às transformações da sociedade e, ao mesmo tempo, à expressão de saberes, do fazer, de linguagens e demais aprendizados construídos no tempo. Diversos pesquisadores analisam a Cultura como parte do cotidiano social e como força potente de integração, a partir de valores reforçados pelo Estado na construção simbólica da “identidade nacional”. Nessa perspectiva, vislumbramos que houve um processo de construção histórica da Cultura enquanto direito social no momento em que passou a ser interesse político na República, sendo fundamental a participação da sociedade no processo decisório. Já em ambiente democrático, ocorreram intensas mobilizações pelo fortalecimento do Ministério da Cultura e a manutenção da pasta, com a efetivação do incentivo à cultura através da Lei nº 8.313/1991, popularmente conhecida como Lei Rouanet, bem como outros instrumentos de fomento via incentivo fiscal. Em meados dos anos 2000 houve um forte estímulo a fóruns, conselhos e demais vias de participação popular para a construção do Plano Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura. 

Ademais, o processo de mobilização social para a efetivação de uma política nacional de cultura é visto como exemplo frutífero de gestão participativa. Nesse sentido, a gestão de cultura não deve ser espaço apenas da produção de eventos, mas do reconhecimento de tradições populares, lugares de memória, bens de interesse coletivo, de incentivo às artes em sua pluralidade, entre outras expressões da cultura na sociedade. A gestão cultural deve promover a identificação dos agentes culturais locais, construindo políticas públicas estruturantes, as quais tenham como finalidade a valorização das expressões artísticas de maneira contínua, reconhecendo a diversidade cultural existente nos territórios. A universalidade se apresenta, assim, como um desafio aos gestores e uma necessidade à promoção da cidadania.

Em que pesem todos os desafios de uma gestão pública democrática e de caráter universal, além de direito do cidadão é também dever dos governantes promover o diálogo e a participação da sociedade de maneira contínua. Logo, percebemos que o processo de transformação do entendimento da Cultura foi moldado a partir da própria dinâmica social, saindo do âmbito do lazer e passando a ser compreendida como aglutinadora social. Tal entendimento parte da ideia do sentido de memória, da construção da identidade do povo brasileiro e, por conseguinte, da ideia de pertencimento construída em comunidade, através das tradições, dos saberes e das expressões artísticas. 

O processo de consulta na construção do texto da Carta Magna pode ser entendido como o primeiro aceno do poder público à participação da sociedade nos processos de decisão. Deste modo, a atuação do Ministério da Cultura como condutor do projeto de construção de um PNC e do SNC fortaleceu o entendimento, através da Constituição Federal, de que a Cultura, enquanto direito do cidadão, é formada pelo caráter simbólico, voltado para a cidadania e fortalecimento da economia, do turismo e expressão da sociedade. 

Em âmbito municipal, destacamos que o grande desafio dos municípios é satisfazer os anseios da comunidade ao atender às diversas demandas sociais em todo o território. Por isso, as diretrizes criadas pela União a partir dos anos 2000 foram tão importantes ao destacarem, também, a relevância da participação social na construção de políticas públicas através dos conselhos. O mapeamento da realidade cultural em todo território também é compreendido como elemento fundamental para o fortalecimento das políticas de cultura. A partir dele, os gestores podem construir políticas de acesso mais efetivas e editais de fomento que permitam alcançar diferentes expressões artísticas.1 Isto posto, as políticas públicas de cultura não podem ser concebidas de maneira desatrelada do indivíduo. 

As dinâmicas sociais e suas mudanças também interferem na produção e no consumo cultural. Deste modo, a ideia de universalização não deve considerar somente o acesso, mas o reconhecimento, a valorização da liberdade artística na produção e no consumo da cultura de maneira diversa. Logo, os gestores devem estar atentos para a construção efetiva de planos condizentes com a realidade social, e o melhor caminho é através do fortalecimento dos espaços de diálogo e participação. 

No âmbito da gestão pública do patrimônio cultural são diversos os desafios, e muitos deles estão diretamente relacionados à estrutura dos setores de preservação. O que vislumbramos em diversos níveis dos órgãos são estruturas aquém das necessidades dos municípios, problemática que demandaria mais linhas de discussão para uma vastidão de apontamentos. Ainda que a principal política de fomento estadual tenha revolucionado o processo de patrimonialização de bens culturais em Minas Gerais, o Programa ICMS do Patrimônio Cultural (Lei Estadual 18.030/2009), gerido pela Fundação João Pinheiro e coordenado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), é no âmbito local que os gestores devem desenvolver ações de proteção e salvaguarda dos bens com regramento baseado nas realidades locais. 

Em Juiz de Fora a política de preservação de bens culturais tem mais de três décadas de existência e já tombou duas centenas de bens materiais e uma dezena de bens imateriais. Entretanto, questionamos se essa “preservação institucional” representa de fato a população juiz-forana. O mapa a seguir representa os bens culturais tombados em Juiz de Fora entre as décadas de 1980 e 2020. Esses objetos concentrados na porção central do mapa fazem parte do núcleo histórico da cidade de Juiz de Fora, cujos bens estão localizados, na sua maioria, nos bairros Centro, Granbery, Mariano Procópio, Morro da Glória, Santa Helena, São Mateus e Alto dos Passos, e refletem a política municipal de preservação que teve a sociedade como principal vetor de mobilização contra as demolições intensificadas no processo de modernização das cidades médias na década de 1970. Nesse processo, edificações consideradas emblemáticas e de estilos arquitetônicos representantes da fase econômica mais pulsante da cidade, de construções ecléticas e art déco, foram privilegiadas pelos tombamentos municipais. Embora não tenhamos construído um mapa demonstrativo das áreas de ocorrência dos bens imateriais, podemos afirmar que eles são diversos e a maior parte deles não está restrita ou relacionada a lugares2.

Mapa de bens tombados do município de Juiz de Fora: zona urbana – elaborado por Amanda Schelgshorn Pereira, arquiteta e urbanista, Supervisora de Escritório Técnico DMPAC/Funalfa. Fonte: Google Earth, editado por Sophia Soares Pereira Magalhães. Acervo Funalfa, 10 de maio de 2023.

Nessa perspectiva de ampliar o olhar para objetos e referências culturais que representem de fato a comunidade, ou seja, numa perspectiva democratizante, realizamos em 2022 os inventários do patrimônio cultural com a metodologia participativa no distrito de Sarandira. Após diversas pesquisas e planejamentos para a construção de uma metodologia efetiva para a necessidade do departamento, realizamos entre os meses de julho e dezembro de 2022 diversas visitas à comunidade. Através de ferramentas como os mapas de percepção, com reuniões de grupos e entrevistas em profundidade, inventariamos 09 (nove) bens com a metodologia participativa e atualizamos mais 12 (doze) bens cujas fichas já haviam sido produzidas em 2005. Para que isso fosse possível, realizamos parcerias e muita mobilização social.  

O local, que dispõe de dois bens tombados, a Igreja de Nossa Senhora do Livramento e um Casarão, recebeu com muito entusiasmo a equipe formada por técnicos da Funalfa e do Projeto de Extensão Inventários Participativos, coordenado pela professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFJF, Dnd. Mariana Cury. A comunidade apontou aos técnicos os lugares, espaços, pessoas, referências e objetos que fazem parte da identidade da população. O trabalho é entendido como um marco na cidade e de extremo impacto social. Entre as fichas elaboradas, destacamos a personalidade Dona Jovina, cuja trajetória de vida e o ofício de parteira lhe renderam destaque em razão da importância de seu trabalho. A representatividade dela para a comunidade está traduzida no desejo dos moradores em batizar a UBS de Sarandira em sua homenagem. O resultado dos Inventários Participativos de Sarandira estão sendo compilados pela equipe de trabalho em um ebook que deve ser lançado em agosto, como parte das comemorações do mês do patrimônio cultural. 

[1] Em Juiz de Fora, o CAD Cultural tem o objetivo de obter dados para a elaboração de políticas mais adequadas à classe artística juiz-forana, considerando, sobretudo, os mestres do saber e representantes da cultura popular. https://www.pjf.mg.gov.br/administracao_indireta/funalfa/cadcultural/

[2] O site da Prefeitura de Juiz de Fora possui todas as listas de bens tombados, registrados e inventariados no município de Juiz de Fora. https://pjf.mg.gov.br/administracao_indireta/funalfa/patrimonio/


Referências bibliográficas:

Aragão, Ana Lúcia. 2014. Um panorama das constituições brasileiras: o tratamento dado aos direitos culturais.pragMATIZES – Revista Latino Americana de Estudos em Cultura. Niterói.Ano 4, N. 7 [2], setembro 2014, p.7-23

Botelho, Isaura. 2001. Dimensão da Cultura e Políticas Públicas. São Paulo em Perspectiva. N.15 [2].  p.73-83

Brasil. Ministério da Cultura. 2007. Política Cultural no Brasil, 2002-2006: acompanhamento e análise. Frederico A. Barbosa da Silva (Org.). Coleção Cadernos de Políticas Culturais. V. 2. Brasília: Ministério da Cultura, 220 pp.

Brasil,  Senado Federal. 1988.  Constituição da República Federativa do Brasil,Disponível online https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf

Hall, Stuart. 2006.  A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora. 102pp.

Leite, Ana Flávia C. S.2015. Políticas públicas para cultura:concepção, monitoramento e avaliação. Dissertação. São Paulo: USP,121pp.


Carine Silva Muguet

A autora é Mestre em História Social pela UFRJ e historiadora da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage, onde atua como Supervisora de Pesquisa e Educação Patrimonial do Departamento de Memória e Patrimônio Cultural (DMPAC/Funalfa), órgão de administração indireta da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora – MG. Desenvolve trabalhos relativos à gestão e salvaguarda de bens culturais, com enfoque em pesquisa e elaboração de atividades de educação patrimonial. http://lattes.cnpq.br/4873576691985729


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Historiografia da escravidão brasileira

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 33, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Yngrid Teixeira | Historiografia da escravidão brasileira

Resumo: Nesse trabalho, apresentamos um breve panorama das disputas narrativas promovidas no campo da historiografia brasileira a respeito da escravidão, pensando a maneira pela qual as diferentes tradições interpretaram e reinterpretaram a figura do escravizado em sua relação com a sociedade colonial. Nesse percurso, pensamos as contribuições de Gilberto Freyre, da Escola Paulista de Sociologia, das interpretações culturalistas, da Nova História Social e, por último, dos movimentos de releitura historiográfica inaugurados a partir dos anos 1970 e 1980.

Palavras-chave: Escravidão. Historiografia. Narrativas. 

Abstract: In this work, we present a brief overview of the narrative disputes promoted in the field of Brazilian historiography regarding slavery, thinking about the way in which the different traditions interpreted and reinterpreted the figure of the enslaved in their relationship with colonial society. In this path, we think about the contributions of Gilberto Freyre, from the Escola Paulista de Sociologia, from culturalist interpretations, from the New Social History and, finally, the historiographical rereading movements inaugurated from the 1970s and 1980s onwards.

Key words: Slavery. Historiography. Narratives.

Riepilogo: In questo lavoro, presentiamo una breve panoramica delle controversie narrative promosse nell’ambito della storiografia brasiliana sulla schiavitù, riflettendo sul modo in cui le diverse tradizioni hanno interpretato e reinterpretato la figura dello schiavo nel suo rapporto con la società coloniale. Lungo il percorso, pensiamo ai contributi di Gilberto Freyre, alla Escola Paulista de Sociologia, alle interpretazioni culturaliste, alla Nuova Storia Sociale e, infine, ai movimenti di rilettura storiografica inaugurati a partire dagli anni Settanta e Ottanta.

Parole chiave: Schiavitù. Storiografia. narrazioni.

***

No Brasil, a escravidão ganha relevância enquanto objeto de análise historiográfica por volta dos anos 1930, com a publicação do livro “Casa-grande e senzala”, por Gilberto Freyre. Na contramão dos estudiosos da época, Freyre argumentava que o escravismo foi o elemento problemático da colonização, e não a presença negra no país. Levando em consideração as contribuições africanas na cultura brasileira e atacando o pensamento racista hegemônico da época – no qual discursos pelo embranquecimento da população tornaram-se comuns -, defendeu a miscigenação como algo positivo e particular ao nosso povo. Observamos, então, uma primeira tentativa histórico-sociológica de reposicionar a figura do negro e do indígena. Essa argumentação perpassa, no entanto, pela atribuição de um aspecto brando às relações senhor-escravo que culminaria na criação do mito da democracia racial brasileira. (Palermo 2014)

Outros estudiosos abordaram, de maneira diferente, os efeitos da escravidão sobre as estruturas sociais, econômicas e culturais brasileiras, elaborando críticas a partir dos mais diversos tons e posicionamentos ideológicos. Da Escola Paulista de Sociologia, entre os anos 1950 e 1970, vieram importantes representantes desses estudos, como Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes. Partindo de interpretações de cunho marxista, eles liam a escravidão como uma forma de mobilização e coerção da mão de obra indispensável na acumulação de capital. Tais critérios de análise foram importantíssimos no entendimento da escravidão como um fenômeno global e imprescindível na consolidação da economia capitalista. No entanto, preocupados em explicar os fatores que levaram à inserção do Brasil no capitalismo comercial em expansão, esses intelectuais criaram parâmetros de análise que inflexibilizavam as relações entre a base trabalhadora e o restante da sociedade, limitando-as a um padrão dicotômico de exploração senhor-escravo.  (Palermo 2014)

Na década de 1960, E.P. Thompson estruturou uma linha de pensamento conhecida como “História vista de baixo”, partindo do pressuposto de que os princípios socioculturais hegemônicos não são necessariamente absorvidos por todas as classes por eles pressionadas, e, por isso, as classes subalternas criam, em resistência, modos de vida próprios. (Zubaran 1998) Em consonância às interpretações neomarxistas, considerava a história como fruto da vivência dos homens e de sua relação com os outros, com a natureza e com o trabalho. A cultura, portanto, sai de um campo meramente ideológico e torna-se a manifestação da experiência humana que, estando sujeita às transformações da luta de classes, articula as práticas sociais. (Martins 2006)

No âmbito da história social da escravidão brasileira, a leitura de Thompson alargou a definição de resistência escrava, até então associada a episódios de resistência mais palpável, como revoltas ou aquilombamentos, incluindo nela o trato do cotidiano, pelo qual os cativos criavam e ocupavam seus próprios espaços. A relação senhor-escravo passa, então, por um processo de revisão no qual se reconhece nela uma maior complexidade: considerando a efetividade da ação do sujeito escravizado, compreende-se que sua integração à sociedade perpassa a acomodação, a negociação e o enfrentamento contínuos entre as esferas sociais dominante e subalternizada. Depois, com base na ideia de que quase qualquer vestígio da ação humana poderia ser explorado no fazer historiográfico, a Escola dos Annales iniciou um movimento de ampliação da ideia de “fonte histórica”. (Zubaran 1998) Ao postular que documentos não oficiais e não escritos poderiam ser úteis na compreensão das representações coletivas que constituem os vários espaços de pertencimento e exclusão de uma sociedade, a nova história social francesa disponibilizaria uma gama de ferramentas de análise para os estudiosos da escravidão. Tendo sua produção acadêmica voltada ao estudo das relações sociais nas Minas Gerais do período colonial, Júnia Furtado nos conta que

(..) Isso permitiu a reconstrução do dia-a-dia de seus habitantes, utilizando, entre outros, os censos populacionais, os registros de batismo, as devassas episcopais, a iconografia, os  ex-votos,  os  compromissos  de  irmandades,  os  livros  que  circularam  na capitania,  as  edificações,  o  próprio  espaço  urbano  e  mais  raramente,  porque mais incomuns, as cartas, os diários, etc. (Furtado 2009, 119)

A elaboração de uma nova história social passa, ainda, pela argumentação de historiadores italianos que, nos anos 1970, instituíram categorias de análise micro-históricas. Ao passo que a atmosfera historiográfica voltava-se para a organização de tipos macrossociais, a micro-história visava investigar a experiência social por meio da particular, reduzindo a escala de análise dos objetos. (REVEL 1998) Partindo dos trabalhos de Ginzburg e Levi, as produções acadêmicas do gênero investem na investigação de trajetórias individuais, centradas na vivência de uma pessoa ou de uma comunidade, por exemplo. Mediante a observação palpável dos comportamentos e das estratégias mobilizadas por diferentes agentes sociais seria possível, nessa perspectiva, compreender melhor as modalidades de agregação social pelas quais as identidades coletivas são criadas e transformadas. (Revel 2010)

Sob a influência destas últimas três correntes, as concepções gerais sobre a escravidão brasileira passam, a começar pela década de 80, por um processo de revisão e ressignificação. Nesse período, desenvolvem-se no país novas discussões historiográficas viabilizadas pelo crescimento dos programas de pós-graduação e pelo intercâmbio de experiências com pesquisadores estrangeiros. As novas análises desenvolvem-se sobre uma postura crítica à ideia da passividade escrava, muito presente na construção das narrativas anteriores sobre o tema. 

Nas categorias de problematização revisionistas, a historiografia tradicional desqualificava a ação do sujeito escravizado, já que lia as estruturas escravistas exclusivamente por suas relações verticais e exploratórias, ignorando que a figura histórica do cativo perpassa, antes, por sua humanidade, referindo-se a uma pessoa com sentimentos, pensamentos e capacidades de ação. Isso definiu a escravidão como um processo de aniquilação da humanidade e do indivíduo. Dessa forma, buscando reconhecer os valores e o universo sociocultural que emanavam da população de cor no Brasil colonial, estudos revisionistas vêm explorando a experiência dos grupos sociais subalternos utilizando-se, para isso, de uma gama diversificada de fontes e, muitas vezes, da variação nas escalas de análise. (Furtado 2009)

E é em conformidade com esse movimento de identificação e incorporação da agência escrava na construção de nossa sociedade que surgem pesquisas que entendem que a escravidão, como uma prática social de apropriação do corpo negro e indígena para o trabalho, foi a base da construção do conceito de raça no Brasil. Sob essas condições, fabricaram-se nossos padrões de trabalho e uma hierarquia sociorracial cujas consequências a maior parte da população ainda sente na pele. (Fischer, Grinberg e Mattos 2018)

Dessa forma, confeccionar uma narrativa voltada à ação dos homens e mulheres sistematicamente explorados pelo regime escravista é trazê-los para o centro da construção narrativa, pensando-os enquanto sujeitos ativos que foram pressionados pela e pressionaram a ordem colonial, resistindo, adaptando, integrando e ressignificando a sociedade luso-brasileira em prol de suas necessidades.


Referências bibliográficas

Fischer, Brodwyn, Keila Grimberg e Hebe Mattos. Direito, silêncio e racialização das desigualdades na história afro-brasileira. Estudos afro-latino americanos: uma introdução. Buenos Aires: Clasco, p. 163-215, 2018.

Furtado, Júnia Ferreira. Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 2, n. 2, p. 116-162, 2009.

Martins, Suely Aparecida. As contribuições teórico-metodológicas de E. P. Thompson: experiência e cultura. Em Tese, v. 2, n. 2, p. 23-36, 2006.

Palermo, Luis Claudio. Disputas no campo da historiografia da escravidão brasileira: perspectivas clássicas e debates atuais. Dimensões–Revista de História da Ufes, Espírito Santo, v. 39, p. 324-347, 2017.

Revel, Jacques. Microanálise e construção social. Jogos de escalas. A experiência da microanálise, p. 151-72, 1998.

Rvel, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista brasileira de educação, v. 15, n. 45, p. 434-444, 2010.

Zubaran, Maria Angélica. Repensando o passado escravista no RS: Entre a História social e a nova história cultural. Revista Sociais e Humanas, v. 11, n. 1, p. 90-101, 1998.


Yngrid Teixeira

Graduada em História pela UFJF, Graduanda em Pedagogia, Pós-graduada em Educação Especial (lato sensu), mestranda na UFJF.


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Autores:
Valeria Ferraz Severini
Joyce Falci
Adrielly Ramos
Marina Coelho
Dalila Varela Singulane
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Carine Silva Muguet
Yngrid Teixeira

Capa:
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Coordenação Geral:
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Dalila Varela

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Captação e edição de áudio e vídeo:
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Apoio:
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Vinícius Sartini
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Arlene Xavier Santos Costa
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Realização:
Duplo Estúdio de Criação
Departamento de Cultura da Associação Casa de Itália

Periodicidade:
Mensal

ISSN: 2764-0841