REVISTA CASA D’ITALIA – Ano 04, nº31, 2023

Ano 04, nº31, 2023 – Edição ‘Fascismos: Perspectivas entre Itália e Brasil’ – ISSN: 2764-0841

Editorial

Neste mês de fevereiro, a Revista Casa D’Italia lança seu 31º volume, trazendo à pauta uma discussão de extrema relevância para os dias atuais. Falaremos um pouco sobre o Fascismo e suas perspectivas entre a Itália e o Brasil. 

Trazer esse tema, que vem sendo cada vez mais discutido no Brasil e no mundo, é uma tentativa de entender os pontos que trazem ao cerne da questão suas ideologias, dando luz a algumas ramificações das raízes dessa problemática. Na Itália, temos não somente a origem desses movimentos em seu passado, mas também uma retomada ideológica, com a ascensão de uma extrema direita. Assim como no Brasil nos últimos anos, que viu transparecer as raízes de um conservadorismo extremo, marcado por movimentos de cunho fascista, até chegar ao “8 de janeiro”, quando o país viu transbordar as margens da democracia em cenas de terrorismo na capital. 

Trazemos para a discussão dessa temática autores pesquisadores que farão análises entre as perspectivas dos dois países e também a respeito de questões que envolvem a América Latina. Por isso, este é um convite aos leitores da Revista Casa D’Italia a estarem conosco neste volume e a acompanharem e refletirem sobre essa discussão através dos artigos.  

A Revista Casa D’Italia é uma realização da Duplo Estúdio de Criação, em parceria com o Departamento de Cultura da Associação Casa D’Italia. Essa iniciativa tem o apoio das empresas e associações Imo Experiência Turística, Curso de Língua e Cultura Italiana, Grupo de Dança Folclórica Italiana Tarantolato, Lectio Soluções Linguísticas e Estúdio de Arte Ponto Três. Contamos ainda com o apoio de Cristina Njaim Coury, Patrícia Ferreira Moreno, Rafael Moreira, Arlene Xavier Santos Costa, Louise Torga, Paulo Jose Monteiro de Barros, Vinícius Sartini, Ana Lewer, Thaiana Fernandes, Rafael Bertante e Paola Frizero, que, através da plataforma Apoia-se, nos incentivam mês a mês a continuar investindo na cultura e a trazer discussões a respeito da nossa sociedade.

Desejamos a todos e todas uma ótima reflexão!


O fascismo, entre interpretações e debates

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Juliana Coelho Pereira | O fascismo, entre interpretações e debates

O fascismo italiano é objeto de discussões entre os intelectuais há tempos, e cada vez mais vem sendo mobilizado para compreender conjunturas políticas que compartilham características semelhantes a esse fenômeno. Como um período histórico que transformou o cenário político do século XX, analisar seus usos e definições é indispensável na compreensão de suas permanências e transformações na atualidade.

Com a ascensão da extrema direita em escala global, é frequente a mobilização da palavra “fascista” para designar figuras ou movimentos que incorporam, em seus princípios ideológicos, práticas autoritárias e violentas — como podemos observar nas mobilizações de oposição aos governos de Bolsonaro, no Brasil, e de Donald Trump, nos Estados Unidos, por exemplo. Essa associação ao fenômeno do fascismo italiano não surge ao acaso e possui em seu uso uma razão de ser, sobretudo pela mobilização emocional e coletiva de seu caráter desmoralizante. O uso popular do conceito de maneira geral é compreensível, mas não traz, de imediato, uma rigidez conceitual. Logo, se desejamos compreender e analisar os fascismos em suas dimensões históricas e ideológicas, as barreiras conceituais se complexificam e sua definição se torna objeto de discussões, consensos e controvérsias entre uma ampla rede de intelectuais que se dedicam a estudá-los.

É incontroverso que o fascismo foi o nome dado à força política chefiada por Mussolini entre 1919 e 1945, que se tornou a base ideológica do regime instaurado na Itália entre 1925 e 19431. Com o culto a um líder, uma forte mobilização das massas e um nacionalismo de Estado orgânico e paramilitar, o fascismo na Itália se tornou um dos grandes movimentos políticos do século XX. Germinado em um contexto de crise no pós-Primeira Guerra Mundial, as particularidades presentes dentro da Itália condicionaram a construção do fascismo enquanto regime. Com divergências a respeito da guerra, o Estado italiano se viu debilitado e os principais partidos foram divididos. Nessa conjuntura, em março de 1919, Mussolini funda os Fasci di Combattimento (grupo de combatentes), juntamente com outros 190 membros. Formado por antigos soldados, sindicalistas revolucionários e intelectuais futuristas — que conjugavam sindicalismo com nacionalismo —, o movimento cresce rapidamente, sendo rebatizado como Partito Nazionale Fascista. Em outubro de 1922, ocorre a marcha sobre Roma, considerada a efeméride fundacional do fascismo italiano.

Milhares de “camisas negras” desfilam em frente ao Palácio Quirinal, residência real em Roma, saudando Mussolini, recém-nomeado Primeiro Ministro da Itália, em 31 de outubro de 1922.

Porém, se o fascismo de Estado na Itália possui suas origens na ascensão de Mussolini, os aspectos ideológicos que o incorporam são anteriores. As origens intelectuais que sustentam a base ideológica do regime são encontradas em diversos pensadores, principalmente entre os anti-iluministas. O darwinismo social, que irá inspirar o nazifascismo na Alemanha, a psicologia das multidões de Gustave Le Bon e os pressupostos de George Sorel são algumas das ideias que foram apropriadas e desviadas pelo fascismo, tanto por Mussolini quanto por Hitler. As contradições inerentes às origens do fascismo italiano, como, por exemplo, a abrangência de tendências advindas de diferentes países — às vezes antagônicas entre si —  e apropriadas e reformuladas ao estilo fascista; a cooptação de mulheres para suas fileiras, sendo o fascismo um fenômeno fortemente masculinista; e seu caráter revolucionário, ao mesmo tempo em que se aliava a setores conservadores, não significa que o fascismo seja irracional ou incoerente. Pelo contrário, as ambivalências pertencentes ao movimento fascista dizem respeito à sua necessidade de mobilização e cooptação das massas, sobretudo dos mais jovens. Compreender esses aspectos é importante para não cairmos na tentativa de caracterizar as origens do fascismo italiano unicamente na rejeição da razão. Os fascismos possuem uma coerência interna que só é passível de compreensão se levarmos em consideração o que os próprios fascistas estão dizendo sobre si mesmos, analisando assim o seu modo de operação.

            Com o objetivo de corporizar as características mais importantes dos fascismos e estabelecer um paradigma capaz de identificar movimentos como fascistas ou não, abordagens marxistas, weberianas e totalitaristas oxigenaram o debate nas últimas décadas2. Os marxistas, em grande medida, tendem a enfatizar os vínculos do fascismo com o capitalismo e a pequena burguesia,  relacionando-o com as lutas sociais do início do século XX. Para os weberianos, o fascismo era principalmente um movimento antimoderno, gestado em um contexto de crise e resultante da convergência das elites pré-industriais com os produtores rurais e a pequena burguesia. Já as abordagens mais atualizadas, que estruturam a interpretação do fenômeno pela chave do totalitarismo, ressaltam seu caráter revolucionário, levando a sério os planos e ideias fascistas, compreendendo-o como uma ideologia política3. Todas as três principais correntes de interpretação do fascismo possuem suas problemáticas. Porém, isso não significa que não possamos utilizá-las na interpretação e análise para estabelecer uma definição. Pelo contrário, o uso de uma tipologia que o caracterize é imprescindível para mapearmos movimentos fascistas, mas isso necessita ser feito com a consciência dos limites de cada interpretação.

Compreendendo-o como uma ideologia política, podemos afirmar que o fascismo na Itália se expandiu de tal maneira que seus pressupostos ideológicos inspiraram a criação de movimentos em diversos países. Isso significa que, apesar de ser um fenômeno ocorrido em um determinado momento da história, sendo esse o único consenso nas discussões sobre sua definição, o fascismo extrapola suas fronteiras enquanto regime ditatorial. Como ideologia política, os fascismos passaram por transformações e adaptações que garantiram sua sobrevivência até a atualidade, ainda que de maneira marginal. Dito isso, ao compreendermos então a existência de “fascismos”, uma questão se torna essencial para explicar seus contornos fora da Itália: quais são as características presentes nesses grupos em diferentes países que nos possibilitam caracterizá-los enquanto movimentos fascistas?

Inspirado pelo fascismo de Mussolini, intelectuais e políticos em países como o Brasil, por exemplo, criaram seus próprios movimentos. A Ação Integralista Brasileira (AIB) foi a expressão do fascismo mais notório fora da Europa. Além do Brasil, países como Inglaterra, Romênia, Hungria e França também criaram suas próprias expressões da ideologia fascista. Todos estes movimentos possuíam uma característica fundamental intrínseca ao fascismo que os caracterizava como tal: um ultranacionalismo palingenésico. Conceito formulado pelo autor britânico Roger Griffin (1993, p.62), o ultranacionalismo palingenésico é, em linhas gerais, o mito político da renovação nacional, que ocorre após um período de decadência e que é incompatível com as instituições liberais ou com a tradição do humanismo iluminista que as sustenta, sendo, portanto, ultranacionalista. Esse conceito, dentre as correntes de interpretação dos fascismos, é o que melhor constrói um núcleo comum tanto aos fascismos de Estado, como na Itália e Alemanha, quanto aos movimentos fascistas ao redor do mundo. A aplicação deste “mínimo fascista” é útil sobretudo para a análise teórica dos movimentos fascistas.

Portanto, é importante considerar que os fenômenos fascistas se estendem para além do período entreguerras, assim como não foram um fenômeno exclusivamente europeu. O fascismo enquanto regime, que surge na Itália em 1925, é a primeira expressão do fascismo enquanto tal, que só foi possível devido a um conjunto de fatores do entreguerras que condicionaram o surgimento de um movimento de massas, com um líder carismático que ascendeu ao poder implementando um regime ditatorial. Esses fatores são específicos do contexto italiano, já que outros países inspirados pelo fascismo na Itália não chegaram a dominar o Estado. Sua expressão estatal semelhante ocorreu, no entanto, na Alemanha Hitlerista. O nazismo pode ser caracterizado a partir de seu mito fundador com base na raça, que o diferenciam do regime de Mussolini, que tinha como mito fundador a criação de um Estado forte e orgânico. Porém, os dois se assemelham pelo “mínimo fascista”, ou seja, o ultranacionalismo palingenésico. Tanto na Alemanha, quanto na Itália, o mito da renovação nacional incompatível com as instituições liberais está presente, apesar de sua mobilização ser pautada em aspectos diferentes: o da raça e a do Estado forte. Para além dos dois modelos paradigmáticos, uma ampla rede de movimentos fascistas surgiu no século XX, marcando a história política contemporânea. Ainda atualmente, alguns grupos e tendências políticas evocam esse passado, dando continuidade à história do fascismo e da atualidade do neofascismo.

[1] GRIFFIN, Roger. The Nature Of Fascism. Nova York: Routledge, 1993, p.17

[2] PASSMORE, Kevin. Fascismo: uma breve introdução. São Paulo: Dialética, 2002, p. 15-39

[3] Idem


Juliana Coelho Pereira

Estudante de graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é pesquisadora júnior do Observatório da Extrema direita (oedbrasil.com.br – CNPq/UFJF). Tem interesse em História Contemporânea, na área de pesquisa relacionada aos estudos dos fenômenos de extrema direita global, com ênfase no terrorismo na extrema direita.


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As roupagens do fascismo no Brasil: uma análise do integralismo

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Tamires Rosa e Milene do Carmo Gomes | As roupagens do fascismo no Brasil: uma análise do integralismo

O movimento fascista de maior êxito na América Latina. Assim é conhecido o integralismo, que, através da Ação Integralista Brasileira (AIB), criada em 1932, tornou-se o primeiro partido político de massas do Brasil. Apesar da importância histórica do movimento, os historiadores passaram a enxergar o integralismo como um objeto de análise apenas a partir da década de 1970. Desde então, os estudos têm se expandido em temáticas e abordagens. Neste artigo, buscamos trazer um panorama do que foi o movimento e suas reverberações na história política brasileira.

Antes mesmo da fundação da AIB, já existia um fluxo de debates em torno do nacionalismo. O escritor e jornalista Plínio Salgado participara da Semana de Arte Moderna, em 1922, estando ligado ao movimento verde-amarelismo. Em 1930, ele encontra-se com Benito Mussolini em Roma, estabelecendo laços de simpatia na esfera política da extrema-direita. Assim, um novo projeto autoritário, conservador, antiliberal, anticomunista e antidemocrático passa a ser pensado para o país.

Ao retornar ao Brasil e, posteriormente, com Getúlio Vargas já no poder, Salgado inicia suas contribuições para o jornal A Razão, ligado ao banqueiro Alfredo Egídio de Sousa Aranha. Ali, foi articulado um projeto intelectual que levou à formação da Sociedade de Estudos Políticos (SEP), no início de 1932. Nesse período, destaca-se, também, a ascensão da Ação Social Brasileira, da Legião Cearense do Trabalho e da Ação Imperial Patrianovista Brasileira, organizações que se inscrevem no espectro político da direita e do conservadorismo.

A SEP foi um movimento protofascista, atuando no âmbito intelectual e cultural. Porém, não demorou muito para que as ambições de Plínio Salgado desejassem a incorporação de uma dimensão política e partidária, culminando na criação da AIB. Dessa forma, sob a liderança de Salgado e tendo como base o Manifesto de Outubro, a AIB foi fundada na capital paulista e logo iniciou sua expansão pelo país, alcançando milhares de pessoas por meio da criação de núcleos municipais.

No plano das ideias, almejava-se a construção do chamado Estado Integral. Essa proposta consistia em um projeto antidemocrático, de caráter espiritualista, que buscava a harmonia social, negando a luta de classes para manter, de certo modo, a estrutura social vigente. Visava-se combater tanto o liberalismo quanto o comunismo, a fim de criar um Estado forte, de bases corporativas, revitalizando o capitalismo. Além disso, ainda que o catolicismo não fosse instituído como a religião oficial da AIB, as influências da moral cristã faziam-se presentes no integralismo.

Contudo, essas proposições não eram de pleno consenso, sendo alvo de discordâncias dentro do movimento. Dentre as lideranças da AIB, destaca-se a tríade chefia integralista: Plínio Salgado e seu cristianismo social; Gustavo Barroso, com um viés antissemita; e Miguel Reale, intelectual idealizador de uma estrutura social, política e econômica. Apesar dessa diferenciação, é importante ter em vista que essas ideias circulavam no meio social e político da época, influenciando não só os processos de tomada de decisão das lideranças, mas também as ações e os posicionamentos dos membros da AIB.

Reconhecer um (ou uma) integralista, nos anos 1930, não era, necessariamente, uma tarefa difícil: camisas ou blusas-verdes, o lema “Deus, Pátria e Família”, um símbolo que trazia a ideia de síntese integral — o Sigma (Σ) — e uma saudação em tupi — Anauê! (“você é meu parente”) —, seguida por um gesto com o braço direito estendido, caracterizavam o movimento. Também existiam datas e festividades integralistas, além de um código de protocolos e uma rígida hierarquia a serem seguidos por todos os membros.

As chamadas blusas-verdes viam no integralismo a possibilidade de ter voz em uma política majoritariamente masculina, ainda que tivessem funções e limites de atuação bem definidos. Exerciam atividades que estendiam o seu papel no lar, valorizando a feminilidade e maternidade, bem como a educação dos futuros integrantes do Estado Integral. Os jovens seriam educados à luz da religião cristã e do modelo de nação proposto pelo integralismo.

Departamento Feminino e de Juventude, década de 1930. Fonte: Wikimedia Commons.

Desse modo, a Secretaria Nacional de Arregimentação Feminina e dos Plinianos era responsável por atender às mulheres e aos jovens integralistas, também chamados de plinianos. Assim que as crianças nasciam, já passavam por um batizado nos moldes do integralismo. Quando crescidas, eram introduzidas nas fileiras da Juventude Integralista, havendo a valorização incisiva do militarismo e do civismo. Desse modo, blusas-verdes e plinianos estavam incorporados na lógica do movimento, que adentrava os lares em termos ideológicos e doutrinários.

A relação entre a AIB e a imprensa era muito íntima, atuando como mecanismo de circulação da doutrina do movimento, cooptação social e formação militante. Para isso, foi criado o consórcio jornalístico Sigma Jornais Reunidos em 1935, que reunia 138 periódicos. As publicações tinham circulação nacional, regional e nuclear, sendo que os jornais Monitor Integralista e A Offensiva tinham abrangência nacional. Percebe-se, portanto, que os integralistas estabeleceram a maior organização de imprensa político partidária da História do Brasil.

Em 1935, a AIB tornou-se um partido político, visando fins eleitorais. Embora em uma primeira fase o movimento se afastasse da ideia político-partidária, a mudança institucional ocorreu de maneira estratégica, tendo em vista o apoio ideológico das massas. Assim como todos os outros partidos políticos, a AIB foi extinta em 1937 após a instauração do Estado Novo pelo presidente Getúlio Vargas. No entanto, isso não significou o fim do integralismo.

Vale ressaltar que a presença de integralistas no processo de organização do Estado Novo trouxe esperança a Plínio Salgado. A partir disso, os integralistas marcharam em saudação a Getúlio Vargas, demonstrando a força do movimento e o apoio ao presidente, que prometeu o Ministério da Educação a Salgado. Todavia, Vargas não cumpriu a promessa. Nesse sentido, em maio de 1938, personagens integralistas invadiram o Palácio da Guanabara, o que culminou no exílio de Plínio Salgado em Portugal entre os anos de 1938 e 1946.

Nos três primeiros anos do exílio, Salgado tentou acordo com Getúlio Vargas para retornar ao Brasil, mas não obteve sucesso. Entre 1942 e 1946, a partir do contato com a intelectualidade do Estado Novo de Salazar, grupos de direita radical e a Igreja Católica, Salgado proferiu inúmeras conferências e publicou dez livros com a tônica espiritualista cristã. Ressignificando o conceito de democracia cristã, o intelectual criou o Partido de Representação Popular (PRP) no Brasil, em setembro de 1945.

O PRP significou uma nova roupagem do integralismo, que nesse momento buscava afastar-se da caracterização fascista. O Manifesto-diretiva, de 1945, explicitava a reorientação doutrinária integralista, dando ênfase ao caráter espiritualista cristão e anticomunista do partido. Salgado encontrou um cenário de complexa hostilidade no Brasil, em virtude de sua associação com países do Eixo na Segunda Guerra Mundial, e ainda pelo fato de o integralismo equivaler ao fascismo, força que deveria ser combatida.

Apesar do contexto político hostil, Plínio Salgado concorreu à Presidência da República no ano de 1955, obtendo cerca de 8% dos votos, o suficiente para atrair os simpatizantes com a maior votação da história do integralismo. Destaca-se que Salgado foi eleito deputado federal em 1958 e 1962 pelos estados do Paraná e de São Paulo, respectivamente. Outros integralistas também alcançaram o poder nesse período. Já em 1964, o PRP apoiou o golpe civil-militar em conjunto com outros grupos conservadores, sendo dissolvido em 1965, com o Ato Institucional nº 2.

A partir do exposto, é possível perceber que as articulações do integralismo estão para além da AIB ou do contexto de emergência dos fascismos na década de 1930. Embora haja processos históricos específicos, o fascismo pode ser entendido como um fenômeno transnacional, cultural e político, que permeia mentalidades e construções da realidade ainda no tempo presente.

Assim, os estudos sobre o fenômeno mostram-se relevantes à medida que ele não se encontra engavetado no passado, mas sim, busca circunscrever um novo horizonte em que imperam opressão e ameaça à democracia. Esta, por sua vez, deve ser resguardada, uma vez que assegura as mínimas condições para que se respeite a vida, em suas múltiplas formas, e os direitos humanos.


Referências bibliográficas:

CALIL, Gilberto Grassi. O Integralismo no processo político brasileiro – PRP entre 1945 e 1965: Cães de Guarda da Ordem Burguesa. Niterói, 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2005.

GONÇALVES, Leandro Pereira. Un ensayo bibliográfico sobre el integralismo brasileño. Ayer: Revista de Historia Contemporánea, v. 105, n. 1, 2017.

GONÇALVES, Leandro Pereira; NETO, Odilon Caldeira. O fascismo em camisas-verdes: do integralismo ao neointegralismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020.

GRECCO, Gabriela de Lima; GONÇALVES, Leandro Pereira. Fascismos Iberoamericanos. Madrid: Alianza Editorial, 2022.

OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. Imprensa integralista, imprensa militante (1932-1937). Porto Alegre, 2009. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, 2009.

STHENRELL, Zeev. SZNAJDER, Mario; ASHERI, Maia. El nacimiento de la ideología fascista. Madrid: Siglo XXI, 1994.

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. 2ª ed. Difel, Porto Alegre, 1979.


Tamires Rosa

Natural de Guaratinguetá-SP. Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É bolsista do Programa Institucional de Bolsas para Iniciação Científica (PIBIC/CNPq). Possui experiência nas áreas de História Contemporânea e História da América Latina, dedicando-se a estudos sobre fascismo e corporativismo no Brasil e no Peru. | tamnrosa@gmail.com

Milene do Carmo Gomes

Graduanda no curso de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É bolsista do Programa de Bolsas para Iniciação Científica (PIBIC/CNPq). Possui experiência nas áreas de História Contemporânea e História do Brasil República, dedicando-se a estudos sobre fascismo no Brasil no contexto pós-guerra. Estudante-pesquisadora do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Direitas, História e Memória” (UFJF/UFF). Vinculada ao Laboratório de História Política e Social (LAHPS) da UFJF. milenegomes645@gmail.com


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O neofascismo na América Latina: um breve panorama

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Gabriel Benedito Machado | O neofascismo na América Latina: um breve panorama

Os últimos anos vêm sendo marcados pelo crescimento do campo da ultra direita ao redor do mundo. Isso pode ser reparado tanto através dos êxitos eleitorais alcançados por partidos e políticos de direita radical — sendo Giorgia Meloni, do Fratelli D’Italia, o exemplo mais recente — quanto através da proliferação de grupos e manifestações políticas de diversas naturezas organizadas pela extrema direita.

Talvez o caso recente mais emblemático da atual efervescência da extrema direita seja o protesto de 2017 em Charlottesville no estado norte-americano da Virgínia. Organizada inicialmente através das redes sociais, a manifestação Unite the Right (Unir a Direita) contou com a participação de grupos diversificados dentro desse campo, como neonazistas, neoconfederados, milícias armadas, trumpistas, a Ku Klux Klan e a alt-right1. A imagética pela qual o ato ficou conhecido mundialmente, de manifestantes marchando pela noite municiados de tochas, é um exemplo da circulação em âmbito global das ideias e símbolos atuais da extrema direita, com atos que o precederam e que o sucederam, como no Brasil em 2020.

Como é de se notar, o fascismo não tem seu fim com a Segunda Guerra Mundial, mas passa por uma adaptação sob uma conjuntura histórica árida ao apelo nacionalista revolucionário que marca o pós-guerra, formando organizações com características particulares e apartadas do modelo genérico do fascismo clássico. Sem perder o cerne de ultranacionalismo regenerador, esse campo político passa a se estruturar em pequenos grupelhos capazes de se organizar colaborativamente, formando uma rede de ativistas. Começa também, novamente, a recuperar tração em um mundo globalizado e interconectado pela internet, encontrando meios de potencializar sua atuação e a internacionalização de uma rearticulação fascista em novas roupagens.

É comum que grande parte do público fora dos meios acadêmicos pense, quando se fala em fascismo nos dias de hoje, em grupos revivalistas como neonazistas ou, até mesmo, falando do contexto brasileiro, em neointegralistas. Para além desses grupos, muito vinculados às doutrinas e à história pregressa dos fascismos clássicos, esse campo político produziu reformulações de ideias, com intuito tanto de pensar sobre novas questões que estavam surgindo no pós-guerra quanto de se desvincular do passado fascista. Isso possibilitou a criação de novas ideologias e movimentos extremistas que parecem estar ficando cada vez mais nítidos à luz do dia no século XXI.

Um exemplo disso é o autodenominado movimento identitário. Ao longo da primeira metade do século XX, a questão da identidade nacional e da identidade racial eram fundamentais para a constituição dos fascismos. A noção de identidade europeia e a categoria de identitarismo se mostra como uma estratégia de distanciamento da referência do racismo nítida da experiência dos fascismos dos anos 1930, sendo usado como instrumento de rearticulação neofascista em novas roupagens. O identitarismo, conceito mobilizado pelos próprios grupos, entende tanto a cultura quanto a identidade de um povo como sendo formada essencialmente por aspectos étnicos e raciais, criando um nacionalismo diferente daquele vinculado ao estado-nação, mas sim sedimentado na etnicidade. Para esses grupos, a identidade branca encontra-se ameaçada, sendo necessário defendê-la da imigração, da globalização, do multiculturalismo ou, até mesmo, da ascensão social de minorias políticas.

Essa nova vertente dentro do universo neofascista conseguiu exportar seu ideário em nível global, produzindo discursos e estratégias eficazes voltadas para a internet. Talvez o exemplo mais famoso disso seja a apropriação do cartoon Pepe the Frog, que viralizou na internet e foi apropriado por nacionalistas brancos norte-americanos vinculados a alt-right, passando a ser uma ferramenta e uma imagética indissociável do discurso de ódio identitário.

Diversas versões de Pepe the Frog usadas pela extrema direita – Foto: The Hill/ CBC News

Há uma percepção identitária de um destino comum dos povos brancos que desencadeia, em diferentes terras, manifestações de solidariedade internacional. Esse ideário se estendeu além da Europa, América do Norte, África do Sul e Oceania, chegando à América Latina e atuando a partir de características locais. Um exemplo disso, na parte hispano-americana do continente, é a apropriação que esses grupos fazem da ideia de criollo — termo usado desde a colonização espanhola para descrever as elites brancas americanas. A identidade criolla, na perspectiva  desses grupos, é formada pelo sangue europeu em junção com a terra americana, se distinguindo, assim, de grupos correlatos em outras localidades. O criollismo também é mobilizado por uma perspectiva pan-criollista, propondo a união dos povos de origem europeia em solo americano, superando as nacionalidades locais.

No Brasil, os grupos que se aproximam dessa tendência divergem em algumas questões como etnia, regionalismo e formação da identidade nacional brasileira. Além disso, mesmo havendo ligação com alguns temas centrais dos identitários a nível global, como a rejeição à modernidade capitalista e à globalização, não compartilham algumas das principais pautas, como a anti-imigração ou a islamofobia. As características do identitarismo brasileiro liga tradições do pensamento político local com as novas formas de organização da extrema direita global, possuindo diálogos com grupos internacionais, usando a internet como principal meio de propagação do ideário e a luta política através do campo da cultura. Apesar disso, são bastante incipientes manifestações políticas fora da internet para esses grupos.

Outra vertente do neofascismo internacional que parece crescer e se organizar na América Latina são os tradicionalistas ligados ao duginismo. O tradicionalismo é uma filosofia esotérica fundada no início do século passado pelo francês René Guénon, marcado por uma crítica à materialidade capitalista moderna e pela ideia de uma origem comum para as tradições religiosas do mundo. Essa filosofia ganha características políticas através do italiano Julius Evola, que manteve relações com o fascismo italiano e o nazismo alemão, tentando, sem grandes êxitos, influenciá-los a partir do tradicionalismo. Apesar disso, Evola ainda é um dos autores mais relevantes para novas gerações de neofascistas, se tornando quase um idioma comum dentro desse campo (como no próprio identitarismo), sendo Alexandr Dugin um dos seus principais herdeiros hoje. 

O duginismo tem como plano central a ideia de construir um mundo multipolar em oposição a um suposto governo mundial globalista, partindo da ideia de construir uma nova ordem mundial a partir de grupos regionais, ou de identidades, que conjuguem uma espécie de internacionalismo antiliberal. O autor russo de extrema direita já esteve no Brasil, participando do III Encontro Nacional Evoliano, compondo mesa em uma palestra com lideranças evolianas do Brasil e Argentina, além do líder neointegralista Victor Barbuy. Além disso, em 2012, coprotagonizou um debate sobre geopolítica com Olavo de Carvalho, figura que viria a ser conhecida nacionalmente anos depois por sua influência no bolsonarismo.

Dugin posta foto em homenagem a Olavo de Carvalho após sua morte. A imagem mostra o brasileiro com Steve Bannon, líder da extrema direita estadunidense, segurando o livro que resultou do debate entre o Alexandr Dugin e Olavo de Carvalho – Foto: Facebook Alexandr Dugin.

Dentro do universo neofascista que habita hoje a América Latina, os duginistas se mostram como uma das vertentes melhor organizadas, possuindo grupos vinculados a esse ideário em vários países do continente. Os diálogos entre esses agrupamentos gestaram, em 2021, uma associação plurinacional intitulada “Comité Central de Liberacíon Americana”, formada por duginistas de Brasil, Argentina, Colômbia, Chile, Peru, México e Porto Rico.

Esse nome adotado é um reflexo de como essas ideias se articulam no contexto ibero-americano. O duginismo assume no continente aspectos muito vinculados à soberania política e à independência econômica em níveis nacional e continental, em oposição ao imperialismo e ao globalismo. As influências desses grupos — além de Dugin — giram em torno de pensadores e personalidades não liberais dentro tanto da direita quanto da esquerda, se apropriando de alguns aspectos e descartando outros. As influências locais desses grupos podem ir desde Che Guevara e Leonel Brizola até Juan Perón e Getúlio Vargas.

Esses grupos e ideias são pouco viáveis em nível eleitoral (além de majoritariamente rejeitarem o processo), mas é possível notar interfaces com setores políticos que não o são. Os discursos anti-imigração, islamofóbicos e eurocéticos, antes de chegarem na boca de políticos de direita radical europeus, foram proferidos primeiro entre os identitários de extrema direita do continente. Muito antes de Olavo de Carvalho ser o “guru” de Bolsonaro, Alexandr Dugin já tinha sido “guru” de Putin na Rússia.

No Brasil, o bolsonarismo usou símbolos da alt-right em diversas ocasiões, como, talvez o que mais gerou polêmica, o símbolo utilizado por nacionalistas brancos americanos de beber leite, baseado na falsa ideia de que o traço genético capaz de digerir a lactose está associada principalmente aos brancos. Mais do que o uso simbólico, ideias de extrema direita ganharam relevância no contexto político brasileiro, como a luta contra o “globalismo” que se manifestou na política internacional por meio do chanceler Ernesto Araújo, que também nomeou o evoliano César Ranquetat como membro da banca examinadora do processo seletivo do Itamaraty.

Grupo bolsonarista de extrema direita 300 do Brasil em manifestação em frente ao STF – Foto: Wallace Martins/Futura Press/Folhapress

Quanto aos duginistas, entraram em pauta recentemente durante a campanha de Ciro Gomes pelo PDT. As ideias do trabalhismo e a figura de Leonel Brizola são muito bem quistas pelos grupos brasileiros dessa vertente, o que — possivelmente — pode ter motivado a filiação no PDT de alguns seguidores dessas ideias. Além disso, eles mantêm contato relativamente próximo com o ex-ministro pedetista Aldo Rebelo.

Como dito inicialmente, nossa conjuntura histórica está sendo marcada pelo crescimento global da ultradireita. No contexto latino-americano, vertentes neofascistas exóticas têm conseguido se propagar e assentar, criando interpretações locais dessas ideologias extremistas. Esses grupos são capazes de gestar ideias perniciosas para a sociedade e expandi-las além de seus nichos, podendo também radicalizar indivíduos a ponto de cometerem atos de violência. O mundo tem buscado entender como esses grupos pensam e se organizam, a fim de combater suas ideias e encontrar meios de desarticulá-las. A América Latina não pode se furtar dessas discussões.

[1] Para saber mais, indico a série documental Terra de Ilusões: Internet, Morte e Mentiras, mais especificamente o terceiro episódio intitulado “Eu não sou nazista”, o qual demonstra o processo de radicalização de pessoas, além de como foi organizado a manifestação Unite the Right e seus desdobramentos.


Referências bibliográficas:

DIP, Andrea; FRANZEN, Niklas. Especialistas apontam semelhanças entre os 300 de Sara Winter e grupos fascistas europeus. Agência Pública, 2020 Disponível em <https://apublica.org/2020/05/especialistas-apontam-semelhancas-entre-os-300-de-sara-winter-e-grupos-fascistas-europeus/&gt;. Acesso em: 10/01/2023

GRIFFIN, Roger. From slime mould to rhizome: an introduction to the groupuscular right. Patterns of Prejudice, v. 37, n. 1, 2003, p. 27 – 50.

ZÚQUETE, José Pedro. The Identitarians: The Movement Against Globalism and Islam in Europe. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2018, p. 317-318.

CALDEIRA NETO, Odilon. The identitarism in Brazil. In: ZÚQUETE, José Pedro. Global Identitarism and the extreme-right. Londres: Routledge, 2023.

SEDGWICK, Mark. Contra o Mundo Moderno: o tradicionalismo e a história intelectual secreta do século XX. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.

ROCHA, Lucas. Copo de leite: Bolsonaro usa símbolo nazista de supremacia racial em live. Revista Fórum, 2020. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/politica/2020/5/29/copo-de-leite-bolsonaro-usa-simbolo-nazista-de-supremacia-racial-em-live-76033.html&gt;. Acesso em: 10/01/2023

AMADO, Guilherme. Ernesto Araújo nomeia especialista em filósofo fascista para banca examinadora do Itamaraty. O Globo, 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-amado/ernesto-araujo-nomeia-especialista-em-filosofo-fascista-para-banca-examinadora-do-itamaraty-24494237&gt;. Acesso em: 10/01/2023

DECLERQ, Maria; OLIVEIRA, Letícia. Nova Resistência: como militantes de extrema direita se infiltraram no PDT. UOL TAB, 2022. Disponível em: <https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/09/18/nova-resistencia-como-militantes-de-extrema-direita-se-infiltraram-no-pdt.htm&gt;. Acesso em: 10/01/2023.


Gabriel Benedito Machado

Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisador júnior dos grupos Observatório da Extrema Direita (oedbrasil.com.br – CNPq/UFJF) e Direitas, História e Memória (direitashistoria.com – CNPq/UFJF). Possui interesses nas áreas de História Contemporânea e História do Tempo Presente e nos temas: Neofascismo, Direitas Grupusculares e Identitarismo de extrema direita.


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A resistência ao fascismo tem rosto de mulher

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Nil | A resistência ao fascismo tem rosto de mulher

Padrões de feminilidade e masculinidade foram impostos às pessoas por tanto tempo que, até na ânsia de desfazer alguns, acabamos criando outros. Vejamos alguns modificadores que, a depender de quem fala, acompanharam a ideia de mulher: dona de casa, mãe, louca e degenerada, só para citar alguns. Apesar de adjetivos diferentes, todos carregam consigo uma carga de dominação ao tentar definir as mulheres através de algumas de suas características mais artificiais. Tal ação se dá com certa naturalidade, talvez por conta da busca por padrões que caracteriza o cérebro humano. Entretanto, nada existe de natural no uso político que muitos fazem desses enquadramentos da feminilidade. Diversos estereótipos foram sendo criados em torno das mulheres e, historicamente, isso resultou em um verdadeiro estupro do nosso eu. Nossos corpos e nossas mentesnos foram negados.

Quando olhamos para os círculos revolucionários de finais do XIX e início do XX, período de interesse de nossa reflexão, percebemos que muitos ali projetavam noções deterministas em torno da mulher revolucionária, criando novamente uma jaula. Alguns esperavam dessas mulheres certa “masculinidade”; outros, pelo contrário, preferiam que as mulheres permanecessem afastadas da política (RAGO, 2009), preservando assim seu locus feminino. Pois bem, nosso objetivo é apresentar a trajetória de uma mulher que teve a coragem necessária para viver sua própria vida, rompendo estereótipos espalhados dentro das fileiras revolucionárias e transformando o anarquismo em um ideal mais aberto à vida e à beleza: Emma Goldman.

Emma Goldman nasceu em terras russas, em 1869. Sua infância foi marcada por dificuldades financeiras, conflitos familiares e uma educação interrompida. Em 1881, a família Goldman, fugindo das crescentes represálias antissemitas, mudou-se para São Petersburgo. Na capital, Emma tornou-se operária, trabalhava em uma fábrica de espartilhos. Ali, teve a oportunidade de se aproximar da potente literatura russa e conhecer mulheres que rompiam padrões de feminilidade. Em 1885, resistindo a um casamento arranjado, Emma emigrou para os Estados Unidos da América, país que se tornaria seu campo de caça por mais de três décadas.

Rapidamente, ela percebeu que a “terra das oportunidades” era perpassada por contradições. Seu cotidiano era desgastante, trabalhava nas fábricas sob o olhar vigilante do patrão. Uma moradia precária com cômodos cheios, alimentação restrita e a ausência de compatibilidade com seu marido, tal era a realidade daquele período. As manchetes dos jornais, por outro lado, eram o que parecia mais angustiante: a morte dos “mártires de Chicago”impulsionou Goldman em direção aos círculos revolucionários.

 A partir de 1889, Goldman estreitou laços com a imprensa anarquista e tornou-se palestrante. Foi presa algumas vezes e recorrentemente retratada como bruxa em muitos periódicos, por conta de sua prática de agitadora política. Apesar disso, sua vida pública também foi a responsável por inseri-la em uma rede de sociabilidade de contornos internacionais e por facilitar seu contato com a produção de muitos teóricos. Em 1906, fundou a Mother Earth, considerada uma das mais importantes revistas anarquistas do século XX.

FEmma Goldman falando sobre controle de natalidade na Union Square, Nova York, em 20 de maio de 1916. (UPI, Bettmann Archive)

A eclosão da Grande Guerra impactou decisivamente a vida de Goldman. Em 1917, em virtude de sua luta pela liberdade de expressão e contra o alistamento militar obrigatório, foi condenada a dois anos de prisão e a Mother Earth foi fechada. Sob a mesma acusação, em dezembro de 1919, foi deportada para a Rússia, onde ficou por dois anos. Foi um período de angústia, desilusão e inflexão intelectual. Após sair de sua terra natal (1921), Emma Goldman passou a viver seu exílio no continente europeu. Enfrentou dificuldades para se adaptar a essa nova realidade. Sentia-se sozinha. Até que, aos 67 anos de idade, com a eclosão da guerra civil espanhola, foi mais uma vez levada para as barricadas.

Souchy e Emma Goldman em uma comunidade em L’Hospitalet de Llobregat. (Foto – Estel Negre)

Apesar de uma vida política tão ativa e de um grande volume de publicações, pouco se sabe sobre o pensamento de Emma, principalmente em língua portuguesa. Uma mulher que, apesar de se dedicar às questões femininas, passou, enquanto objeto de pesquisa, praticamente despercebida dentro do sucesso editorial da ‘história das mulheres”, isto é, continuou tendo suas contribuições políticas e teóricas negligenciadas. Uma mulher que, até mesmo dentro do anarquismo, foi considerada por tempo demais uma forasteira. Murray Bookchin chegou a declarar, com certo tom de desprezo, que, “apesar da confissão ideológica anarcocomunista, nietzscheanos como Emma Goldman continuam, em espírito, bem próximos dos individualistas” (BOOKCHIN, 2010, p. 53). Tal afirmação demonstra como alguns teóricos do anarquismo ainda estão presos a certos padrões de performatividade revolucionária. Emma Goldman não é a mulher revolucionária imaginada por Bookchin simplesmente por ela ter se mostrado leitora de um universo teórico amplo e por não estar organizada politicamente da forma como ele entende a mais eficaz.

Goldman rompeu muitos padrões. Isso porque decidiu viver sua própria vida, resgatando o eu que lhe fora negado. Reside aí um ponto primordial de sua contribuição para a teoria radical. A velha Emma Goldman, em um momento no qual lidava com as delicadas questões que o envelhecer impõe, foi capaz de levantar sua voz contra a ascensão dos regimes e movimentos fascistas e fascistizados do século XX, mostrando que a luta antifascista também tem rosto de mulher.

O fascismo pode ser compreendido como uma cultura política transnacional que nasceu nas trincheiras da Grande Guerra, apesar de suas origens culturais remeterem à crise de paradigma de finais do século XIX. A partir das primeiras décadas do século XX, o fascismo excedeu as fronteiras nacionais, transformando-se em um fenômeno mundial que, apesar das variantes nacionais, carregava consigo fortes tendências antiliberais e anticomunistas. É inegável a marca que os regimes e movimentos fascistas e fascistizados deixaram na história da Europa. “Em dez anos, a Europa será fascista ou fascistizada!”, declarou Mussolini em outubro de 1932.

Emma Goldman, que desde as primeiras décadas do século XX mostrava preocupação em compreender essa nova situação política do mundo, se aproximou ainda mais da luta antifascista ao tornar-se membro da CNT-FAI e ao estreitar laços com o grupo Mujeres Libres, por volta de 1936. Na Espanha, editou e escreveu em periódicos, visitou fazendas e fábricas autogeridas e reuniu informações e materiais documentais para fundamentar sua perspectiva e, então, apresentá-la à esfera pública internacional.

Emma Goldman visitando as coletividades espanholas durante a guerra civil. (IWA.AIT)

Após sua passagem pela Espanha, Goldman ficou responsável pela campanha de propaganda da CNT-FAI pensada para o mundo de língua inglesa. Nesse período, trocou uma série de correspondências com apoiadores, editores e pensadores, buscando evidenciar os contornos que a luta antifascista havia ganhado em solo espanhol. Em suas palestras e escritos, também se dedicou a alertar o público para as ameaças do fascismo. Exibindo cartazes, fotos, boletins, manifestos, pinturas, entre outros documentos coletados na Espanha, Goldman buscava mostrar ao restante do mundo os novos acontecimentos e trabalhou para que ajuda humanitária fosse enviada para o país.

Em cima, Emma Goldman escrevendo no escritório da CNT-FAI durante a guerra. Na sequência, uma reunião em Londres em apoio à CNT anarquista espanhola. Jack White, o anarquista irlandês de Antrim está à esquerda, Emma Goldman está de pé, a mulher no centro é a escritora Ethel Mannin. (IISG)

A Espanha de 36 se tornou um espelho no qual a Europa via um prelúdio do que, alguns anos depois, se transformou na Segunda Guerra Mundial. Esse país “era um microcosmo que sintetizava a ferocidade, o radicalismo e a polarização de uma era” (SALVADÓ, 2008, p. 8). A Espanha não era um caso isolado, o fascismo era uma questão transnacional e Goldman já sabia disso. Talvez por isso, também se levantou contra as outras frentes fascistas. Buscou entender as forças sociais da Alemanha, as razões para a ascensão do nazismo e o impacto da cultura alemã nisso tudo. Desenvolveu análises sobre as ditaduras e os ditadores desse período e dirigiu sua atenção para a Itália de Mussolini.

Com a vitória do general Francisco Franco, Goldman foi para o Canadá. Intensificou sua luta pela liberdade de expressão e buscou ajuda para os refugiados do fascismo. Continuou a usar sua principal arma: as palavras. Até que, em fevereiro de 1940, sofreu um derrame que a impossibilitou de falar. Faleceu três meses depois. Morta, conseguiu a autorização que tanto buscou nos últimos anos de sua vida: poder entrar novamente nos Estados Unidos da América, mas, agora, para ser enterrada ao lado dos “mártires de Chicago”.  Tudo acaba onde começou.


Referências bibliográficas:

BOOKCHIN, Murray. Anarquismo Crítica e Autocrítica. São Paulo: Hedra, 2010.

MARTINS, Nilciana Alves. 2022. Entre conceitos e ações: a perspectiva goldminiana em foco. Dissertação de Mestrado. Instituto de Ciências Humanas. Pós-graduação em História. Universidade Federal de Juiz de Fora.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2009.

SALVADÓ, Francisco J. Romero. A guerra civil espanhola. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.


Nil

Doutoranda, mestra, licenciada e bacharela em História pela UFJF. Atua como assistente editorial da Locus: Revista de História e gerente editorial da Revista Faces de Clio, ambas ligadas ao departamento de História da UFJF. Possui o canal História com a Nil, disponível no Youtube. E-mail para contato: nilcianaalves@gmail.com


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Os Camisas-Verdes: vestidos para o fascismo brasileiro

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Larissa Frazão | Os Camisas-Verdes: vestidos para o fascismo brasileiro.

“Elevar o espírito da Nação: pela Força, pelo Bem, pela Beleza”.1

Os militantes que somavam as fileiras da Ação Integralista Brasileira (AIB) eram denominados “Camisas-Verdes”. Tal modo de compreensão do ativista integralista é consoante a todos os movimentos fascistas emergidos na década de 1930 ao redor do mundo, visto que esses projetos autoritários de Estado simbolizavam e caracterizavam a si mesmos como sendo os “camisas-coloridas”. A questão visual, dos contornos, da beleza, empenhava uma grande importância no modelo político fascista, e seu apelo empreendia um “estilo característico de atividade política expresso em comícios, violência paramilitar, uniforme, símbolos e culto a líderes” (GRIFFIN, 1991, p.16, tradução nossa). Fazia parte das múltiplas expressões fascistas o controle totalitário sobre a estética e, por extensão, a simbólica e a ritualística. Nesse sentido, os uniformes paramilitares da AIB compunham parte do conjunto estético integralista; as camisas verdes, uma das simbologias do grupo, foram instituídas como recurso material para organização do movimento, objetificando e corporificando sua ideologia, além de serem uma forma de estratégia político-ideológica de padronização, unificação e arregimentação.

Camisas-Verdes e a bandeira integralista, 1935, Rio Grande do Sul

Cabe assinalar que estética remete a sensações, à sensibilidade. Sua manipulação visa sensibilizar as massas e criar uma coerência ao seu projeto político através de hábitos, devoções, sentimentos e afetos. O poder, quando estetizado, está profundamente ligado aos impulsos espontâneos do corpo, aos sentidos. (EAGLETON, 1993) No entanto, apesar de todos os movimentos de massas manipularem expressões estéticas, a forma como a “política teatral” fascista o fazia era diferenciada; havia a finalidade de envolver os militantes em uma mística e em um conjunto de rituais que invocavam um sentido estético e espiritual, que eram atrelados ao sentido político. Por isso, os fascistas davam grande ênfase a reuniões, marchas, símbolos visuais e rituais cerimoniais ou litúrgicos (PAYNE, 1995). Ao compartilharem uma estética, davam forma a uma “religião cívica”, uma fé não-tradicional que faz o uso de uma liturgia e de símbolos para dar vida a sua crença (MOSSE, 1996).

No interior dessa preocupação com a estética, os projetos fascistas que alcançaram o poder na Europa, como o fascismo italiano e o nazismo alemão, ao investirem em políticas culturais e econômicas, acabaram por ir além na questão do vestir e da moda. A intenção era impulsionar a moda nacional e abrir antagonismo com o protagonismo francês nesse setor, já que a moda francesa é proeminente ante as demais há séculos. No caso italiano, a moda ocupou um papel estratégico na implementação do programa autárquico em 1935, que visava a autonomia econômica do país, abolindo ou contendo a importação. Com isso, houve restrições materiais, implicando novos estilos para as roupas e, assim, a nova moda nacional, sob uma forte propaganda, deveria representar a nova imagem da nação (VACCARI, 2017).

Por ter ficado na esfera do projeto e da idealização, o integralismo, que não ascendeu ao poder, focou na questão do vestir principalmente com os uniformes paramilitares. Os jornais do movimento até possuíam seções de moda, e os periódicos destinados às mulheres debatiam sobre o assunto, mas não havia um estilo propriamente imposto. A indumentária que merecia atenção era o uniforme, a camisa verde, uma vez que essa também era utilizada pelos fascistas romenos, húngaros, egípcios e iugoslavos. Os italianos, ingleses e alemães se intitulavam “Camisas-Pretas”. Os alemães também faziam uso do marrom. Os “Camisas-Azuis” eram canadenses, portugueses, espanhóis e chineses. Diferentemente de todos, os estadunidenses se intitulavam“Camisas-Prateadas” e os mexicanos “Camisas-Douradas”.

Assim, a AIB manipulou as expressões estéticas em conformidade aos outros exemplares fascistas mundo afora, empreendidos, contudo, a partir de aspectos originais ao contexto brasileiro. Por ser um movimento de inspiração fascista, tendo sofrido influências quanto ao conteúdo e ao estilo de organização dos modelos fascistas europeus, o projeto de “Estado Integral” transformou-se “no principal partido da extrema-direita fascistizante dos anos 30 em busca do poder político” (TRINDADE, 1979, p. 125). Plínio Salgado, o “Chefe Nacional”, apresentava sua idealização como um movimento de cultura, uma vez que ele e seus adeptos pressupunham que o povo brasileiro não tinha esse bem cultural, precisando assim da “Revolução Integral” e do “Estado Integral” para transformar essa condição decadente. Por ter vivenciado e composto a ala do Verde Amarelismo no movimento modernista da década de 1920, Salgado consolidou suas ideias, que mais tarde seriam as da AIB, no seio dessa revolução estética em curso no Brasil. Ali passou a defender uma postura mais radical de nacionalismo, cristalizando no integralismo essa percepção e também a consciência das potencialidades das artes e do poder de convencimento que elas possuíam.

Carmela Salgado, esposa de Plínio Salgado, e Plinianos. – Larissa Frazão

Caracterizada por uma rígida disciplina, a AIB sistematizou rigorosamente seus recursos estéticos, como exemplo: indumentárias, símbolos, saudação, gesto, insígnias, figura do líder, organização das sedes, datas e festas, hinos e canções, honrarias, cinematográficos, radiofônicos, desfiles militares, congressos, souvenirs e também, cerimônias rituais (casamentos, batizados, falecimentos, juramentos e exclusões). Além disso, as produções literárias ou escritas, como os livros, poemas, artigos dos jornais, fotografias, também assumiam uma função estética. Todas essas ordenações compunham um verdadeiro maquinário de coesão ao grupo, já que, ao atuar como força interna, gerava agregação, unidade e participação no interior do movimento. Como força externa, empreendida para conquistar as massas e difundir a imagem e a doutrina do movimento, davam forma à máquina de propaganda integralista, arregimentando novos militantes.

Por tudo isso, a AIB possuía uma uniformização muito organizada, dado que os integralistas eram fascinados pela simbologia do vestuário (CALDEIRA, GONÇALVES, 2020). Haviam três tipos diferentes de uniforme, pois os militantes eram divididos em grupos. Os homens, os “Camisas-Verdes”, deveriam fazer o uso da camisa na cor verde inglês em brim ou algodão (fabricação nacional), acrescida de uma calça preta ou branca, gravata preta lisa, cinto e sapatos de preferência na cor preta. As “Blusas-Verdes”, denominação usada para as mulheres integralistas, deveriam usar a mesma camisa, juntamente com saias, que deveriam ser pretas ou brancas. Já os “Plinianos” — organização infanto-juvenil do movimento — deveriam usar a mesma camisa, sendo a gravata substituída por um lenço branco com passador de couro ou de pano verde, calça branca ou azul, culote preto, com meias ou perneiras de couro, ou lona. O uniforme era complementado com distintivos, sendo de modelos diferentes para esses três grupos. Além disso, havia uniformes para a prática esportiva, já que essa questão possuía uma grande importância dentro do movimento.

Ao estabelecer uma comunicação não verbal, o vestuário é, sobretudo, comunicação, havendo uma coincidência entre ideologia e código da maneira de vestir (ECO, 1982). Assim, a camisa verde, no seio do movimento, assumia uma função simbólica e, por isso, tornava-se um instrumento moralizador. Nos Protocolos e Rituais (1937) — documento que apresenta um compilado de normas emitidas ao longo da existência da AIB e de posse obrigatória a todos os militantes — regras de conduta eram impostas ao integralista no que se refere a como se portar ao trajar a camisa. Ele não poderia, por exemplo, dançar, ingerir bebida alcoólica, jogar ou assistir a jogos de azar e nem usá-la como fantasia de carnaval, ou mesmo durante esse feriado. Além de serem obrigados a ter sempre pronta a camisa para vesti-la, caso um integralista fosse preso por prática de crime comum, ele deveria pedir licença à autoridade para retirá-la, a fim de que ela não entrasse no cárcere; na circunstância de prisão por motivações políticas, o “Camisa-Verde” deve penetrar na prisão com seu uniforme, a menos que a autoridade se oponha.

No mais, segundo os Protocolos e Rituais (1937) o uso da camisa verde, por parte do militante, só seria obrigatório nas concentrações e desfiles, ou quando solicitado por alguma autoridade superior. Aqueles que ocupam cargos no movimento devem fazer o uso quando no exercício de sua função e em reuniões ou solenidades oficiais da AIB. Em relação a isso, havia um modo de distinguir os altos cargos — “Chefe Nacional”, outros chefes, conselheiros, secretários, entre outros. Era delineado nas insígnias ou passadeiras dos uniformes (acessório usado na parte dos ombros) simbologias específicas para cada posto ocupado, evidenciando como a AIB dispunha de uma hierarquia verticalizada muito bem estruturada. Cabe ressaltar que essas distinções são detalhes da vestimenta, aqueles de fora não necessariamente compreendiam suas proporções e intenções.

Portanto, no interior da dramatização política fascista, o uniforme assumia a ideia de armadura de guerra. Ele simbolizava que o integralismo iria combater os males da sociedade brasileira pelos ensinamentos de Plínio Salgado e seu projeto utópico de mundo e de sociedade. De maneira similar, seu uso padronizava os “Camisas-Verdes” em uma só forma, englobando todos os seus militantes sob uma representação imagética que sintetizava a doutrina integralista. A impossibilidade de qualquer alteração subjetiva no uniforme contribuía para a ideia de que todos eram iguais, um corpo único, sob uma ideia única. A padronização e o controle das roupas fomentam um sentimento de ordem e diretriz, um molde a ser seguido que integraliza todos em práticas comuns, indicando nas pequenas coisas a ideia de procedimento padrão, de caminho certo a ser seguido. Por isso, o trajar da camisa verde carregava uma representação muito maior que ser um simples uniforme que padronizava as fileiras do movimento.

Plínio Salgado e capa da revista integralista Anauê! (1936)

Ser um “Camisa-Verde” e usar a camisa verde indicava uma forma de participação política alternativa e ilusória. Ser integralista era, além de tudo, seguir a estrutura simbólica e ritualística esquematizada pela AIB. Somado aos demais ritos, o exercício dessas diretrizes significava uma socialização ideológica, e a comunhão dessas práticas integrava as massas pela emoção, pelos sentimentos que esses costumes produziam. Ao cultivarem uma energia capaz de estimular e alimentar o ânimo dos militantes, suscitando sentimentos de pertencimento e crença na doutrina integralista, davam a unidade e a força interna necessária à manutenção e reprodução da AIB.

Como força externa, o uniforme atraía olhares de fora do movimento, ainda mais quando se considera a “moda fascista” em voga na Europa, representada por nomes como Adolf Hitler e Benito Mussolini. O exemplo local de “camisa-colorida” chamava a atenção e, nos momentos de confraternização de rua, em desfiles, paradas, congressos, uma ideia de união e força era professada, demonstrando que aquela massa unida e anônima estava em conexão com um só ideal, guiados por um líder. Também, a camisa verde empenhava uma espécie de propaganda, pois permitia uma rápida e fácil assimilação direta ao movimento.

Consequentemente, entende-se que havia uma centralidade da indumentária enquanto meio para constituição e expansão do integralismo. Diante de uma atuação ilusória e fictícia, de subordinação e acatamento da disciplina imposta, o uniforme gerava uma imagem de movimento de massas altamente mobilizado. Além disso, há no pós-guerra uma tentativa, por parte dos neo integralistas, em desvincular a AIB e o integralismo do fascismo devido às barbaridades promovidas por esse modelo político no século XX. No entanto, como negar essa correspondência íntima, assim como uma apropriação e reinvenção do fenômeno fascista europeu pela AIB, como evidencia a estética e a indumentária integralista?

[1] SALGADO, Plínio apud JOSETTI, Rodolpho. O sentido estético do integralismo. In: PENNA, Belisário et al. Estudos e depoimentos. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1958. v. II: enciclopédia do Integralismo. p. 80


Referências bibliográficas:

EAGLETON, Terry. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

ECO, Umberto. Psicologia do vestir. 2ª ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.

GONÇALVES, Leandro Pereira; CALDEIRA NETO, Odilon. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.

GRIFFIN, Roger. The nature of fascism. London; New York, Routledge: 1991.

MOSSE, George L. Fascist Aesthetics and Society: Some Considerations. Journal of Contemporary History, Volume 31, p. 245-252, 1996.

PAYNE, Stanley. A History of Fascism. 1914-1945. Madison: The University of Wisconsin Press, 1995

PENNA, Belisário et al. Estudos e depoimentos. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1958. v. II: enciclopédia do Integralismo.

SALGADO, Plínio. Protocolos e Rituais: regulamento. Niterói: Edição do núcleo municipal de Niterói, 1937.

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São Paulo: Ed. DIFEL, 1979.

VACCARI, Alessandra. Moda na Autarquia: políticas de moda na Itália fascista nos anos 1930. História: Questões & Debates, Curitiba, v.65, n.2, p. 17-38, jul./dez 2017.


Larissa Frazão

Mestranda e licenciada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Faz parte do LAHPS (Laboratório de História Política e Social) e é orientada pelo Professor Leandro Pereira Gonçalves, pesquisando a estética e a indumentária da Ação Integralista Brasileira (AIB).


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Fascismo na arquibancada: os usos do passado fascista na torcida da Società Sportiva Lazio

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Guilherme David | Fascismo na arquibancada: os usos do passado fascista na torcida da Società Sportiva Lazio

A pergunta “futebol e política se misturam? ” é certamente uma das que mais mobilizam o debate esportivo. Existem partidários de que o esporte deve ser analisado por si só, apenas nos seus aspectos técnicos. Contudo, é uma mentira dizer que não existe relação. O futebol faz parte da sociedade e não é uma bolha separada, portanto, se algo envolve uma sociedade, envolve também o futebol.

Não seria diferente no caso do Fascismo italiano. O movimento totalitário, que se instaurou como regime no século XX, tinha seus objetivos também esportivos. Em 1934, hospedaram a 2ª copa do mundo de seleções, sendo uma oportunidade para fazer propaganda do Estado Fascista e que impressionou outros líderes autoritários, como o generalíssimo espanhol, Francisco Franco1. Ficou marcado o pôster da copa, onde era representado junto ao uniforme da seleção italiana o brasão fascista.

Pôster oficial da copa de 1934. Detalhe para o brasão fascista no uniforme italiano.

Benito Mussolini era torcedor assumido do Lazio, time da capital, Roma. Foi inclusive homenageado pelo clube na década de 1920, sendo agraciado pelo conselho como sócio2. Essa relação entre o time e o ditador marcou o clube no século XX e, quando a Itália passou por um contexto de muitas disputas e radicalizações políticas, os chamados “Anni di piombo” (Anos de chumbo, tradução livre), na década de 1980, grupos de extrema direita passaram a se organizar de diferentes formas. Nesse contexto também surgem os ultras, torcidas organizadas com um caráter de violência e também político, tanto na esquerda quanto na direita. Na dimensão da palavra ultra, o objetivo de só torcer não basta, deve-se ir além e ser extremo. É necessário viver e respirar essa cultura (MONTAGUE, 2020)3. Um estilo de vida está presente em grupos que se definem apaixonados pelos clubes, mas também vivem seus princípios políticos e atuam de forma política. E esse é o caso da Irriducibili, torcida neofascista da Lazio.

Hoje extinta, a torcida causou muitas polêmicas na península italiana, com inúmeras manifestações de cunho racista e antissemita. Aqui serão apresentadas algumas dessas manifestações e também uma breve reflexão sobre o caráter desses grupos na Itália. Alguns autores já tentaram inclusive classificá-los como uma espécie de movimento social (TESTA, 2009).

Uma das manifestações que mais causaram repercussão aconteceu em 2017. No Derby della capitalle, clássico jogado contra a AS Roma (que também tem uma torcida fascista para chamar de sua, os Boys Roma), a Irriducibili levou adesivos com uma montagem, onde o rosto de Anne Frank era exibido vestindo a camisa do rival. Como se sabe, a garota judia ficou famosa por ser um símbolo da resistência à perseguição nazista e sua política de extermínio e genocídio judeu. Seu diário relatando o período em que ficou escondida se tornou um clássico da literatura mundial.

Montagem de Anne Frank com a camisa da Roma

O caso gerou enorme repercussão na sociedade italiana como um todo. Foi aberta uma investigação da Federação de Futebol Italiano (FIGC) que, junto com a polícia, 4puniu torcedores que participaram de eventos esportivos. Jornais de grande alcance publicaram notas de repulsa e uma delegação da equipe foi com o presidente do time para uma sinagoga entregar uma coroa de flores, em busca de se afastar do ato5

Outro famoso caso de manifestação antissemita da torcida se deu também no clássico contra a Roma. Em 1998, a torcida da Lazio levou um cartaz em que dizia “Auschwitz la vostra patria, I forni le vostre case” (Auschwitz sua pátria, o forno sua casa, em tradução livre), fazendo analogia ao mais famoso campo de concentração nazista, onde milhares de judeus foram assassinados pelo estado alemão. Deve-se frisar que essas manifestações não ocorrem só nessa torcida. Outros clubes possuem torcidas de extrema direita e que proferem xingamentos racistas e antissemitas nos estádios italianos.

É natural que essas atitudes também gerem respostas por meio de torcedores de outras equipes. A torcida do Celtic (Escócia) levou uma faixa em um jogo de liga europeia contra a Lazio, onde dizia “Follow your leader” (‘Siga seu líder’, em tradução livre) com o desenho de Mussolini de ponta cabeça, tradicional retrato de quando o líder fascista foi morto e exposto em praça pública.

Torcida do Celtic responde ao fascismo da torcida da Lazio

Já em ritmo de conclusão, deve-se frisar que por vezes esses grupos ultras possuem relações com o tráfico de drogas e armas. Não à toa, Diabolik, antigo líder da torcida laziale, foi assassinado por uma questão envolvendo o tráfico de drogas6. É curioso que, na política institucional, não houve tanto sucesso por parte dos partidos de extrema direita mobilizarem as bancadas. Os ultras normalmente não se candidatam a cargos eleitorais.

Quanto a entender eles como movimento social, destaca-se o fato de compartilharem um ódio comum: a polícia. Em 2007, a morte de Gabrielle Sandri (torcedor da Lazio) pela corporação mobilizou esses grupos a se organizarem em conjunto contra os policiais, levando rivais históricos a homenagearem o torcedor morto.

É evidente que o futebol mobiliza multidões e envolve muita paixão. Contudo, ser apaixonado por um clube não é atestado para cometer crimes. Homofobia, racismo e antissemitismo ainda são vistos nas arquibancadas (na Itália e no mundo todo). O respeito aos direitos humanos é fundamental, e é triste e repulsivo que tais casos ainda se repitam pelo mundo. Futebol é política e cabe a nós, amantes do esporte e sociedade civil, fiscalizar e reagir a essas manifestações. Afinal, se disputamos esse espaço das bancadas, não podemos perdê-lo para fascistas.

[1] SOTO, Alejandro Quiroga Fernández de. Goles y banderas: fútbol e identidades nacionales en España. Madrid: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2014

[2] Site Oficial do Museu da Lazio (https://www.sslaziomuseum.com/)

[3] MONTAGUE, James. Italy. In: MONTAGUE, James. 1312:Among the ultras. Londres: Ebury Press, 2020.

[4] https://www.record.pt/internacional/paises/italia/lazio/detalhe/policia-identificou-20-adeptos-da-lazio-que-usaram-imagem-de-anne-frank

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/24/internacional/1508843055_003798.html

[6] https://observador.pt/2019/08/08/diabolik-chefe-da-claque-da-lazio-foi-assassinado-com-um-tiro-na-cabeca-em-plena-rua/


Referências bibliográficas:

SOTO, Alejandro Quiroga Fernández de. Goles y banderas: fútbol e identidades nacionales en España. Madrid: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2014

MONTAGUE, James. Italy. In: MONTAGUE, James. 1312:Among the ultras. Londres: Ebury Press, 2020.

TESTA, Alberto. The UltraS: An Emerging Social Movement?. Review of European Studies, Londres, v.1, n.2, p.54-63, 2009.

Site Oficial do Museu da Lazio (https://www.sslaziomuseum.com/)

https://www.record.pt/internacional/paises/italia/lazio/detalhe/policia-identificou-20-adeptos-da-lazio-que-usaram-imagem-de-anne-frank

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/24/internacional/1508843055_003798.html

Imagens:

Foto 1: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:WorldCup1934poster.jpg

Foto  2: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/24/internacional/1508843055_003798.html

Foto 3: https://www.besoccer.com/new/follow-your-leader-celtic-respond-to-fascism-with-image-of-mussolini-s-hanging-732936

Guilherme David

É estudante de História na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Nascido e criado em Juiz de Fora, está encerrando agora um período de estudos na Universidade de Évora, em Portugal. Interessado nos estudos de futebol, pesquisa a extrema direita. Desenvolve esses trabalhos no LAHPS (Laboratório de História Política e Social) na UFJF e também é pesquisador júnior no Observatório da Extrema Direita.


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Os primórdios do integralismo em Juiz de Fora e suas articulações com o metodismo

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Everton Fernando Pimenta | Os primórdios do integralismo em Juiz de Fora e suas articulações com o metodismo

Os fascismos ontem e hoje: um tema em constante discussão

Um século após a ocorrência da Marcha sobre Roma (28/10/1922), evento que conduziu Benito Mussolini ao cargo de Primeiro-Ministro na Itália, pelo fato de, sob novas roupagens e atualizações, os fascismos continuarem a representar ameaças aos regimes democráticos, ainda hoje são recorrentes e estão na pauta do dia os debates referentes a essas experiências políticas, tanto na Europa, palco de seu surgimento, quanto nos EUA e no Brasil, onde se visualizou seu crescimento no passado recente.

Ao tratarmos dos fascismos no contexto de seu surgimento, foi verificado que, além dos casos clássicos, Itália e Alemanha, eles se espalharam por diversos outros locais, não se apresentando como um fenômeno político portador de uma ideologia monolítica, posto que havia especificidades em suas diversas manifestações pelo mundo.

Foi assim que, em outubro de 1932, sob o lema “Deus, pátria e família” e a liderança do político e escritor paulista Plínio Salgado, surgiu a Ação Integralista Brasileira (AIB), primeira e maior experiência política do gênero a existir no país. (TRINDADE, 1979) Contudo, embora o fascismo italiano tenha influenciado a formação da AIB e o delineamento de seu ideário, outros ingredientes se fizeram presentes neste, a exemplo de elementos oriundos do Integralismo Lusitano e dos conservadorismos da Action Française e da Doutrina Social da Igreja. (GONÇALVES, 2017)

Desta forma, a convite da Revista Casa D´Itália, considerando a pertinência do tema, seja pelo centenário da Marcha sobre Roma ou pelos perigos advindos das atuais manifestações fascistas, esse texto visa a compreender, brevemente, como se deu a chegada da AIB a Juiz de Fora e como alguns elementos que, num primeiro momento, poderiam ser vistos como “irreconciliáveis”, acabaram por serem amalgamados.

A chegada da Ação Integralista Brasileira a Juiz de Fora

Inicialmente, a AIB se apresentava como um movimento revolucionário, criticando o jogo político-partidário. Porém, poucos anos após sua fundação, vivenciando um grande crescimento, ela alterou seus estatutos e se constituiu como um partido político que passou a fazer parte do jogo eleitoral. (CAVALARI: 1999, p.16) Para se ter uma ideia de sua rápida expansão, em 1935, os integralistas já se faziam presentes em 22 províncias brasileiras, com destaque especial a São Paulo, Bahia e Minas Gerais, onde contou com mais de cem núcleos. (BULHÕES, 2012, p. 20-21)

Sem desconsiderar as características em comum, que partilhava com os demais fascismos do período, – como a presença de uma liderança carismática, de uma estrutura fortemente hierarquizada, das críticas ao liberalismo, de seus aspectos antidemocrático e anticomunista, do recurso a símbolos, rituais, vestimentas, entre outros – a AIB também trazia consigo elementos oriundos de nossa própria política e da sociedade, cujas visíveis variações regionais, dada a plural cultura do Brasil, eram também evidentes.

Assim, em sua chegada a Juiz de Fora, diferentemente daquilo que se encontrava na presença da AIB em outros locais do país, como no Nordeste, ou em outras microrregiões de Minas Gerais, na cidade, ela apresentou algumas características um pouco incomuns, como a íntima relação com o metodismo e a presença de maçons em seu interior.

Em Juiz de Fora: metodismo, integralismo e a atuação do professor Oscar Machado

A primeira grande menção que encontramos sobre a presença do integralismo em Juiz de Fora ocorreu em 1933, em razão da visita de Gustavo Barroso, líder da Chefia Nacional de Milícias da AIB, para a realização de três conferências doutrinárias.

A convite dos professores Irineu Guimarães e Oscar Machado do Instituto Granbery, – intelectuais metodistas de grande prestígio – de acordo com o que foi noticiado pelo jornal interno do educandário, Barroso teria vindo proferir duas palestras no âmbito das atividades de seu Centro Cívico. (O GRANBERY orgulha-se de ter como hóspede de honra o ilustre brasileiro dr. Gustavo Barroso, digno presidente da academia Brasileira de Letras. O Granberyense, 20/10/1933, p. 1-2)

Diferentemente do que noticiou o jornal do educandário, dado os títulos de suas palestras, “A inquietação do século XIX e a Reconstrução do século XX” e “O sentido novo da política, da educação e da economia” (BARROSO, 1934), mais do que versar sobre literatura ou datas cívicas, padrão dos eventos do Centro Cívico, sua passagem pelo Granbery pretendia veicular a AIB e, desta maneira, obter novos militantes para ela.

Isto fica ainda mais explícito, conforme se verifica nas imagens abaixo, pois Barroso se apresentou com o uniforme integralista, bem como posou para uma foto com a comunidade estudantil do Granbery, na qual se observa que muitas pessoas fizeram a saudação integralista, anauê.                

Gustavo Barroso e outro integralista em meio aos professores do Instituto Granbery (entre eles Oscar  Machado e Irineu Guimarães), na ocasião da realização de uma das conferências de outubro de 1933. Arquivo Fotográfico Dr. Tarboux do Museu Granbery da Igreja Metodista.
Gustavo Barroso no Instituto Granbery para uma das conferências de outubro de 1933. Arquivo Fotográfico Dr. Tarboux do Museu Granbery da Igreja Metodista

Além da visita de Gustavo Barroso, nos meses seguintes, Juiz de Fora recebeu a visita de caravanas compostas por outras lideranças da AIB, para sua publicização, a exemplo de seu chefe nacional, Plínio Salgado, de Jeováh Motta e de Madeira de Freitas, que também ocupavam altos postos em sua hierarquia. (PIMENTA, 2019, p. 1170-172)

 Comprovando que tais sementes plantadas rapidamente floresceram, no início de 1934 se encontram as primeiras evidências da existência oficial de um núcleo integralista em Juiz de Fora, cuja chefia ficou a cargo do professor Oscar Machado. O metodista foi peça primordial para que o integralismo crescesse na cidade, haja vista que, nos seis meses em que ocupou tal posto, dentre outras ações, criou sua milícia, seu órgão da juventude, seu jornal, realizou conferências, sessões doutrinárias e mudou sua sede para um local maior, numa região mais central. (PIMENTA, 2019, p. 171)

A essa época, entre os metodistas, Machado já era visto como notório militante da AIB. Isso se verifica, pois, além de escrever e dar entrevista sobre o integralismo no jornal interno do Granbery, no mesmo foi publicada uma caricatura do professor, ladeada do símbolo sigma (∑), que integrava os uniformes e o lema da AIB, como se observa abaixo.

Charge de Oscar Machado. O Granberyense, 18/12/1933, p. 7.                 
Lema e slogan integralista

Ressaltando ainda mais a importância de Machado para a penetração integralista no seio do metodismo de Juiz de Fora, em entrevista concedida por Arsênio Firmino de Novaes Netto, ex-reitor e memorialista do Granbery, o mesmo relatou:

O professor Oscar Machado, ele realmente era o… o coordenador – o nome não é esse – da… da célula integralista na Igreja Central. Porque tinha muitos integralistas na Igreja Central de Juiz de Fora… [Metodista] Central. E, também, aqui no Granbery, ele fazia proselitismo mesmo a favor do… do integralismo. Nós sabemos que é uma organização fascista, não é? E… E ele aqui ficou, trouxe Plínio Salgado (…). E outros… O Barroso. Para… E ele falava… Apesar de que o Granbery não… deixava que os professores tivessem as suas opções, mas pedia a eles que não falassem em política em sala de aula. Mas o professor Oscar Machado, ele não se continha e ele defendia o integralismo em sala de aula, não é? O próprio [expositor]… O próprio jornal Granberyense também tem muitas manifestações a favor… (…). (Entrevista com Arsênio Firmino Novaes Netto, Juiz de Fora, 31/03/2017)

Assim, ao analisarmos a chegada da AIB em Juiz de Fora, a contar do papel de Oscar Machado em tal processo, se pode afirmar que foi inequívoca a aproximação entre seus militantes e a comunidade metodista local, seja em seu educandário ou nos órgãos da própria igreja, que se tornaram importantes focos de sua publicização.

Contudo, ao levarmos em conta que a atuação de Oscar Machado na chefia local da AIB foi de suma importância para sua estruturação e crescimento como um todo, é preciso também lembrar que não foram apenas os metodistas que se tornaram militantes integralistas em Juiz de Fora, tampouco que eles eram os mais numerosos entre eles.

Tal fato precisa ser melhor analisado, pois, a peremptória associação entre metodismo e integralismo, além de ter sido uma marca que denotou uma especificidade da inicial presença da AIB na cidade, em relação a outras regiões do estado de Minas Gerais e do Brasil, também articulou elementos que, aparentemente, se colocavam como “incompatíveis”, aspectos a serem explorados a seguir.

Os elementos “irreconciliáveis” no integralismo de Juiz de Fora

Desde sua chegada a Juiz de Fora, ocorrida por meio de uma missão religiosa norte-americana, aspirando exercer uma ascendência sobre as futuras lideranças que seriam capazes de influenciar nos rumos do país, o metodismo buscou se capilarizar pautando sua atuação sob o binômio da educação. (MESQUIDA, 1994)

Contando com diversos integrantes da maçonaria em seu corpo docente, o que pode ter facilitado sua inicial penetração e aceitação na cidade (CASTRO, 2008, p 31-44), os missionários se colocavam como portadores de elementos da cultura norte-americana, com ênfase para a defesa de um ensino prático e moderno e dos ideais liberais, aspectos que, apreciados pelas elites locais, contribuíram para o crescimento do Granbery em Juiz de Fora. (PIMENTA, 2017)

Por conta da importância dos valores liberais e da grande presença de maçons em seu interior, – Oscar Machado era um deles – após terem sido tecidas umbilicais relações entre a denominação religiosa e a AIB, no surgimento desta em Juiz de Fora, salta aos olhos a existência de elementos que, à primeira vista, poderiam ser tomados como “irreconciliáveis” na relação entre as instituições, resultando na impossibilidade de uma pessoa, ao mesmo tempo, ser metodista e integralista, maçom e integralista.

Para conceber melhor isso, se ressalta que a alta cúpula da igreja metodista no Brasil passou a vetar a atuação de seus fiéis no seio do integralismo. Tal fato se deu em virtude do discurso doutrinário da AIB que, entre seus principais inimigos, elencava o liberalismo e as sociedades secretas como a maçonaria (TRINDADE, 1979, p. 227-228), situação que atacava alguns dos valores que eram caros aos metodistas, bem como a muitos de seus membros que eram maçons. (PIMENTA, 2019, p. 163-165)

Em relação a esse tema, especificamente sobre Juiz de Fora, numa das conferências realizadas por Gustavo Barroso, foram incontestes as críticas ao liberalismo que, curiosamente, passaram a ecoar no jornal interno do Granbery, inclusive, em discursos feitos por Oscar Machado. (PIMENTA, 2019, p. 166-167)

Tal situação, quando somada à interdição que o grão-mestre do Grande Oriente Brasil também impôs a seus membros de poderem participar do integralismo (GÖHL, 2003, p. 129-130), nos leva a  questionar por quê e como essas coisas se amalgamaram no período de instalação dos camisas- verdes em Juiz de Fora.

Uma hipotética interpretação para explicar como se dava a acomodação desses elementos contraditórios, advindos dos discursos proferidos pelos líderes do metodismo da maçonaria e do integralismo se pautaria nas atuações de pessoas que, a um só tempo, ocupassem papéis de destaque na hierarquia destas instituições, como Oscar Machado.

Em paralelo ao que era preconizado pelos discursos normativos da AIB, do metodismo e da maçonaria a seus membros, se poderia propor que personagens dotados de grande capital intelectual, político e social, como Machado, conseguiriam galgar espaços que, num primeiro momento, se mostravam interditados à maioria de seus membros (BOURDIEU, 1989, p. 136-139). 

Junto a isso, essa possibilidade de se mesclar de tais elementos, ressaltaria também que, em certos casos, como o de Oscar Machado, não haveria uma relação tão hermética entre os discursos e as práticas dos integralistas, tampouco que as interdições no seio do metodismo ou da maçonaria fossem capazes de normatizar, em toda sua hierarquia, a atuação de seus membros.

Por fim, como nossas pesquisas se centraram nos primórdios da presença integralista em Juiz de Fora e na atuação de Oscar Machado, por meio da qual houve uma inesperada articulação dessas variáveis contraditórias, verificou-se que, ao invés disso enfraquecer as atividades da AIB, num sentido oposto, parece ter ajudado a causar o efeito contrário, ou seja, contribuíram para com seu crescimento.

Logo, por meio de novas pesquisas, é preciso buscar perceber como tais elementos se comportaram no contexto posterior à mudança dessa liderança para Porto Alegre-RS, para se poder testar a hipótese de que apenas pessoas detentoras de grandes volumes de capitais político, intelectual e social seriam capazes de articular os elementos aventados.


Referências bibliográficas:

BARROSO, Gustavo. O integralismo de norte a sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BULHÕES, Tatiana da Silva. Integralismo em foco: imagens e propaganda política. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

CASTRO, Giane de Sousa. A cruz e o compasso: o conflito entre igreja católica e maçonaria no contexto da questão religiosa e da reforma católica ultramontana. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião). Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, 2008.

CAVALARI, Rosa Maria Feitero. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no Brasil (1932-1937). Bauru: Edusc, 1999.

GÖHL, Jeferson Willian. O real e o imaginário: a experiência da maçonaria ne Loja União III em Porto União da Vitória – 1936 a 1950. 2003. 225 f. Dissertação. (Mestrado em História). UFPR, Curitiba, 2003.

GONÇALVES, Leandro Pereira. Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2017.

NOVAES NETTO, Arsênio. Irineu Guimarães: a prática socialista de um educador cristão. São Paulo: Yangraf Gráfica e Editora Ltda, 2004.

MESQUIDA, Peri. Hegemonia norte-americana e educação protestante no Brasil. Juiz de Fora: EDUFJF; São Bernardo do Campo: Editeo, 1994.

PIMENTA, Everton F. A “Era Granbery”: apontamentos sobre a inserção e consolidação do projeto educacional metodista em Juiz de Fora (1890-1930).  Fronteiras: Revista de História. Dourados, v. 19, n. 34, p. 182 – 206, jul./dez. 2017

_______. Oscar Machado: uma trajetória em meio ao metodismo, integralismo e maçonaria (19301965). 2019. 423 f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, 2019.

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São Paulo: Difel, 1979.


Everton Fernando Pimenta

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Mestre em História pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ-2015). Bacharel licenciado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP-2006). Integrante do Grupo de Estudos Direitas, História e Memória (UEM/CNPq). Integrante do Grupo de Estudos História das Direitas e do Autoritarismo (UFF/CNPq). Tem experiência na área de História Contemporânea, com enfoque principal nos seguintes temas: Fascismo; Integralismo; Trajetórias políticas.


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A Casa D’Italia ontem e hoje

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 31, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Dalila Varela e Paola Frizero | A Casa D’Italia ontem e hoje

A Casa D’Italia nasceu do e para o fascismo. A construção do prédio, na década de 1930, e os ideais de sua existência foram concebidos para que os italianos além-mar permanecessem unidos, política e culturalmente, à pátria mãe, que naquele momento estava sob poder de Benito Mussolini. Desde seu funcionamento até sua arquitetura, as Casas D’Italia foram projetadas como órgão do governo para propaganda e cooptação entre os seus. 

A construção da Casa D’Italia em Juiz de Fora foi bem recebida pela comunidade italiana local, especialmente pela família Arcuri, uma das mais ricas e conhecidas da cidade. A simpatia por Mussolini era abertamente declarada pelo patriarca, Pantaleone Arcuri, que era elogioso das transformações ocorridas na Itália e, por isso, considerava o ditador fascista um herói. Pantaleone foi um dos principais financiadores da construção do imóvel, sendo o projeto de autoria de seu filho Raphael Arcuri e sua construtora a responsável pela execução.

A imponente estrutura do imóvel, na principal avenida da cidade, era adornada com o símbolo do Partido Nacional Fascista (Partito Nazionale Fascista), uma machadinha envolta por um feixe, que estava presente no alto da sua fachada e que ainda hoje está nas grades do portão, nos tacos do piso e nas escadarias internas. Além disso, a Casa promovia em suas instalações diversas atividades recreativas, culturais e esportivas para criar elos e reforçar seu lugar enquanto espaço de sociabilidade da comunidade italiana, dentre as quais a exibição de noticiários e documentários audiovisuais para difusão das realizações do PNF. O Partido, também chamado de Fascio, tinha uma sala no prédio.

Ressalta-se assim o papel fundamental que o espaço cumpriu enquanto promotor dos ideais fascistas de Mussolini na comunidade italiana emigrada para o Brasil, que neste momento já tinha deixado de lado suas diferenças regionais e se consolidado em torno da representação da Itália como una. Logo, o fechamento da Casa na década de 1940, por conta das políticas varguistas de repressão e rompimento de relações com a Itália, causou grande impacto nos italianos e italianas que aqui viviam, pois o espaço já pertencia a suas memórias e afetos. 

Quase 80 anos depois, o anúncio do fechamento do espaço novamente impactou a sociedade juiz-forana e os descendentes dos italianos, demonstrando a continuidade da importância do espaço para a comunidade, a despeito do tempo e da história de  autoritarismo que marcou a Casa. Ainda dedicada à cultura, à educação e à sociabilidade, mas longe e combatente às ideias da extrema-direita, a Casa D’Italia vem se reinventando a cada ano. 

Trabalhando diretamente nas frentes da cultura e educação, o Departamento de Cultura da instituição vem colocando a Casa no cenário de Juiz de Fora enquanto um espaço democrático e plural. Em consonância com suas raízes históricas, o Departamento de Cultura trabalha para a preservação e difusão da cultura italiana. Contudo, expandindo-se o campo imaterial, a Casa D’Italia de Juiz de Fora se torna referência como centro cultural na cidade e na região. Ressalta-se sua relevância enquanto um espaço de memórias, contidas nas paredes que vivenciaram diversos momentos da história entre Brasil e Itália e as alegrias e saudades dos imigrantes que a frequentaram no passado, mas também enquanto um espaço que vive e respira arte, a cultura e que vem acompanhando, através dos tempos, a evolução e renovação do seus ideais. 

Concretizando essa renovação de uma Casa vívida, democrática e humanizada, o Departamento de Cultura vem criando agendas que passaram a fazer parte da realidade do espaço, incluindo eventos como semanas culturais, exposições artísticas e fotográficas, mostras de cinema, cursos de gastronomia, jantares e festas típicas, dentre outros. Além disso, certos da importância da pesquisa e da ciência, a Casa D’Italia vem se aproximando cada vez mais das instituições acadêmicas, sendo base de pesquisas de projetos de extensão, estudos do patrimônio tombado, pesquisas históricas, provando mais uma vez que espaços de memória podem se transformar através dos tempos. A Casa D’Itália de Juiz de Fora, que nasceu das raízes do fascismo, hoje é berço de uma efervescência cultural na cidade e reafirma sua transformação em seus ideais, lutando sempre pela preservação da democracia e pluralidade em todas as ações promovidas pela instituição. 


Referências bibliográficas:

FERENZINI, Valéria Leão. Os italianos e a Casa d’ Italia de Juiz de Fora. Locus: Revista de História, [S. l.], v. 14, n. 2, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/31012. Acesso em: 14 jan. 2023.


Dalila Varela

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Editora assistente Revista Casa D’Italia. Mestra e bacharela em História com habilitação em Patrimônio Cultural pela UFJF. Vinculada ao Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA-UFJF).

Paola Frizero

Formada em Turismo pela UFJF, com ênfase em patrimônio cultural e bacharela em Ciências Humanas. Pós-graduada em Gestão Cultural, obtive experiências profissionais principalmente em educação patrimonial e hoje, além de atuar também no TRADE turístico, sou mestranda na Universidade de Évora – Portugal, em Turismo e Desenvolvimento de Destinos e Produtos.


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Autores:
Everton Fernando Pimenta
Guilherme David
Larissa Frazão
Nil
Gabriel Benedito Machado
Tamires Rosa
Milene do Carmo Gomes
Juliana Coelho Pereira
Dalila Varela
Paola Frizero

Arte da capa:
Laura Coury

Revisoras:
Táscia Souza
Ana Lúcia Jensen

Ilustrações:
Laura Coury Bernardes

Projeto Gráfico:
Rafael Moreira Teixeira

Coordenação Geral:
Rafael Moreira Teixeira

Edição:
Paola Maria Frizero Schaeffer
Dalila Varela

Auxiliar:
Camisa Sá de Oliveira

Site:
Thaiana Fernandes Pinto Gomes

Mídias sociais:
Rafael Moreira Teixeira e Laura Coury Bernardes

Diagramação:
Thaiana Fernandes Pinto Gomes

Captação e edição de áudio e vídeo:
Vinícius Sartini da Silva

Apoio:
Rafael Bertante
Cristina Njaim
Patrícia Ferreira
Arlene Xavier
Louise Torga
Paulo José M de Barros
Ana Lewer
Imo Experiência Turística
Curso Cultura Italiana
Grupo Tarantolato
Lectio Soluções Linguísticas
PontoTrês

Realização:
Duplo Estúdio de Criação
Departamento de Cultura da Associação Casa de Itália

Periodicidade:
Mensal

ISSN:
2764-0841