Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 28, 2022 – Karina Avelar | O patrimônio juiz-forano e a difícil construção das memórias da ditadura
Durante o período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), Juiz de Fora (MG) teve importante participação na conformação e vigência da estrutura autoritária do regime. À época sede da 4ª Região Militar, a cidade foi estratégica para a manutenção do sistema repressivo da ditadura, tendo recebido prisioneiros de diversas regiões e abrigado instituições que serviram como espaço para prisões políticas e interrogatórios, além de carregar a mácula de ter sido o local onde se originou o golpe de 1964.
Em função disso, em seu espaço urbano é possível encontrar resquícios materiais que estão associados a essa parte de seu passado. De acordo com o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Juiz de Fora foi, depois de Belo Horizonte, o município mineiro com mais unidades que serviam ao sistema de repressão e que apresentam indícios de violações dos direitos humanos. Contudo, essa parte do passado e da história dos edifícios que serviram a esse propósito, em geral, não é abertamente conhecida pela população. São pertinentes, portanto, os questionamentos sobre o espaço que as memórias da ditadura ocupam na cidade.
A CNV e as comissões subnacionais da verdade instituídas no Brasil contribuíram para o esclarecimento e a compreensão da estrutura repressiva no país. Dentre suas muitas conquistas, possibilitaram a ampliação dos debates acerca da materialização de memórias públicas a respeito da ditadura no espaço urbano, identificando e tornando públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos durante o período investigado. Possibilitaram, portanto, um avanço no sentido de identificar e reconhecer os lugares relacionados à ditadura que até então eram pouco conhecidos ou explorados.
Nesse sentido, a Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) e a Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora (CMV-JF), além da CNV, contemplaram em seus trabalhos investigações relacionadas à cidade de Juiz de Fora, em virtude da ocorrência de casos de graves violações dos direitos humanos praticadas no município durante o período da ditadura. Dentre os locais por elas identificados na cidade estão os prédios que abrigaram a Auditoria Militar — que se localizava à Praça Dr. Antônio Carlos, no centro da cidade, onde atualmente ainda estão instaladas repartições do Exército Brasileiro — e o Quartel General da 4ª Região Militar, que se localizava no bairro Mariano Procópio durante o período da ditadura.
Ambos os prédios foram tombados em nível municipal durante a década de 1990, tendo como motivação histórica para tal sua relação com o contexto histórico em que foram construídos, época em que a cidade recebeu a alcunha de “Manchester Mineira” em função de seu progressivo desenvolvimento econômico. Tal justificativa histórica mobilizada para esses tombamentos, entretanto, resultou na ocultação de outros aspectos do passado de tais edifícios, como sua relação com a estrutura repressiva do período ditatorial, usualmente desconhecida até os dias atuais.
Sendo o tombamento um instrumento jurídico cujo objetivo é preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e afetivo, tais prédios possuem reconhecimento formal de sua importância para a preservação de memórias e identidades. Porém, revelam também a pouca relevância conferida às memórias da ditadura em relação à necessidade de salvaguardá-los e o caráter seletivo dos processos de construção de memórias. A quem serve o esquecimento do passado ditatorial?
Em Juiz de Fora, por conseguinte, nota-se o apagamento das memórias da ditadura e a escassez de referências a esse período no seu espaço urbano — embora não faltem na cidade bens que possuem relação direta com o passado da violência e do autoritarismo ditatorial. Trata-se de uma estratégia de obscurecimento de determinadas representações e narrativas sobre o passado, a qual serve para referendar o patrimônio que se pretende preservar, legitimar e valorizar.
Nesse sentido, o tombamento não pode ser um fim em si mesmo, tampouco deve encerrar as discussões e ações acerca dos bens protegidos, pois ele não garante que a sociedade conheça e se aproprie dos significados histórico-culturais dos bens. Para que esses bens se configurem como lugares de memória e não como figuras de esquecimento no espaço urbano, o tombamento deve ser acompanhado de ações de mobilização, intervenção, significação e apropriação pela sociedade, servindo à consolidação de diferentes memórias no espaço público e, consequentemente, à afirmação dos valores democráticos. Daí a importância de não apenas preservar o patrimônio, mas também valorizar a história concernente a ele.
Referências bibliográficas:
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório CNV. Brasília: CNV, 2014.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. São Paulo: Contraponto, 2014.
MINAS GERAIS. Governo do Estado. Comissão da Verdade em Minas Gerais [recurso eletrônico]: Relatório / Governo do Estado. Belo Horizonte: COVEMG, 2017.
JUIZ DE FORA. Comissão Municipal da Verdade. Memórias da repressão: relatório da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora. Juiz de Fora: MAMM, 2016.

Karina Avelar
Doutoranda, mestra e licenciada em História, com ênfase em Patrimônio Cultural, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).