Entre serragens e flores: os tapetes devocionais em Ouro Preto

Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 28, 2022 – Isadora Parreira Ribeiro | Entre serragens e flores: os tapetes devocionais em Ouro Preto


Historicamente, tapetes são tratados como obras de arte e tomados como objetos de valor cultural e econômico, possuindo “um alto teor de praticidade e espiritualidade nos vários momentos da humanidade que a ele se recorre” (SILVA, 2015:4). Seus usos foram sendo reinventados ao longo dos anos e adaptados a diferentes culturas, ganhando novas características e materiais.

Na sua forma primitiva, os tapetes se configuram como prática artesanal, no sentido de produzir um objeto de uso comum, “seja para uma função utilitária, lúdica, decorativa ou religiosa” (idem). Na Idade Média, os tapetes devocionais apareciam como forma de agradecimento ao divino e, ao longo dos séculos, a prática foi incorporando-se às festas católicas e ganhando contornos próprios.

Olhando de maneira mais detida as manifestações religiosas, reconhecemos elementos identitários de determinados grupos. Apesar do caráter unificador promovido pela Igreja Católica, a extensão do território brasileiro permitiu que a linguagem simbólica usada durante os ritos encontrasse brechas, ganhando assim características próprias a cada região. O lugar, como afirma Rosendahl, “é reivindicado, possuído e operado pela comunidade religiosa” (2005:129), destacando as relações de poder que refletidas na posse do território — palco do ritual — que é “consagrado, protegido e reconhecido pela comunidade” (idem). Em Ouro Preto, Leonel afirma que a “interpenetração profunda entre o Catolicismo, o poder político e sua espacialidade” (2017:12) são, desde o século XVIII, elementos de impacto nas festas religiosas e, por consequência, na compreensão sobre o espaço da cidade.

Este texto volta-se a um elemento largamente conhecido na história das religiões e que funciona para além de seu caráter artístico, conjugando expressões desenhísticas, fazendo emergir memórias sobre a cidade e suscitando reflexões sobre as dinâmicas do sagrado. Portanto, neste trabalho, os tapetes devocionais serão tratados como um dos elementos codificadores da experiência coletiva de ouro-pretanos, que, por iniciativa própria, mantém a tradição de feitura dos tapetes como maneira de se relacionarem entre si, com a sua religiosidade e com o espaço da cidade.

Os tapetes

Dotados de profunda significação, os tapetes devocionais se estendem pelas ruas do centro histórico de Ouro Preto e são feitos comumente de materiais de origem orgânica, como flores secas, cascas de arroz, areia, serragens e folhagens, reunidos durante todo o ano por uma parte da população. Embora também sejam executados durante as comemorações de Corpus Christi, é na madrugada do Sábado de Aleluia, na Semana Santa, que Ouro Preto é tomada por uma infinidade de materiais coloridos que se estendem pelas ruas e recebem a procissão na manhã seguinte.

A existência das duas matrizes, Nossa Senhora do Pilar e Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, é em uma cidade paroquial, considerada incomum e aponta as pistas deste histórico de disputas territoriais marcado pela religiosidade. As marcas do conflito ainda são visíveis principalmente quando se observam os trajetos das procissões, tanto na celebração do Corpus Christi quanto nas solenidades da Semana Santa. Os trajetos nas duas festas se constroem de maneira distinta, principalmente na Semana Santa, quando parecem indicar certa afirmação territorial. Assim, “nesses percursos, o tapete demonstra que tem sua razão de ser não só numa demanda simbólica exógena à situação local (a própria celebração da Páscoa Cristã), mas numa forte ligação com a história do lugar e a memória da sua sociedade”
(FREITAS, 2008:3).

Apesar de circunscritas a festas religiosas, as temáticas dos tapetes não são exclusivamente litúrgicas e vão ao encontro de demandas sociais atuais, dividindo opiniões entre a própria comunidade. Uma parte apoia a inserção de novos temas e uma maior liberdade de criação enquanto a outra prefere manter a tradição e a temática religiosa.

As procissões de Corpus Christi e do Domingo da Ressurreição — quando os
tapetes emergem em Ouro Preto

A teatralização do culto em Ouro Preto atingia seu ápice na procissão de Corpus Christi, através não somente da incomum exibição do Santíssimo Sacramento em via pública, mas também como procissão que foi se tornando cada vez mais democrática, diluindo a dura hierarquização dos atores e com traços de manifestação e participação popular, hoje vista nos tapetes devocionais. Esse momento em específico, em que os tapetes se fazem presentes na procissão, é considerado a festa da sensibilidade visual, configurando-se no apogeu do esplendor da festa católica.

No entanto, segundo Lopes, “o modo de celebrar tal festa modifica consideravelmente com o passar dos séculos” (2015:9), assumindo, para além da feição religiosa, a dimensão de um cortejo urbano, “adquirindo também um aparato artístico” (idem). Ainda segundo a autora,

religião e arte dividem espaço na procissão e produzem efeitos extremante instigantes, gerando uma atmosfera propícia à consolidação da fé, os laços de sociabilidade entre os fiéis, a inversão e, paradoxalmente, a reiteração da hierarquia, a explosão da criatividade emersa na cultura erudita e popular, o florescimento do hibridismo cultural, bem como o despontar da religiosidade.(idem)

O planejamento temático, prático e artístico dos tapetes é feito, em grande parte, pela própria comunidade, com o apoio de instituições como a Faop (Fundação de Arte de Ouro Preto), responsável por desenvolver e ampliar os desenhos em conjunto com a população. Esses desenhos serão, em fase posterior, aplicados em grande escala nas ruas do centro histórico. Ademais, durante o período letivo, professores e alunos da escola de arte estudam composições, formatos e temas que conjugam não apenas os motivos litúrgicos, mas também aqueles dotados de significação na contemporaneidade, alargando o sentido daquilo que é importante coletivamente.

Em 2020, quando esta pesquisa estava sendo delineada, foi ouvida uma ouro-pretana, Ana Fátima Carvalho, professora e artista plástica, que compartilhou suas memórias sobre a feitura dos tapetes, reforçando a importância da prática para a comunidade:

Vou para rua com a alegria de uma criança. É um encontro da tradição com nossa memória, nossa cultura e nossa arte. Renovação da fé. […] O percurso da procissão nunca passou pela porta da minha casa, mas desde muito cedo eu ia ver as pessoas fazendo os tapetes e minha mãozinha coçava para fazer. Meus pais diziam fazer o tapete é coisa séria, criança não pode fazer. Eu devia ter uns 12 anos quando uma senhora deixou que eu fizesse um pedacinho da porta dela. Ai não parei mais. Faço tapete todos os anos. Já até ganhei um concurso de melhor tapete do ano. Foi uma única vez que teve o concurso promovido pela associação comercial de Ouro Preto. Depois o Padre da cidade disse que o tapete tem que ser feito com fé e alegria e não como uma competição. Eu inclusive concordo com ele, confeccionar os tapetes é o símbolo da fé e da religiosidade dos ouro-pretanos. A. F. Carvalho, entrevista à autora por email, 02. dezembro, 2020)

Oliveira afirma, assim como atesta o depoimento acima, que os tapetes funcionam como uma “estrutura simbólica de ordenação do comportamento interpessoal que torna compreensível não só a experiência comum, como também o contexto social no qual estão inseridos” (2014: 46). Como parte da dinâmica ritual, o ato de fazer os tapetes constrói relações de poder e sociabilidade capazes “de romper com o cotidiano, reunir grupos que celebram e se reafirmam periodicamente” (idem).

Considerações finais

Ouro Preto pode ser percebida como um grande laboratório das práticas patrimoniais brasileiras, um território de experimentações de discursos e observações de práticas relacionadas à construção de memória e identidades através de suas várias manifestações culturais. A confecção dos tapetes devocionais se insere nessa dinâmica e é interessante observar que, mesmo em um contexto religioso, não ficam subscritos a ele, mas também conjugam formas geométricas e temas contemporâneos, uma vez que a confecção dos tapetes é uma atividade coletiva e, portanto, diversa e viva, extrapolando o universo devocional. As festas em que são confeccionados os tapetes, apesar de não integrarem as listas de patrimônios oficiais da cidade de Ouro Preto, possuem um grande peso para a comunidade residente e figuram como momentos de “ruptura espaço-temporal e de instauração de uma ordem social excepcional” (SANT’ANNA, 2013:25), ordenando valores referenciais e simbólicos importantes para a comunidade.


Referências bibliográficas:

FREITAS, E. S. Tapete de serragem da Semana Santa: aspectos desenhísticos de uma tradição da cidade de Ouro Preto. In: IV Encontro de História da Arte – IFCH /UNICAMP, 2008. Campinas

LEONEL, G. G. O campo religioso da cidade de Ouro Preto-MG entre 1980-2010: catolicismo e diversificação religiosa. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Campus Mariana, p.280, 2017

LOPES, A. D. O Corpus Christi na Bula Transiturus de Hoc Mundo: A relação entre o sagrado e o profano e sua Tradução Cultural nas imagens dos tapetes da procissão em Capanema-PA. Tese (Mestrado do Programa de Pós Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia) – Universidade Federal do Pará- Campus Bragança, 2015.

OLIVEIRA, E. A. Igreja e rua, dois espaços a mesma fé. Sacralização do espaço na festa de Corpus Christi. Tese (Mestrado em Ciência da Religião) – Universidade Federal de Juiz de Fora, 2014

ROSENDAHL, Z. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião. In: Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina, 2005. São Paulo: Universidade de São Paulo.

SANT’ANNA, M. A festa como patrimônio cultural: problemas e dilemas da salvaguarda. Revista Observatório Itaú Cultural, n. 14, p. 21-30, 2013.

SILVA, C. M. Tapete como arte no tempo e no espaço: uma possibilidade no estudo da geografia cultural. In: XV Encuentro de Geógrafos de América Latina, 2015. Havana.


Isadora Parreira Ribeiro

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestra (2021) em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual pela Universidade do Porto, Pós-graduada em Gestão Cultural pelo SENAC São Paulo (2016) e bacharela em História pela PUC Minas (2013). Tem experiência docente na área de História, Patrimônio, História da Arte e Educação Patrimonial, áreas nas quais também desenvolve pesquisas. É pesquisadora e autora de duas publicações financiadas pela Lei de Incentivo à Cultura sobre o patrimônio cultural do Alto Paranaíba em Minas Gerais. Atualmente é professora do IEC PUC Minas, membro do Grupo de Pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais CNPq e do Laboratório de Patrimônios Culturais (LAPA) da UFJF.