Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 28, 2022 – Helena Amaral Sant’ Ana | Aquilo que transcende o lembrar e o esquecer: Reflexões sobre os lugares de memória na cidade de Carvalhos
Pensar o patrimônio atravessa reflexões materiais e simbólicas que permeiam os campos da memória. Marcados por lembranças, ressignificações e esquecimentos, são estimulados por lugares, objetos, sentidos do corpo e diversas atmosferas, que podem trazer à tona sentimentos e reações, como felicidade, tristeza, angústia e nostalgia. Impulsos relacionados ao “lembrar” e ao “esquecer” são fragmentos que constituem as memórias, desencadeados de forma intencional ou não.
Para Pierre Nora (2010), os chamados lugares de memória possuem como fins despertar lembranças e sentimentos que não surgem espontaneamente, acerca de fatos e sujeitos representados por meio de uma realidade simbólica. A edificação destes espaços no Brasil foi crescente à medida que se fazia necessário o desenvolvimento de um sentimento de nacionalidade, para que pessoas possuíssem referências em “grandes homens” e “grandes feitos”. Assim como parte notável da patrimonialização e da musealização de lugares e bens, a construção de narrativas que remetem aos tempos passados do país, são processos apresentados por François Hartog (2014) como formas de promover uma experienciação do passado e construir uma consciência histórica, porém muitas vezes excludentes.
Trata-se de uma questão política, onde aquele que produz narrativas está em uma posição de escolhas e exclusões, influenciando a construção de uma identidade pública, atribuindo significados e sentidos sobre o passado. Na formação das memórias coletivas, Hugo Achugar (2006) aponta que há uma disputa entre o que será lembrado e esquecido. Desse modo, atrelados aos lugares de memória, são desenvolvidos sentimentos a partir de símbolos que demarcam um passado em comum.
De acordo com o autor, conhecer a história de um lugar pode transformar a concepção do espaço e, sobretudo, estimular o sentimento de pertencimento e o desenvolvimento da consciência histórica individual e coletiva. Ele reforça o papel das experiências na construção deste imaginário, que podem ser proporcionadas pelos espaços de memória, onde o cultural e o simbólico perpassam o caráter geográfico. A partir dessa visão, reforça-se a conexão entre a memória e a identidade, onde sujeitos podem se reconhecer como semelhantes e se sentirem pertencentes a um mesmo espaço. Vitor Schelb (2021) aponta que uma existência compartilhada não se limita à simultaneidade de experiências, mas envolve aspectos que se atravessam em uma multiplicidade de percepções, onde “a memória vem a servir como laço de alteridade entre a comunidade, provendo unidade ao que antes era disperso” (SCHELB, 2021, p. 63).
Jan Assmann (2011) demonstra que as lembranças nutrem o sentimento de pertencimento, assim, associa à memória a durabilidade dos vínculos e estruturas sociais, demonstrando que enquanto uma memória cultural é mantida coletivamente, uma identidade é transmitida. Ela se faz presente por meio de símbolos como monumentos, construções, ritos, práticas, manifestações artísticas e religiosas, datas comemorativas, dentre outros. Logo, os espaços de interações cotidianas podem ser entendidos como espaços de memórias.
O imaginário popular, o sentimento de pertencimento e as relações com o passado se moldam ao longo do tempo, as relações com a memória envolvem especificidades, mas se cruzam em diversas nuances que ampliam as definições materiais de lugares de memória. A cidade de Carvalhos, cujo nome provém da antiga fazenda localizada onde hoje é a área urbana, é um município jovem, com apenas setenta e quatro anos de sua emancipação, onde se ergueu, se desenvolveu e passou por diversas transformações. Moradores do local constantemente alegam a “ausência de um passado”, justificada por não haver nenhum museu ou espaço que conte a história da cidade. Em Carvalhos, as casas antigas são cada vez mais incomuns, prédios do início do século XX são derrubados sem nenhum remorso, a cidade se expande, porém com pouquíssimo bom senso estético.
Como exceção, há a Estação Ferroviária, em conjunto com a caixa d’água que abastecia a Maria Fumaça, a Ponte de Ferro e alguns restos de trilhos pelas estradas de terra. A ferrovia chegou na cidade em 1903, pouco mais tarde foi construída a estação definitiva e foram setenta e quatro anos servindo a população, contribuindo grandemente com o desenvolvimento urbano e com a economia. Estas edificações remetem às lembranças dos tempos do trem que surgem constantemente nas conversas, guiando a memória coletiva, conduzindo sentimentos e possibilitando um reencontro com o passado, alcançando até mesmo quem não viveu.
Porém, ainda assim, é muito discutida a negligência com estes espaços, de modo que não possuem fins culturais e educativos, e cada vez mais são engolidos por outras obras urbanas. As tentativas de “modernização” da cidade acarretam um distanciamento do povo com o passado, um esquecimento involuntário e gradativo a partir da ausência do sentimento de um passado presente, o que pode explicar o constante descarte e desapego de edifícios e objetos antigos. Como colocado por Hugo Achugar (2006), o esquecimento pode ser natural ou construído, assim, pode-se refletir sobre a complexidade por trás do “não lembrar”, tanto no que mobiliza um esquecimento natural gradativo, quanto nos interesses em silenciar memórias.
Contudo, em Carvalhos o passado pode ser sentido nas práticas cotidianas e nos afetos. Manoel Lourenço Motta do Amaral, no livro “Raízes de Carvalhos”, aponta que os carvalhenses “preocupam-se mais com sua alimentação, com suas famosas comidas caseiras, do que com a moradia. O principal cômodo da casa é a cozinha e não a sala de visitas” (AMARAL, 2009, p. 110.). A permanência de costumes é viva nos mais diversos ambientes, principalmente religiosos e familiares. Em Carvalhos, a memória está presente nos diálogos entre as pessoas mais velhas, nas devoções nos templos religiosos, no sincretismo, nas receitas tradicionais, nas fotografias expostas nas casas, nas novenas de natal, nas histórias contadas em uma noite sem energia elétrica, nas montanhas que abençoam e protegem a cidade, nas árvores de frutas dos lotes baldios, nas estradas de terra, nos cavalos e carroças, no compartilhar de alimentos entre os vizinhos, nas hortas, nas brincadeiras das crianças, nas cantigas de roda. A calmaria do passado não foi desaprendida.
Certamente, também é possível realizar críticas a uma certa inércia e a tradições conservadoras, porém, neste artigo, busca-se refletir acerca da complexidade existente nas discussões que envolvem os lugares de memória, a identidade coletiva e o pertencimento. Se faz necessário ampliar a visão além das comuns dualidades do material e imaterial, das lembranças e do esquecimento, valorizando e destacando as especificidades históricas e sociais dos lugares de memória que, como apresentado, transcendem os espaços físicos.
Referências bibliográficas:
ACHUGAR, Hugo. A Nação entre o esquecimento e a memória. Para uma narrativa democrática da nação. In. Hugo Achugar – Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. De Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
AMARAL, Lourenço Motta. Raízes de Carvalhos. 2ª edição. Varginha: Gráfica e editora Bom Pastor. 2009.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
ASSMANN, Jan. Memória Comunicativa e memória cultural. Revista História Oral. V.19. n.1. p. 115 – 127. Trad. Méri Frotscher. jan/jun.2016.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: O que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Puc Rio. RJ .2010. p. 7-19.
HARTOG, François. Regimes De Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Tradução de Andréa S. De Menezes, Bruna Beffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva E Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
HARTOG, François. O passado no presente. [Entrevista concedida a] Martine Fournier. Sciences Humaines, 7 abr. 2020. Disponível em:
<https://www.scienceshumaines.com/troubles-dans-le-presentisme-entretien-avec-francois-hnrtog_fr_42224.html>. Acesso em: 12 set. 2022.
NORA, Pierre. Entre a memória e a história: A problemática dos lugares. Proj. História. Trad. Yara Aun Khoury. São Paulo. 2010.
SCHELB, Vitor Aiala Cascelli . Lembrar e esquecer na era do Facebook (2016 – 2020). Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Ouro Preto. 2021.
WHITE, Hayden. “O texto histórico como artefato literário”. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP.

Helena Amaral Sant’ Ana
Tem 24 anos, é de Carvalhos, sul de Minas Gerais. Se formou em História pela Universidade Federal de Ouro Preto em 2021 e atualmente é mestranda na Universidade Federal de Juiz de Fora, orientada pelo Prof. Dr. Mateus Andrade. Pesquisa sobre a formação da Freguesia de Aiuruoca no início do século XVIII, realiza consultorias históricas na região de Carvalhos, é autora do livro “Carvalhos em fotos: século XX” e conta com um canal no Youtube relacionado a história, pesquisa e estudos (Canal Helena Amaral Sant’ Ana).