Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 27, 2022 – Eric B. Fraga | Não entre em pânico: usos políticos do pânico moral e seus impactos
Magia negra, kit gay, perseguição a evangélicos, perversão de crianças e assassinato de bebês são temas comumente mobilizados para criar o fenômeno denominado “pânico moral”. Seus usos políticos nos últimos anos se baseiam em estratégias de esvaziamento de debates, tornando-os um assunto espinhoso pelo medo de sua desvirtuação, freando o avanço de discussões que tratem, em sua maioria, de temas como racismo, gênero, sexualidade, religião, classe e educação. Esses temas e as ideias dominantes sobre o que e como deveriam ser tratados pela sociedade aparecem armados de sensacionalismos, comumente voltando-se a minorias sociais e suas demandas, visando que tais perspectivas não avancem no debate político e permaneçam relegadas às margens da sociedade.
Mas, o que é o pânico moral exatamente? É baseado em que concepções morais? A teoria do pânico moral foi cunhada e popularizada por Stanley Cohen, em seu livro Folk Devils and Moral Panics (1972)1, uma das principais referências sobre os estudos da criminologia. O conceito aborda como determinados sentimentos, ideias e ações são utilizados para demarcar determinados grupos sociais como um perigo para valores e interesses da sociedade. O efeito causado pode ser passageiro ou duradouro, tendo impactos na política e no Estado, gestando leis ou criando um inimigo imaginado que reflete, deslealmente, minorias sociais.
Essa estratégia discursiva apela a sentimentos exagerados e noções pré-existentes para criar relações extrapoladas em parcela da sociedade, além de culpar aqueles que não se sentem atingidos por tal pânico. A sexualização de crianças é algo moralmente condenável, é algo ruim e perigoso; expor crianças a conteúdo sexual, também. Portanto, não precisa ir muito longe imaginar que a distribuição de mamadeiras fálicas em escolas nacionais seria, no mínimo, algo absurdo. É justamente a partir desse sentimento de absurdo que surge o pânico moral, mascarando qualquer possibilidade de se racionalizar a situação. Entretanto, o medo e o pânico causados em determinados setores da sociedade são tão grandes que impossibilitam que cheguemos à raiz de tal consideração absurda.
Quem disse isso? Contra quem? Em que contexto? Isso realmente aconteceu? Todas essas perguntas são mascaradas pela parede discursiva. Se o assunto original em que tal afirmação surgiu era a educação, essa fica eternamente marcada pela sombra da dúvida, gerada justamente pelo sentimento de proteção e o medo de ameaças às nossas crianças. De tal maneira que, mesmo com agências de apuração de informação (fact-checking), esse tipo de ideia se enraíza no imaginário social e é sempre mobilizada para frear discussões progressistas.
Se a discussão é a legalização do aborto, problema de saúde pública e garantia de direitos a população que gesta, aparece o discurso de que irão “matar bebês”. Se a discussão é sobre combate à LGBTQIAPN+fobia, surge a falácia do “kit gay”, da ideologia de gênero. Temáticas referentes a gênero e sexualidade tendem a sofrer ataques que tentam ligar tais estudos, discursos e teorias à perversão, especialmente perversão de crianças. Essa retórica surge nos Estados Unidos na década de 19602, no furor das leis antipornografia que visavam “proteger” a juventude norte-americana da perversão da vida sexualmente liberada. Entretanto, acabaram sendo utilizadas para reprimir parte da população que não se enquadrava nas regras de comportamento moral e sexual, transformaram minorias sexuais em inimigos da família nuclear heterossexual, apesar de esse nunca ter sido o caso. Foi justamente através do pânico moral gerado por tal retórica que, na mesma época, nos Estados Unidos, leis que visavam maior controle sobre o sexo, a sexualidade e os corpos foram aprovadas, causando anos de repressão, opressão e retrocessos e marginalizando ainda mais minorias sexuais e sociais.
Religiões de matriz africana, historicamente perseguidas e marginalizadas pelo Estado e pela sociedade civil, são associados à ideia de “magia negra”. Tais religiões continuam sendo perseguidas e vítimas de crimes de ódio e racismo religioso. Infelizmente, tem se tornado mais recorrentes episódios em que centros, terreiros e barracões são vítimas de invasão e vandalismo, suas imagens quebradas, seus templos atacados e sua fé desrespeitada. Esse ódio é alimentado pela retórica de que religiões de matriz africana, nominalmente a Umbanda e o Candomblé, estão inseridas em uma dinâmica de guerra espiritual contra a fé cristã.
Esse tipo de narrativa associa as religiões de matriz africana à ideia do profano, do mal, de demônios e magias, a partir de uma perspectiva cristã. Tais argumentos são utilizados para reforçar a noção de que a “magia negra” e a “macumba” irão destruir a moral cristã, que a tentação desses rituais serve como provação do inimigo, do diabo — figura que, dentro das práticas de religiões de matriz africana, não existe. Pomba-gira e Exú, entidades sagradas nesses credos, são retiradas de seu contexto original e estabelecidas como inimigas da fé cristã, figuras disruptivas que representam o mal, a luxúria e a perversão. Ou seja, são retiradas de seu contexto e adaptadas a partir de um referencial externo, sendo colocadas em um local que não lhes pertence e transformadas em inimigas declaradas de grande parte da população. Um inimigo que irá consumir e depravar a todos, se assim permitido.
Respostas ao pânico moral, aqui atrelado ao racismo-religioso, são vistas de diversas formas: o desconforto em falar sobre tais religiões, o medo irracional de rituais, a perseguição a templos e praticantes e, muitas vezes, a proibição da expressão da crença. Isso fere o princípio da liberdade religiosa, assegurado pela Constituição Federal, além de marginalizar ainda mais religiões historicamente perseguidas, criando animosidade e incitação ao ódio entre grupos religiosos que podem coexistir pacificamente. Utiliza-se do sentimento de guerra religiosa, de proteção contra a perversão causada pela “magia negra”, para mobilizar um jogo político e assegurar o apoio da população evangélica brasileira, que hoje representa grande parte da população. Tal apoio vem à custa de uma paranoia social contra um grupo minoritário e socialmente perseguido, utilizado como bode expiatório em jogos políticos.
Nesse mesmo sentido, quando se discute o racismo no Brasil e ações antirracistas, a contranarrativa levantada é de que, ao se combater o racismo contra negros, se estabelecerá o racismo contra branco, ou de que se busca estabelecer um estado que privilegie negros e persiga brancos. Isso retira todo o contexto histórico das lutas contra o racismo no Brasil, utilizando-se de uma falsa simetria desonesta, que, ao mesmo tempo, reconhece a existência do racismo, mas desacredita a luta contra ele por medo de inverter as dinâmicas, inserindo um sentimento de medo frente a tais lutas, como se fosse um lobo em pele de cordeiro: o que começa como algo bom, a luta contra o racismo, inevitavelmente se tornaria perseguição contra brancos. Tal desconfiança impede que mais pessoas, especialmente brancos, se alinhem a causas e lutas antirracistas, assim freando o avanço da pauta nas esferas políticas e sociais.
Aqui a famosa frase de Paulo Freire “o sonho do oprimido é se tornar o opressor” é levada ao pé da letra, desconsiderando haver um complemento dito antes dessa frase: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor”3. O que os movimentos negros organizados e a luta antirracista têm mostrado nas últimas décadas é seu potencial libertador, seu caráter pedagógico, a fé na educação social e no letramento racial como estratégias de luta.
Enfim, o que este texto buscava abordar é como tal sentimento de pânico, exacerbado pelas mídias sociais, e a paranoia embutida no meio social contribuem para a marginalização de minorias sociais em esferas políticas, dificultando a discussão de tais questões sem que o medo envolvido no pânico moral ressurja. Isso marca os assuntos tratados neste texto como um “não-assunto”, algo que não deva ser tratado diretamente com o medo da represália, de instigar novas acusações.
Utilizam-se o medo e o pânico como instrumentos de controle social, alimentando paranoias ou construindo novas, estabelecendo alvos e demarcando inimigos com base política, embora isso se mascare com a noção de interesse de todos, de proteção a todos. Enfrentar diretamente o pânico moral é reconhecer, argumentativamente, que existe uma falsa simetria entre o que está sendo promovido pelo discurso e a realidade. E é justamente essa falsa simetria que retroalimenta o pânico, difundindo o sentimento de ameaça iminente, perversão da juventude ou disruptura social, dificultando a contra-argumentação ou, até mesmo, as tentativas de acalmar a situação. Cria-se um “nós” que é, a todo tempo, reiterado pelo embate com o “eles”. Mesmo quem busca acalmar a situação pode estar agindo com o inimigo.
Portanto, manter-se informado e crítico a que tipo de informação se recebe, de onde ela veio e a que serve é um ponto importante para evitar ser vítima do pânico moral. Em momentos de medo, o absurdo parece algo natural, acusações extrapoladas e exageradas nos parecem adequadas a momentos de grande tensão. Porém, deve-se reconhecer os usos políticos do pânico moral, como pode ser utilizado para transformar segmentos da população em massa de manobra. Pânico e medo apelam para sentimentos irracionais, para decisões tomadas no calor do momento. Para não sermos vítimas dessa paranoia, é necessário saber reconhecê-la e não se deixar ser tomado por ela.
[1] COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of Mods and Rockers. London, MacGibbon & Kee, 1972.
[2] RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. São Paulo. Ubu Editora. 2017
[3] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra. 1 ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 2013.
Referências bibliográficas:
COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of Mods and Rockers. London, MacGibbon & Kee, 1972.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra. 1 ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 2013.
GARLAND, David. SOBRE O CONCEITO DE PÂNICO MORAL. DELICTAE, Vol. 4, Nº 6, Jan..-Jun. 2019.
MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), janeiro-junho de 2007:101-128.
RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. São Paulo. Ubu Editora. 2017.
Kit gay, seminário LGBT infantil e lei do incesto: exemplos de desinformação sobre educação sexual no Brasil. Acessado em 27/08/2022. https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2019/11/19/kiy-gay-coletanea/
Kit gay, seminário LGBT infantil e lei do incesto: exemplos de desinformação sobre educação sexual no Brasil. Acessado em 27/08/2022. https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2019/11/19/kiy-gay-coletanea/
Terreiro de candomblé denuncia ataque de intolerância religiosa pelo 2º dia consecutivo no sul da BA. Acessado em 27/08/2022. https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/02/15/terreiro-de-candomble-denuncia-ataque-de-intolerancia-religiosa-pelo-2o-dia-consecutivo-no-sul-da-ba.ghtml
Terreiros atacados, religiosa espancada: o dia sangrento que o país ignora. Acessado em 27/08/2022. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/02/02/terreiros-atacados-religiosa-espancada-o-dia-sangrento-que-o-pais-ignora.htm?cmpid=copiaecola

Eric B. Fraga
É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF, bacharel em Ciências Sociais pela mesma instituição. ericbfraga@gmail.com