A importância de se pensar em uma educação inclusiva: a necessidade de se eliminar as barreiras que impedem o acesso à educação

Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 27, 2022 – Erika Neder | A importância de se pensar em uma educação inclusiva: a necessidade de se eliminar as barreiras que impedem o acesso à educação


A educação inclusiva deve estar presente nas agendas de todas as sociedades que se pretendam democráticas. Isso por conta da pretensão do oferecimento de igualdade de oportunidades à todas as pessoas. 

No Brasil, essa pauta tem sofrido bastante retrocesso. Explica-se: em relação à pessoas com deficiências, o país já passou por diversos modelos de visão dessa minoria. Em um primeiro momento, as pessoas com deficiência eram totalmente segregadas da sociedade, colocadas à margem dela, literalmente. Não possuíam nenhuma representatividade social, não possuíam, sequer, seus direitos garantidos e eram vistos muito mais como objetos de direito do que sujeitos de direito. 

Em um momento posterior, houve uma tentativa de integração dessas pessoas na sociedade, mas o ponto fundamental nesse modelo era a necessidade das pessoas com deficiência se adequarem à sociedade. Nem é preciso dizer a dificuldade que havia para essa suposta integração. Como uma pessoa com deficiência motora, que precisa de uma cadeira de rodas, por exemplo, se integraria a uma sociedade sem rampas de acesso em nenhuma via, em nenhum prédio, em nenhuma cidade? Impossível.

 Felizmente, hoje passou ao terceiro momento de se enxergar as pessoas com deficiência na sociedade. E hoje se fala em inclusão. Mas, o que essa inclusão quer realmente dizer? Nos termos das legislações atuais, muito necessário se pensar que a Convenção Internacional sobre direito das pessoas com deficiência, de 2006, foi internalizado como norma constitucional em 2009 através do decreto 6.949.  Essa convenção foi um marco importante para se definir vários pontos essenciais quando se pensa em pessoa com deficiência.

O mais importante deles foi definir que não mais a pessoa com deficiência precise se adequar à sociedade. Agora a sociedade é quem deve se adequar para incluir essas pessoas. Essa mudança de paradigma na forma de se enxergar a própria relação com a sociedade é fundamental para conseguir se entender toda a alteração cultural na forma de se garantir direitos, interesses e objetivos para essa parcela da população.

Em relação ao ponto sobre a mudança de paradigma social de quem deveria se adequar ao que, o preambula da Convenção, em sua alínea e, reconhece que a deficiência é um conceito em evolução, resultando da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras sociais, que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Sendo assim, a própria convenção reconhece que são as barreiras sociais, e não as individuais, que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidade com todas as demais pessoas. Essa nova visão é um avanço, que pode parecer pouco significativo, talvez apenas um “jogo” de palavras. Mas, juridicamente, não é. 

Ao se entender que a deficiência é da sociedade, se retira esse estigma da pessoa e com isso o Estado, representante dessa sociedade, tem que empreender meios para que todas as pessoas consigam participar dessa vida social de forma plena e efetiva. 

Nesse ponto, então, é importante se perceber o momento em que se retira essa responsabilidade da pessoa com deficiência e a transfere para o Estado, que, através de políticas públicas, terá que ser capaz de incluir a todos, independente de qual deficiência está em pauta.

A convenção possui vários outros pontos interessantes que é necessário ser exposto aqui. Além de reconhecer que todos os seres humanos possuem dignidade que deva ser respeitada, a Convenção ainda entende que as crianças com deficiência devem gozar plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de oportunidades com as outras crianças. Esse ponto é importante no que tange à educação inclusiva.

Se o Estado deve garantir essa igualdade de oportunidades para as crianças (veja, não apenas para as crianças, mas como o artigo trata de educação inclusiva, foca mais no tocante à educação) o Estado deve, no caso das escolas públicas, ofertar educação inclusiva, e no caso das escolas privadas, fiscalizar se essa educação inclusiva está sendo ofertada.

Em relação propriamente a educação inclusiva é importante lembrar que existem diversos aparatos que podem melhorar a dinâmica das crianças com deficiência na escola, desde um monitor especializado, que auxiliará o professor, passando por tecnologias assistivas, material didático em braile, banheiro adaptado, rampas de acesso e vários outros mecanismos que já são reconhecidos que facilitarão o dia a dia na escola. A questão é: o Estado está fazendo sua parte em garantir ou fiscalizar que se garantam isso?

Em 2015, ou seja, seis anos após a promulgação do decreto que internalizou a convenção, foi promulgada a lei 13.146, que ficou conhecida como lei brasileira de inclusão. Essa lei é outro marco legal sobre direitos das pessoas com deficiência que trouxe praticamente toda a sua razão de ser pela Convenção. Isso porque a própria convenção obrigava aos Estados partes elaborarem medidas para garantir todos os direitos que estavam dispostos na Convenção. 

Com um pouco de atraso, o Brasil conseguiu fazer uma legislação aparentemente boa para o tema. Diga-se “aparente”, porque na norma, a determinação é excelente. O difícil é tirar o papel e aplicar no cotidiano. Por isso que nos do direito sempre temos que mente que o papel aceita tudo. O difícil é implementar o que está disposto na norma. 

Um dos pontos importantes trazidos por essa lei brasileira de inclusão foi a questão de impor a toda a sociedade o papel protagonista de inclusão. Ou seja, não so as escolas públicas são obrigadas a incluir, como também as escolas privadas.

Mas, por incrível que pareça, houve uma ação direta de inconstitucionalidade em face desse ponto da lei 13.146, pois a confederação dos estabelecimentos privados de ensino entendia que essa obrigatoriedade das escolas privadas em ofertarem educação inclusiva era inconstitucional. Isso porque ofenderia a livre iniciativa e propriedade privada. Parece mentira, mas foi verdade. 

Felizmente, por maioria o Supremo tribunal federal entendeu que a obrigatoriedade de ofertar educação inclusiva era de toda a sociedade, sendo assim, escolas privadas também eram obrigadas a garantirem esse direito para as crianças com deficiência que quiserem estudar em determinada escola, sem que esse custo fosse repassado aos seus familiares.

Dessa forma, as escolas privadas também devem exercer seu papel de trazer a inclusão para dentro das escolas. Oferecendo todo o aparato já existente que colabora para uma melhor qualidade de ensino das crianças com deficiência.

A mudança de se enxergar as pessoas com deficiência deve partir da sociedade como um todo. Em nada adiantaria o estado garantir normas e leis, tentar dar aplicabilidade a elas e a sociedade não aceitar determinadas mudanças. Isso seria apenas uma lei “que não pegou”. A mudança que se quer para a sociedade deve mudar dentro das próprias pessoas. E assim, conseguir ir mudando a sociedade para que essas diversidades entre os seres humanos seja apenas uma característica e não mais um estigma que diminua a dignidade das pessoas.

Para essa alteração na visão sobre as pessoas com deficiência deve pensar um pouco sobre a questão da justiça. Esse ponto é crucial para se entender a importância dessa inclusão na sociedade. A teoria de justiça mais conhecida atualmente foi elaborada por John Rawls, em seu livro “a teoria da justiça” (2002). 

Nessa teoria, Rawls entende que a sociedade é criada pela elaboração de alguns princípios que forma escolhidos por pessoas livres, iguais e independentes, cobertos por um “véu de ignorância”. Perceba que Rawls entende que os princípios fundantes de uma sociedade serão criados por pessoas que ele mesmo entende ser livre, igual e independente. Mas quantas pessoas na sociedade possuem esses predicados? Pode-se entender que a maioria da sociedade é livre? Independente? Igual?

Outro ponto importante é sobre o “véu da ignorância”. Essa aplicação tenta retirar qualquer conhecimento prévio de que alguém soubesse qual seu status na sociedade. Nessa situação, Rawls entende que os fundadores dos princípios teriam cuidado em garantir uma justiça social para todos, até porque ninguém saberia o seu próprio lugar na sociedade. E como ninguém saberia se seria parte ou não de alguma minoria, a ideia é de que se abraçasse todas as minorias, tentando minimizar qualquer tipo de injustiça a elas.

Acontece que essa teoria da justiça, de Rawls, não engloba as pessoas que não estariam livres, iguais e nem independentes. Dai importante pensar se essas pessoas não deveriam estar presentes, defendendo seus interesses no momento do contrato social. 

Essa objeção sobre essa teoria fez surgir uma nova visão da teoria da Justiça. Autores como Amartya Sen e Martha Nussbaum começam a inserir uma nova visão sobre a teoria da justiça visando trazer novos elementos para essa contextualização.

Nussbaum (2020) realiza, através de sua abordagem das capacidades, uma forma de justiça social ao “permitir que sejam conferidas à todas as pessoas as mesmas capacidades para que elas sejam capazes de fazer ou ser quem elas quiserem de acordo com o que qualificariam como sendo uma vida com dignidade” (NEDER, 2022). 

A Teoria das Capacidades entende que as garantias humanas centrais devem ser respeitadas e implementadas pelos governos como um mínimo exigido pela dignidade humana (NUSSBAUM, 2020, p.84). “Para isso, devem ser observadas as diferenças entre os seres humanos e garantidas às capacidades para todos, permitindo uma maior gama de funcionalidades entre eles de forma que consigam atingir os seus objetivos de vida” (NEDER, 2022).

A abordagem das capacidades por Nussbaum (2020) analisa a educação como elemento essencial para o desenvolvimento de vida “daqueles que estão em desvantagem na sociedade, dentre vários grupos vulneráveis, o estudo delimitou os alunos com deficiência, levando em consideração seus objetivos de vida” (NEDER, 2022).

 Resguarda que as mesmas oportunidades garantidas aos alunos sem nenhuma necessidade específica devem ser também ofertadas àqueles que necessitam de algum tipo de assistência para que ambos consigam atingir todas as suas potencialidades.

Ainda importante lembrar que uma sociedade so poderá ser efetivamente considerada inclusiva quando reconhecer que a diversidade humana é inerente aos seres humanos e as necessidades específicas de todos devem ser consideradas, visando promover políticas que objetivam diminuir essas diferenças assegurando a todos as mesmas oportunidades para o exercício de suas liberdades fundamentais.


Referências bibliográficas:

BRASIL. Lei 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (estatuto da pessoa com deficiência). Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, n. 127, p. 2, 7 jul. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (pleno). Medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.357/DF Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4818214. Acesso em 16 maio 2021.

BRASIL. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, p. 3, 26 ago. 2009.

NEDER, Erika. EDUCAÇÃO INCLUSIVA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.357: uma análise à luz da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum. Juiz de Fora: Editora Perensin, 2022.

NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Martins Fontes, 2020.

RAWLS, Jonh. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: companhia das letras, 2010.


Erika Neder

Advogada, mestre em Direito pela UFJF, doutoranda em ciências sociais pela UFJF.