REVISTA CASA D’ITALIA – Ano 04, nº36, 2023

Ano 04, nº36, 2023 – Edição ‘Juiz de Fora’ – ISSN: 2764-0841

Editorial

Neste editorial, oferecemos aos nossos leitores uma fascinante viagem por diversos temas que exploram as interseções entre representações culturais, coletividade e sociologia. Em “As Folias de Reis em Carvalhos – MG: Passado Vibrante, Presente em Transformação”, mergulhamos na riqueza das tradições folclóricas brasileiras, destacando como essas manifestações resistem ao tempo, ao mesmo tempo em que evoluem para se adaptar às mudanças da contemporaneidade.

Outro ponto de destaque é a obra de Pierre Bourdieu e seu legado para a Sociologia Cultural. Exploraremos como sua teoria das práticas e campos sociais ainda reverbera nas análises sobre a dinâmica das culturas e como esses textos contribuíram para a compreensão dos fenômenos coletivos e suas representações. Além disso, foi abordado a importância da Sociologia como ciência. Investigaremos suas origens, objetivos e como o estudo dessa disciplina é fundamental para decifrar a complexidade das relações humanas, as construções sociais e, consequentemente, as representações culturais que emergem desses sentimentos.

Em um panorama histórico, abordaremos “O Movimento Negro e as Religiões Afro-brasileiras: alguns apontamentos (1960-1970)”, destacando o papel crucial desses movimentos na luta pela preservação das tradições culturais afrodescendentes no Brasil e sua importância para a construção de uma sociedade mais inclusiva.

Outros temas fascinantes também serão abordados, como “As formas de se pensar no envelhecimento”, “A Representatividade Indígena nas obras de arte na Philadelphia’s Centennial Exhibition de 1876: Estados Unidos e América Latina”, “Entre ‘Buonaceras Katuxas’ e ‘Boas Tardes Itálias'”, e por fim, “Multiplicidade cultural da Colônia Alemã de Juiz de Fora”. Cada um desses reflete a riqueza e a diversidade das expressões culturais presentes em diferentes comunidades ao redor do mundo e como a sociologia nos ajuda a compreendê-las em toda a sua complexidade.

Convidamos, portanto, nossos leitores a embarcar conosco nessa jornada enriquecedora, na qual desvendaremos as múltiplas facetas das representações culturais, as dinâmicas das coletividades e profundas da sociologia em desvendar os enigmas que permeiam as relações humanas e suas manifestações no seio das sociedades.

A Revista Casa D’Italia é uma realização da Duplo Estúdio de Criação, em parceria com o Departamento de Cultura da Associação Casa D’Italia. Essa iniciativa tem o apoio das empresas e associações Imo Experiência Turística, Curso de Língua e Cultura Italiana, Grupo de Dança Folclórica Italiana Tarantolato e Estúdio de Arte Ponto Três. Contamos ainda com o apoio de Cristina Njaim Coury, Patrícia Ferreira Moreno, Rafael Moreira, Arlene Xavier Santos Costa, Louise Torga, Paulo Jose Monteiro de Barros, Vinícius Sartini, Ana Lewer, Thaiana Fernandes, Rafael Bertante, Paola Frizero, Ana Carolina de Paula Fellet e Lucimar Therezinha Grizendi, que, através da plataforma Apoia-se, nos incentivam mês a mês a continuar investindo na cultura e a trazer discussões a respeito da nossa sociedade.

Desejamos a todo mundo uma ótima reflexão!

Editorial: Paola Maria Frizero Schaeffer.


A herança de Bourdieu para a sociologia cultural

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Paola Maria Frizero Schaeffer | A herança de Bourdieu para a sociologia cultural

Resumo: O texto aborda a importância de Pierre Bourdieu na sociologia contemporânea, destacando suas principais teorias: Habitus, Campo e Violência Simbólica. Habitus refere-se aos princípios geradores de práticas e representações que os indivíduos adquirem na relação entre a sociedade e o indivíduo. O conceito de Campo diz respeito ao espaço onde os agentes competem pela dominação em diferentes áreas. A Violência Simbólica é o poder oculto que impõe ideologias sem que os indivíduos percebam. Bourdieu também introduz o conceito de capital simbólico, cultural e social. Sua abordagem permite compreender a relação entre o indivíduo e a sociedade, analisando como as estruturas sociais influenciam as ações dos indivíduos.


Palavras-chave: Sociologia contemporânea, habitus, capital, campo e agente. 

Riepilogo: Il testo affronta l’importanza di Pierre Bourdieu nella sociologia contemporanea, evidenziando le sue principali teorie: Habitus, Campo e Violenza Simbolica. L’Habitus si riferisce ai principi generativi delle pratiche e delle rappresentazioni che gli individui acquisiscono nella relazione tra società e individuo. Il concetto di Campo riguarda lo spazio in cui gli agenti competono per la dominazione in diverse aree. La Violenza Simbolica è il potere occulto che impone ideologie senza che gli individui se ne accorgano. Bourdieu introduce anche il concetto di capitale simbolico, culturale e sociale. Il suo approccio consente di comprendere la relazione tra individuo e società, analizzando come le strutture sociali influenzano le azioni degli individui.

Parole chiave: Sociologia contemporanea, habitus, capitale, campo e agente.

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A sociologia contemporânea, particularmente crescente nos anos de 1980, é marcada por grandes nomes de expressão, dentre eles, destaca-se Pierre Bourdieu. Filósofo por formação, foi direcionando seus estudos aos poucos para a área da etnologia e sociologia. Analisando as teorias do estruturalismo, desenvolvido na França por Lévi-Strauss, e da fenomenologia, da Escola de Chicago, Bourdieu desenvolveu uma teoria da ação prática que, segundo AQUINO (2000) pode ser considerada uma síntese das duas correntes. Na década de oitenta, foram publicados dois de seus mais importantes livros: La Distinction (1979), uma aplicação mais empírica de seus estudos teóricos e Le Sens Pratique (1980), apresentando detalhadamente sua teoria. Por isso, Bourdieu, tal como outros grandes  nomes, é reconhecido mundialmente,  possuindo  uma  vasta  obra  onde toca em variados  setores  da  pesquisa  para além do  âmbito  da  sociologia. 

Seu estruturalismo se volta para uma função mais crítica, a de desvendar as articulações da sociedade. Adota um método de análise dos mecanismos de dominação, da produção de idéias, da origem das condutas individuais. Tomando como ponto fundamental de suas reflexões a relação entre indivíduo e sociedade, Bourdieu procurou refletir sobre o paradoxo estabelecido entre as teorias estruturalistas e outras concepções voltadas para o indivíduo. Sendo assim, coloca no centro de suas discussões a reflexão entre o objetivismo e o subjetivismo.

Desta forma, o principal objetivo do presente trabalho será entender se as teorias de Pierre Bourdieu ainda são centrais para a formulação dos grandes temas da teoria sociológica. Para isso, será feita uma breve análise a respeito de suas teorias, além de observar algumas reflexões que outros autores e teóricos fazem sobre suas obras para que, por fim, seja possível responder à questão proposta. 

Para entender os principais pensamentos de Pierre Bourdieu, é importante ter o conhecimento básico de suas três principais teorias. Habitus, Campo e Violência Simbólica. Através do conceito de habitus, resgatado da filosofia escolástica, Bourdieu estabelece reflexões entre indivíduo e sociedade.

O conceito de habitus permite perceber a articulação entre o campo  e  o agente. Assim, o habitus estabelece a ligação entre a sociedade e o indivíduo, onde estão fundidas as condições objetivas e subjetivas. Esta  reflexão é um passo à frente da noção de estruturalismo, onde vai além do “sistema” ou da “estrutura”. Nosso habitus, segundo o autor, é adquirido desde a infância, a partir da estrutura e classe familiar. Além disso, outras estruturas como a escola e igreja também são veículos onde o indivíduo pode adquirir habitus específicos. Porém, o habitus pode sofrer alterações com novas experiências obtidas pelo sujeito ao longo de sua vida. Por isso, o teórico define que:

Princípio de uma autonomia real em relação às determinações imediatas da “situação”, o habitus não é por isto uma espécie de essência a-histórica, cuja existência seria o seu desenvolvimento, enfim destino definido uma vez por todas. Os ajustamentos que são incessantemente impostos pelas necessidades de adaptação às situações novas e imprevistas podem determinar transformações duráveis do habitus, mas dentro de certos limites: entre outras razões porque o habitus define a percepção da situação que o determina. (BOURDIEU, 1986, p.106)

Todo agente, indivíduo ou grupo, para existir e conviver em sociedade, deve participar de um jogo que traz limitações e sacrifícios. Neste jogo, alguns indivíduos se entendem como livres, outros determinados. Mas, para Bourdieu, essas duas questões não são reais, mas sim o produto de estruturas profundas e complexas. Há, em cada indivíduo, os princípios geradores e organizadores de suas práticas e representações, de suas ações e pensamentos. Por este motivo Bourdieu não trabalha com o conceito de sujeito. Prefere o de agente, ou seja, aquele que executa uma ação. Os indivíduos são agentes à medida que atuam e que sabem, que são dotados de um senso prático, um sistema adquirido de preferências, de classificações, de percepção (Bourdieu, 1996, p.44). Os agentes sociais, indivíduos ou grupos, incorporam um habitus gerador (disposições adquiridas pela experiência) que variam no tempo e no espaço (Bourdieu, 1987, p.19). Desde o seu nascimento até a sua morte, absorve (reestrutura) os habitus, condicionando as aquisições mais novas pelas mais antigas. Percebe, pensa e age dentro da estreita liberdade, dada pela lógica do campo e da situação que nele ocupa.

Portanto, o habitus é tanto individual quanto coletivo. Como princípio gerador e unificador de uma coletividade ele retraduz as características intrínsecas e racionais de uma posição e estilo de vida unitário: as afinidades de habitus (Bourdieu, 2005, p.182). Os habitus são diferenciados e são diferenciantes, isto é, operam distinções (Bourdieu, 1996, p.23). O conceito de habitus denota um termo médio entre as estruturas objetivas e as condutas individuais, na medida em que o coletivo, o grupo, a fração da sociedade estão depositados em cada indivíduo sob a forma de disposições duráveis, como as estruturas mentais (Bourdieu, 1984, p.29). O habitus é uma interiorização da objetividade social que produz uma exteriorização da interioridade. Não só está inscrito no indivíduo, como o indivíduo se situa em um determinado universo social: um campo que circunscreve um habitus específico (Bourdieu, 2001).

O campo é um espaço de relações objetivas entre indivíduos, coletividades ou instituições, que competem pela dominação de um cabedal específico (Bourdieu, 1984:197). A posição é a face objetiva do campo que se articula com a face subjetiva, a disposição. A posição é causa e resultado do habitus do campo. Conforma e indica o habitus da classe e da subclasse em que se posiciona o agente.

Segundo Bourdieu, as produções culturais como a filosofia, a ciência, a arte, a história, a literatura, etc., são objetos de análise. Assim, ao buscarem uma análise científica para essas produções, aqueles que buscam uma explicação internalista defendem que para se entender um texto, uma obra literária, bastaria lê-la. Da mesma forma como para se entender um quadro de arte bastaria conhecer os aspectos expressos na própria arte. (SOUZA, 2004, P.6)

O campo é um universo intermediário entre esses dois pólos. São os campos literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas obedece a leis próprias” (BOURDIEU, 2004, p. 20). 

O social, para o autor, é constituído por campos, microcosmos ou espaços de relações objetivas, que possuem sua própria lógica, não reproduzida e irredutível à lógica que rege outros campos. É, por isso, tanto um “campo de forças”, uma estrutura que constrange os agentes nele envolvidos, quanto um “campo de lutas”, em que os agentes atuam conforme suas posições relativas no campo de forças, conservando ou transformando a sua estrutura (Bourdieu, 1996, p.50).

Em cada campo há um capital específico, chamado de capital simbólico, onde muitas vezes é analisado a partir de um olhar marxista, trazendo uma lógica econômica. A partir daí, pode-se definir o capital econômico como um conjunto de propriedades que o agente possui, podendo ser terras, fábricas, trabalho, dinheiro, patrimônio, ou seja, bens materiais. O capital social, por sua vez, se trata de uma rede de relações sociais onde o agente pode usar para melhorar sua condição  de  disputa  do  campo.  O  capital cultural, desta forma, se trata do conjunto de saberes e códigos que o agente possui, sendo saberes considerados apropriados e legítimos, o conjunto de bens culturais que ele possui, como livros, esculturas, etc e o capital simbólico é o prestígio e honra vinculado ao agente. (JUNIOR, 2018, p. 13)

Bourdieu analisa o grau de autonomia em um campo pela sua capacidade de refratar, que seria a capacidade do campo traduzir, de maneira específica as pressões ou as demandas externas (BOURDIEU, 2004, p.22). E quando os fatores externos transparecem dentro de um campo, como fatores econômicos e políticos, e onde os interesses do campo estão ligados a interesses externos, é onde o campo é mais dependente. Ainda é importante esclarecer que para Bourdieu, existem leis gerais que perpassam todos os  campos e leis específicas de cada campo (BOURDIEU, 1989; 1994).

O terceiro conceito elaborado por Bourdieu e trabalhado em suas diversas obras é o poder simbólico, que, para o autor, representa o poder oculto. Diferente de uma noção de poder que estaria diretamente ligado ao Estado ou a algum órgão de repressão, o poder simbólico é aquele que não aparenta ser um meio de imposição, quando o indivíduo não percebe que está sendo dominado. 

Em seu livro O Poder Simbólico, Bourdieu define o conceito como “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989: 7). O autor apresenta uma análise estrutural das formas simbólicas e traz duas sínteses, onde a primeira síntese diz:

Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder Simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. (BOURDIEU, 1989: 9) 

Analisar o conceito de habitus em Bourdieu é importante, pois nos ajuda a entender melhor algumas questões. Primeiramente ele nega a concepção liberal do homem, em que o homem é totalmente livre, dotado de uma consciência plena e capaz de medir todos as suas ações, sendo assim totalmente responsável por seus atos, “gostos”, e que o homem seja totalmente racional em suas escolhas e racionalize tudo. Em segundo lugar, também foge de uma perspectiva do determinismo estruturalista no qual o homem responde apenas a um mecanismo estrutural da sociedade. 

Sendo assim, o habitus ainda é um meio de reprodução da existência das classes. Como diz o próprio Bourdieu, 

Estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, o habitus é também estruturado: o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classes sociais. (BOURDIEU, 2007: 196) 

A abordagem metodológica, a partir da Teoria do Campo de Bourdieu, nos permite visualizar o modo como um agente está posicionado e a posição que ocupa em determinado campo e assim analisar as mais diversas ligações e interrelações dentro dele, fazendo uma reflexão sobre seus aspectos políticos, éticos e suas ações como indivíduos e como sociedade. Segundo Renato Ortiz, “A Problemática teórica dos escritos de Bourdieu repousa essencialmente sobre a questão da mediação entre o agente social e a sociedade” (ORTIZ, 1983, p.8). 

Além disso, a abordagem de Bourdieu conversa com o fato de considerar que todas as sociedades se apresentam como espaços sociais, isto é, enquanto estruturas diferenciadas e diferenciadoras que não podemos compreender verdadeiramente a não ser construindo o princípio gerador que funda estas diferenças na objetividade. (BOURDIEU, 2007). 

A sociologia e as teorias sociológicas, que por diversas vezes buscou se apoiar em outras ciências e teorias, encontrou para Bourdieu sua riqueza e crescimento no conflito e na crise. Neste sentido, a teoria Bourdieusiana se mostra um campo rico para a produção do conhecimento histórico, sociológico, filosófico e extremamente importante para a teoria sociológica, ao passo que trata-se de analisar as ações do indivíduo e suas questões enquanto um ser social, ou seja, a construção de um conhecimento que trata de pensar o papel do homem na sociedade e sua construção enquanto um indivíduo que ocupa um campo capaz de produzir, refletir e sofrer influências, produzindo capital social, econômico e cultural. 


Referências bibliográficas:

AQUINO, J. A. DE. AS TEORIAS DA AÇÃO SOCIAL DE COLEMAN E DE BOURDIEU. v. vol. 2 no 2, 2000.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. 

___________. Meditações pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

___________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989.

___________. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

___________. Questões de Sociologia, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986.

___________. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus Editora, 1996.

BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Campinas, SP: Unicamp, 2010.

JÚNIOR, H. BOURDIEU E OS MOVIMENTOS SOCIAIS. Uma Sociologia Neoestruturalista dos Movimentos Sociais, v. Vol. 03, num. 05, 2018.

ORTIZ, Renato. Bourdieu: sociologia.São Paulo: Ática, 1983. 

PIERRE BOURDIEU: A TEORIA NA PRÁTICA.

https://doi.org/10.1590/S0034-76122006000100003. Acesso em 12 de março de 2023.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ESPORTE E LAZER NO BRASIL: UMA ARGUMENTAÇÃO INICIAL SOBRE A IMPORTÂNCIA DA UTILIZAÇÃO DA TEORIA DOS CAMPOS DE PIERRE BOURDIEU. https://doi.org/10.1590/S0101-328920130003000. Acesso em 12 de março de 2023.

THOMSON, Patrícia. Campo. In. GRENFELL, Michel. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Tradução: Fábio Ribeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. (pp. 95–114).


Paola Frizero

Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e em Turismo e Desenvolvimento de Destinos e Produtos pela Universidade De Évora – Pt. Pós – Graduada em Gestão Cultural pela Unifagoc e Pós-Graduanda em Gestão Pública de Turismo e Desenvolvimento Regional . Graduada em Turismo e em Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Juiz De Fora.


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Multiplicidade cultural da Colônia Alemã de Juiz de Fora

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Rita Couto | Multiplicidade cultural da Colônia Alemã de Juiz de Fora

Resumo: O texto a seguir apresenta características culturais da Colônia Alemã Dom Pedro II, fundada em Juiz de Fora em 1858, ano em que chegaram os imigrantes alemães e tiroleses contratados pela Companhia União e Indústria.

Palavras-chave: Imigração. Alemães. Tiroleses. Juiz de Fora. Cultura.

Abstract: The following text presents cultural aspects of German Colony Dom Pedro II, founded in Juiz de Fora in 1858, the year in which German and Tyrolean immigrants hired by Companhia União e Indústria arrived.

Key words: Immigration. Germans. Tyroleans. Juiz de Fora. Culture.

Riepilogo: Il testo che segue presenta aspetti culturali della Colonia Alemã Dom Pedro II, fondata a Juiz de Fora nel 1858, anno in cui arrivarono gli immigrati tedeschi e tirolesi assoldati dalla Companhia União e Indústria.

Parole chiave: Immigrazione. Tedeschi. Tirolesi. Juiz de Fora. Cultura.

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Corria o ano de 1858 quando chegaram a Juiz de Fora 1.193 imigrantes contratados pela Companhia União e Indústria para formarem a Colônia Alemã Dom Pedro II. Esses colonos eram originários do Tirol (hoje pertencente à Áustria) e das regiões do Hessen, Baden, Prússia, Schleswig, Württemberg, Holstein e outros territórios que passaram a compor a Alemanha após a unificação ocorrida na década de 1870.

Visando a instalação da Colônia Alemã Dom Pedro II em Juiz de Fora, Mariano Procópio havia adquirido uma grande extensão de terras, que incluía toda a região conhecida como Cidade Alta e adjacências (atuais bairros São Pedro, Borboleta, Aeroporto, Santos Dumont, Marilândia, entre outros). A área foi dividida em terrenos com tamanho mínimo de 20 mil braças quadradas, ou seja, 96.800 m², que equivalem a dois alqueires mineiros, e cada família contratada tinha direito a comprar um ou mais lotes, onde era construída a moradia e cultivado o solo. 

Para edificar suas casas, os colonos alemães e tiroleses empregaram largamente a técnica germânica chamada Backstein, ou seja, construções de tijolos maciços aparentes com assentamento decorativo em alguns pontos das fachadas, com janelas e portas de madeira e telhados cobertos com telhas de cerâmica. O estilo arquitetônico utilizado pelos imigrantes germânicos em suas residências foi a primeira marca cultural que esse grupo de estrangeiros deixou em nossa cidade. Graças ao peculiar aspecto das casas, qualquer pessoa que se dirigia à colônia podia identificar visualmente e com facilidade que estava em uma região com características culturais distintas àquelas encontradas em outras áreas de Juiz de Fora.

Os alemães e os austríacos são mundialmente conhecidos por suas habilidades musicais e, pela qualidade do trabalho desenvolvido, muitos de seus cidadãos entraram para a história, como Mozart, Wagner, Schubert, Strauss, Bach, Beethoven, entre outros. Em Juiz de Fora, os imigrantes alemães e os tiroleses também se destacaram na música, de maneira especial com a criação de bandas, que animavam os mais variados eventos na cidade. A colônia chegou a ter seis grupos musicais (Stehling, 1979, 299-300), que realizavam apresentações nas festividades da comunidade e até mesmo para o Imperador.

Em junho de 1861, a família imperial brasileira fez a viagem inaugural da Estrada União e Indústria e percorreu o trajeto entre Petrópolis e Juiz de Fora. Ao chegar em nossa cidade, os ilustres visitantes foram recebidos com entusiasmo e “estrondosas aclamações, ao som do hino nacional tocado pela excelente banda de música da colônia” (Jornal do Commercio, 1 jul. 1861). Em seu diário pessoal, o Imperador Pedro II registrou o episódio e assim iniciou sua narrativa:

Estação de Juiz de Fora 6 ¾ da noite. É deste aprazível sítio, que a arte converteu num brinco igual a qualquer lugar de banhos da Alemanha […]; ao som de uma harmoniosa banda de música de colonos tiroleses, que eu principio a narrar a minha viagem […] (BEDIAGA, 1999, vol. 8, grifo nosso)

Além das bandas de música, os imigrantes de origem germânica organizaram associações que refletiam os costumes culturais de sua terra natal, como o clube de tiro e o de tênis, entre outros. Em julho de 1884, estreava a Sociedade Dramática Alemã, com o espetáculo Kaiser Josef II und die Schusterstochter (O Imperador José II e a filha do sapateiro). Apresentada em quatro atos, todos em língua alemã, no Teatro Perseverança, a peça teve as personagens interpretadas por moradores da Colônia Dom Pedro II (O PHAROL, 1884). O roteiro, escrito pelo vienense Heinrich Jantsch e publicado em 1875 em Leipzig, na Alemanha, logo chegou às mãos dos colonos residentes em Juiz de Fora.

Outra marca cultural que os imigrantes alemães deixaram na cidade foi o estabelecimento de fábricas de cerveja, que sempre possuíam ao lado o Biergarten, aqui chamado de pátio ou recreio. Esse espaço era destinado a piqueniques, comemorações e outras festividades muito frequentadas pela população juiz-forana. No bairro Fábrica, o pátio da Cervejaria José Weiss recebeu a primeira roda-gigante da cidade e, na Avenida Sete de Setembro, foi instalado o pioneiro rinque de patinação no recreio da Cervejaria Dois Leões, de Carlos Stiebler, onde também tiveram início as atividades do Turnerschaft, o Clube Ginástico. Já o pátio da Cervejaria Germânia, no Jardim Glória, recebeu o Presidente da República, Washington Luís, e outras autoridades em um almoço oferecido pela Prefeitura de Juiz de Fora.

As festas organizadas pela colônia alemã também eram frequentadas pelos moradores da cidade e se tornaram muito tradicionais em Juiz de Fora, como é o caso da festa de São Pedro, realizada pela primeira vez em 1884 para angariar recursos para a construção da igreja. Desde então, a festividade realizada na colônia alemã se tornou uma tradição na cidade e recebeu o apelido carinho de “Festa de São Pedro Alemão”, em homenagem aos moradores da colônia. Em 2023 foi celebrada a 130ª edição do festejo, que ocorre anualmente e foi suspenso apenas durante as duas guerras mundiais e a pandemia de Covid-19.

Outra festividade bastante conhecida em Juiz de Fora é a Festa Alemã, que foi criada no bairro Borboleta em 1969 pelo Instituto Teuto-Brasileiro William Dilly, na época ainda denominado Centro Folclórico Teuto-Brasileiro. Além de idealizar a festa, a instituição possui sob sua guarda o mais completo acervo histórico sobre a Colônia Dom Pedro II, composto por documentos e fotografias originais, além de objetos que pertenceram às famílias imigrantes.

Tanto a Festa Alemã quanto a receita do pão alemão são registradas como patrimônio imaterial de Juiz de Fora. Além disso, dez bens imóveis ligados à Colônia são tombados e outra dezena encontra-se com os processos de tombamento abertos. Essas são maneiras de se preservar a contribuição cultural da colonização alemã em Juiz de Fora.


Referências bibliográficas:

BEDIAGA, Begonha (Org.). Diário do Imperador D. Pedro II (1840-1891). Petrópolis: Museu Imperial, 1999.

COUTO, Rita. Santana: uma capela tirolesa na colônia alemã de Juiz de Fora. Juiz de Fora: 2016, 160p.

COUTO, Rita. São Pedro: o coração da colônia alemã de Juiz de Fora. Editar Editora, Juiz de Fora: 2018, 300 p.

JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, 1 julho 1861. Biblioteca Nacional.

O PHAROL. Juiz de Fora, 17 julho 1884. Biblioteca Nacional.

STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora: Funalfa Edições, 1979, 447 p.


Rita Couto

Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bacharela em Comunicação Social pela UFJF. É autora dos livros: “Santana: uma capela tirolesa na colônia alemã de Juiz de Fora” e “São Pedro: o coração da colônia alemã de Juiz de Fora”.


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As formas de se pensar no envelhecimento

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Fernanda Santos de Freitas | As formas de se pensar no envelhecimento

Resumo: O envelhecimento, apesar de natural, é atravessado por diferentes fatores e vivenciado por cada pessoa de uma forma. Serão citados aqui alguns desses fatores a fim de mostrar a complexidade, e também a heterogeneidade do indivíduo que vivencia a velhice, seus desafios e suas possibilidades. Reconhecer e dar um bom significado ao envelhecimento é essencial, afinal, todos nós estamos sujeitos a esse processo.

Palavras-chave:  envelhecimento; idoso; vida. 

Abstract:  Aging, although natural, is crossed by different factors and experienced by each person in a different way. Some of these factors will be mentioned here in order to show the complexity, and also the heterogeneity of the individual who experiences old age, its challenges and its possibilities. Recognizing and giving a good meaning to aging is essential, after all, we are all subject to this process.

Key words: aging; elderly; life.

Riepilogo: El envejecimiento, aunque natural, está atravesado por diferentes factores y vivido por cada persona de forma diferente. Algunos de estos factores serán mencionados aquí para mostrar la complejidad, y también la heterogeneidad del individuo que vive la vejez, sus desafíos y sus posibilidades. Reconocer y darle un buen sentido al envejecimiento es fundamental, al fin y al cabo todos estamos sujetos a este proceso.

Parole chiave: envejecimiento; anciano; vida.

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Apesar de ser um processo natural e previsível, o envelhecimento é atravessado por cada pessoa de uma forma, envolvendo diferentes sentimentos. É um processo que não se reduz a transformações físicas relacionadas ao acúmulo de anos de vida de uma pessoa. Envelhecer engloba também a parte mental e até mesmo a parte espiritual de quem envelhece. São diferentes perspectivas para se pensar no envelhecimento, incluindo a biológica, psicológica, social, cultural e outras que, juntas, moldam o indivíduo que está envelhecendo e construindo sua compreensão a respeito da vida, a respeito de si mesmo e do envelhecimento. 

Este então não é um processo universal. Portanto, não tem como definir um padrão de envelhecimento, pois se trata de seres humanos e plurais que ocupam diferentes modos de ser e de estar no mundo, que são protagonistas de distintas realidades, condições de saúde, perspectivas de vida e que assumem papéis sociais variados. Por isso é que devemos olhar com atenção para as formas de envelhecimento e para as diferentes formas de se pensar a respeito dele.

Cada ser é afetado por esse processo de um jeito. E cada indivíduo que perpassa esse processo é atravessado e influenciado por diversos fatores como a cultura de onde se está inserido, com o estilo de vida, com a saúde, com questões raciais, com fatores geográficos, com a classe social, com o gênero, com a escolaridade, com a sexualidade, com fatores genéticos e até mesmo a personalidade. Tais fatores combinam entre si e podem interferir no modo como os indivíduos vivenciam o próprio envelhecimento, o que resulta em diversas formas de viver e de se pensar nesse processo, assim como são várias as possibilidades de ser idoso, de ser humano, de ser família, de viver a vida e de viver a chamada terceira idade.

Nos dias de hoje presencia-se um aumento da expectativa de vida dos seres humanos em muitos países. O efeito disso são pessoas vivendo mais e, portanto, experimentando a vida e o envelhecimento por mais tempo. Envelhecer fisicamente é natural e progressivo, envolve desafios, mudanças físicas, emocionais e cognitivas, e também diferentes sentimentos. Cada indivíduo vivencia o envelhecimento em um contexto diferente. 

Porém, embora cientificamente natural, o envelhecimento pode ser visto por muitas pessoas como algo negativo, o que impacta indireta e diretamente o ser que envelhece, podendo afetar o seu corpo, a sua vida e sua relação com o estar no mundo. O idadismo1, o preconceito, e por exemplo, a indústria de cosméticos/estética tem muitas consequências em relação aos corpos dos idosos, sobre como se enxergam, se gostam, se olham e se dão bem (ou não) com a imagem de si mesmos. 

Refletir a respeito da questão “o que é um corpo bonito?” se torna fundamental e significativo. Estamos inseridos em uma sociedade em que “velho” é muitas vezes sinônimo de algo que está gasto e ruim. Você já passou pela experiência de ter uma roupa elogiada e ter respondido “Ah, que nada, essa roupa é velha”? Você já olhou a sua volta e percebeu o como lutamos contra os sinais externos e visíveis do envelhecimento? 

 A indústria que busca rejuvenescer as pessoas tem nos convidado, e até mesmo nos imposto, a maquiar, pintar o cabelo branco, submeter a procedimentos estéticos, dentre outros, para não aparentar ter a idade que tem ou para não aparentar ser mais velho. É crítico vivenciar a velhice de forma positiva se o seu redor te convida – ou até mesmo impõe – a diminuir sua idade através da aparência, te induz a procedimentos que custam dinheiro, custam autoestima, podem gerar riscos de saúde e te convida a encontrar defeitos em sua pele e em seu corpo. 

As preocupações e projetos de vida de cada idoso são plurais. Alguns vivem ao longo da vida servindo e cuidando de outras pessoas, mas, ao chegarem na fase da chamada terceira idade, se voltam para si mesmos e passam a viver para si, enquanto outros assumem papéis de cuidadores, de avós, etc. E alguns vivenciam com mais frequência a solidão, enquanto outros desfrutam da terceira idade com diversos parceiros e atividades sociais. Enquanto se vê idosos focando em seu empoderamento, há outros em que a preocupação maior no momento é a de pagar as contas do mês. Há também idosos universitários. 

Há idosos que fizeram as pazes com a morte enquanto outros têm muito medo dela que, apesar de natural, ainda pode ser um desafio muito grande e doloroso. Lidar com as perdas humanas, com a falta de quem já partiu e com a dor de ver a própria geração morrendo pode ser muito doído e impactante. E também lidar com as dores da vida que levou e que leva, dos sonhos que precisaram morrer, dos planos que precisaram adiar, esconder ou transformar envolvendo muitos sentimentos.

Por tudo isso é importante mencionar e até repetir que envelhecer e lidar com tudo o que isso pode envolver é muito singular. Cada um vai atravessar as etapas da vida de uma forma e olhar tanto para morte quanto para vida de jeito diferentes, com sensações e possibilidades distintas, com medos, conflitos, traumas, limitações e vontades díspares. O tempo passa para todos, é fato. Desde que nascemos estamos nos transformando e morrendo de diferentes formas. Mas o tempo passa para todos de formas diferenciadas. 

Ademais,  o envelhecimento pode também ser visto como um privilégio, já que nem todos os indivíduos que nascem podem envelhecer e chegar na fase chamada “idosa”. Muitos enxergam o passar dos anos como algo positivo e imerso de sabedoria. Afinal, os idosos já atravessaram tantos obstáculos, envolvendo perdas (até mesmo de filhos), pobreza e/ou um passado mais difícil. Por conta dessa sabedoria e experiência de vida que carregam, muitos pais confiam em seus pais/avós de seus filhos para compartilhar o cuidado e a criação deles.

As crianças, jovens e adultos de hoje serão os idosos de amanhã, e, portanto, deveriam reconhecer eles e seus direitos como: a prioridade no atendimento em diferentes serviços e espaços; assistência social, à moradia adequada, ao transporte coletivo e também suas especificidades, com seu lugar na sociedade respeitado e valorizado, ainda mais por terem tantas experiências de vida e saberes que podem ser muito construtivos. 

Há diferentes fases na vida que contam com muitas mudanças internas e externas que exigem constantemente adaptações. As mudanças no corpo são naturais. Andar mais lentamente e não ter a audição que tinha antes, a visão que tinha antes podem fazer parte da velhice de muitos. A diminuição da capacidade física do corpo não deve reduzir um idoso a um ser passivo de cuidado e inútil, o que muitas vezes acontece e lhe causa tristeza e frustração. O ideal é que os idosos tenham um bem-estar, inclusive emocional, satisfatório, que vivam uma vida de inclusão, com cuidados adequados e direitos atendidos e reconhecidos. 

Porém, como já mencionado, esse é um desafio constante nessa sociedade onde o velho muitas vezes é sinônimo de ruim. E é mais desafiador ainda quando se trata da invisibilidade e da invalidação de algumas formas de ser humano e de vivenciar a vida e a velhice. São muitas as dores, os desafios e as lutas de idosos que são vítimas de preconceitos e de diversos tipos de violência, por exemplo idosos com deficiência e idosos LGBTQIA+ que são tantas vezes impactados e desrespeitados na sociedade. 

Um corpo idoso é um corpo que resiste a muitas coisas e ainda resiste. Como aponta Morán e Urrutia (2019, 31), mais do que uma busca por papéis sociais, os idosos precisam ter opções de vida para escolherem viver conforme seus desejos e entendimento de viver a vida e de envelhecer. Que a forma de se pensar no envelhecimento não seja nunca de desprezo. Somos seres muito complexos para sermos reduzidos a algo. Que falar sobre o envelhecimento não seja  de forma única, nem romantizada e nem apagada, mas sim que sejam mostradas e reconhecidas as realidades e as velhices heterogêneas.

De acordo com o artigo de Dos Anjos et al. (2019), as atitudes sobre a velhice seriam sentimentos sobre a velhice. Tais autores abordam que tais atitudes são construídas e, portanto, passíveis de mudanças. Um dos meios para que ocorra a mudança dessas atitudes sobre a velhice é a educação, que é a ferramenta central que permite a construção de novos e mais positivos papéis sobre o envelhecimento (DOS ANJOS et al. 2019, 149), que tem o poder de conscientizar sobre a importância de uma sociedade com mais justiça social para os idosos e de conscientizar a respeito da importância de olhar para os papéis sociais envolvidos no envelhecimento a fim de superar os preconceitos e estereótipos.Por fim, encerro com uma fala da Maíra Lemos em um de seus vídeos2 sobre “Envelhecer”:

“Já imaginou […] se você não enxergasse tão bem, e o pior, se as pessoas não te enxergassem? Se você fosse invisível para a sociedade? Pois é assim que muitos idosos se sentem ainda que estejam na fase de maior sabedoria da vida”. 

Se interessar, contemplar e respeitar cada fase de nossas vidas e das demais pessoas é essencial, afinal uma sociedade humana excludente não pode dar certo, já deu errado. É preciso lembrar que mudanças sociais positivas são possíveis e indispensáveis para construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e, portanto, mais humana.

[1]  Preconceito em relação a idade.

[2]  LEMOS, Maíra. 2018. Envelhecer. Youtube. Disponível em: <https://youtu.be/hJ8MB05jOOs&gt;. Acesso em 19/06/2023.


Referências bibliográficas:

DOS ANJOS, Jussara Soares Marques et al. 2019. Atitudes sobre a Velhice: Infância, Adolescência, Avós e a Intergeracionalidade. Rev. Psicol. IMED,  Passo Fundo ,  v. 11, n. 2, p. 147-165.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-50272019000200011&lng=pt&nrm=iso&gt;. acessos em  19  jun.  2023.  http://dx.doi.org/10.18256/2175-5027.2018.v11i2.2954.

LEMOS, Maíra. 2018. Envelhecer. Youtube. Disponível em: <https://youtu.be/hJ8MB05jOOs&gt;. Acesso em 19/06/2023.

PIÑA MORÁN, M.; GÓMEZ URRUTIA, V. 2019. Envejecimiento y género: Reconstruyendo los roles sociales de las personas mayores en los cuidados. Revista Rupturas, [S. l.], v. 9, n. 2, p. 23–38, DOI: 10.22458/rr.v9i2.2521. Disponível em: https://revistas.uned.ac.cr/index.php/rupturas/article/view/2521. Acesso em: 19 jun. 2023.


Fernanda Santos de Freitas

Moro atualmente em Carvalhos, uma linda cidadezinha situada no sul de Minas Gerais. Graduada na Universidade Federal de Ouro Preto, me formei em Pedagogia por me encantar pela área da Educação. Sempre gostei de escrever e desde que me entendo por gente adoro refletir sobre o envelhecimento, sobre a morte e sobre a vida. 


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As Folias de Reis em Carvalhos – MG: Passado vibrante, presente em transformação

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Helena Amaral Sant Ana | As Folias de Reis em Carvalhos – MG: Passado vibrante, presente em transformação

Resumo: O presente artigo tem como objetivo fornecer uma visão geral das Festas e Folias de Reis, com foco no estudo de caso das festividades na cidade de Carvalhos, situada no sul de Minas Gerais. Inicialmente, é apresentado o contexto da prática da Folia de Reis como um ritual religioso, seguido pela sua relevância como patrimônio cultural imaterial. Em seguida, são discutidos os dados do IEPHA referentes às Folias de Reis em Minas Gerais. A análise concentra-se especificamente nas festividades em Carvalhos, incluindo as transformações ao longo do tempo. Através desse estudo de caso, busca-se compreender a importância cultural das Folias e Festas de Reis em meio às mudanças contemporâneas. 

Palavras-chave: Folia de Reis. Festa de Reis. Carvalhos. Minas Gerais.

Abstract: The present article aims to provide an overview of the Festas and Folias de Reis, focusing on the case study of the festivities in the city of Carvalhos, located in southern Minas Gerais. Initially, the context of the practice of Folia de Reis as a religious ritual is presented, followed by its relevance as intangible cultural heritage. Then, the data from IEPHA regarding the Folias de Reis in Minas Gerais are discussed. The analysis focuses specifically on the festivities in Carvalhos, including the transformations over time. Through this case study, it is sought to understand the cultural importance of these festivities amidst contemporary changes.

Key words: Folia de Reis. Festa de Reis. Carvalhos. Minas Gerais.

Riepilogo: El presente artículo pretende ofrecer una visión general de las Festas y Folias de Reis, centrándose en el estudio de caso de las fiestas de la ciudad de Carvalhos, situada en el sur de Minas Gerais. Inicialmente, se presenta el contexto de la práctica de la Folia de Reis como ritual religioso, seguido de su relevancia como patrimonio cultural inmaterial. A continuación, se discuten los datos del IEPHA relativos a las Folias de Reis en Minas Gerais. El análisis se centra específicamente en las fiestas de Carvalhos, incluyendo las transformaciones a lo largo del tiempo. A través de este estudio de caso, se pretende comprender la importancia cultural de estas fiestas en medio de los cambios contemporáneos.

Parole chiave: Folia de Reis. Festa de Reis. Carvalhos. Minas Gerais.

***

Hoje é o dia de Santo Reis
Anda meio esquecido
Mas é o dia da festa de Santo Reis
Hoje é o dia de Santo Reis
Anda meio esquecido
Mas é o dia da festa de Santo Reis

Eles chegam tocando
Sanfona e violão
Os pandeiros de fita
Carregam sempre na mão

(Festa de Santos Reis – Márcio Leonardo)

A composição de Márcio Leonardo, muito conhecida na voz de Tim Maia, é sempre lembrada ao pensar nas Festas de Reis. As cores, as vozes, os cantos, os instrumentos e os gritos ecoam pelas ruas das cidades. É um sinal de que o Natal já passou e o dia dos Santos Reis está se aproximando. Grupos trajados com roupas coloridas e portando instrumentos musicais caminham com alegria estampada em seus rostos, enquanto erguem uma grande bandeira adornada com fitas. Seu propósito é abençoar os lares e arrecadar fundos para a festividade — é a Folia de Reis.

Durante os dias de passagem da Folia pelas cidades, as pessoas em suas residências os convidam para cantar em seus lares ou “passar a bandeira”. Esse gesto consiste em receber a bandeira com suas fitas coloridas e percorrê-la por todos os cômodos da casa, abençoando-os, enquanto os moradores costumam beijar as tiras. Nesse momento festivo, as ruas ganham vida com músicas compostas por violões, violas, pandeiros, sanfonas e instrumentos de sopro, criando uma atmosfera contagiante com os sons característicos das canções religiosas entoadas pelos foliões, que exaltam a jornada dos Três Reis Magos até o local de nascimento do Menino Jesus. 

De acordo com a tradição cristã, os Reis Magos Gaspar, Melchior e Baltazar viajaram de longe, guiados por uma estrela, para presentear o recém-nascido com ouro, incenso e mirra. A origem da Folia de Reis remonta às tradições ibéricas, sendo uma manifestação religiosa relacionada às comemorações do nascimento de Cristo. No entanto, ao chegar em terras brasileiras durante o período colonial, a Folia de Reis incorporou elementos culturais e musicais das diversas etnias presentes. Elementos como danças, ritmos musicais, instrumentos e trajes tradicionais foram incorporados à celebração.

A presença africana se faz presente na Folia por meio dos ritmos percussivos e danças características, além do uso dos tambores, atabaques e outros instrumentos de percussão utilizados. Já a influência indígena pode ser observada em elementos como o uso de penas, sementes e outros adornos naturais presentes nos trajes dos foliões. Além disso, a conexão com a natureza e a espiritualidade ancestral também se faz presente nas celebrações. Assim, ao longo dos anos, a Folia de Reis se tornou uma expressão cultural rica e diversificada, que reflete a fusão de diferentes tradições religiosas e culturais. 

A Folia de Reis é marcada por um forte simbolismo religioso. O dia de Santos Reis é comemorado em 6 de janeiro, uma data que também marca o momento em que, de acordo com a tradição, a árvore de Natal é desmontada. A bandeira, carregada com devoção pelos participantes, representa a presença divina e a proteção que se deseja levar aos lares visitados. As fitas coloridas que a adornam simbolizam as bênçãos e os desejos de prosperidade, saúde e paz para os moradores. Ao longo dos anos, a festividade se tornou um importante patrimônio cultural do país, celebrada de maneira especial e diversificada em várias regiões do Brasil com características únicas em cada localidade. 

Nesse contexto, a Folia desempenha um papel significativo na preservação da cultura e identidade de um povo. É um momento em que as pessoas se reúnem, fortalecem laços comunitários e valorizam suas tradições. Em cada cidade do país, a festividade possui suas variações, incorporando elementos locais e regionais em um evento festivo e religioso que enche as ruas de alegria e música, transmitindo fé, solidariedade e alegria. Sua importância histórica e cultural é notável, e a preservação dessa tradição contribui para a diversidade e riqueza cultural do Brasil.

No artigo intitulado “Folia de Reis em Minas Gerais como Ritual Religioso, Festa Popular e Patrimônio Imaterial”, escrito por André Luis Santos de Souza e André Luiz Ribeiro de Araújo, são exploradas as características dessa festividade no estado. Os autores destacam que a Folia de Reis pode ser compreendida como um ritual religioso, considerado também um ritual sagrado, no qual os rituais desempenham o papel de “memórias em ação que estabelecem uma conexão simbólica entre o indivíduo e o coletivo” (Souza e Araújo 2020, 215). A festividade transcende o âmbito cotidiano, embora esteja intrinsecamente relacionada a ele. Sua natureza sazonal é marcada por preparativos e performances específicas, exercendo efeitos significativos no meio social (Souza e Araújo 2020, 215 – 216).

Nesse viés, Souza e Araújo abordam o caráter folclórico da Folia de Reis dentro da tradição brasileira. Em Minas Gerais, essa manifestação cultural consolidou-se nas comunidades rurais, antes de se expandir para os centros urbanos. A Folia de Reis carrega consigo uma tradicionalidade transmitida de geração em geração, sendo notável a continuidade do conhecimento e da coordenação das Folias de pais para filhos, bem como a presença recorrente de membros provenientes das mesmas famílias (Souza e Araújo 2020, 216 – 217).

Para se pensar na dimensão das Folia de Reis em Minas Gerais, os autores apontam que, em 2019, estavam registradas no banco de dados do IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) 1.836 Folias  praticadas  em  mais  de  300  municípios. A atualização mais recente do site é do dia 18 de agosto de 2020, com 1.884 grupos cadastrados. O mapeamento das Folias de Reis em Minas Gerais é parte do Projeto de Inventário Cultural, iniciado no ano de 2015, que 

teve como objetivo central identificar, inventariar e compreender os diversos grupos de folias, companhias, charolas e ternos existentes em todas as regiões do Estado de Minas Gerais (IEPHA 2019, 2).

O cadastramento teve início em 2016 como uma das etapas do projeto, no qual as prefeituras, como parte das ações relacionadas ao ICMS Patrimônio Cultural, realizaram o mapeamento e o cadastramento dos grupos existentes em seus respectivos territórios.

De acordo com o mapeamento realizado pelo IEPHA, constata-se que a maioria das folias mineiras cultua os Santos Reis, porém havendo também devoção a outros santos, como São Sebastião, cuja festividade é comemorada em janeiro, Menino Jesus, Divino Espírito Santo, Divino Pai Eterno, Nossa Senhora da Conceição, entre outros. A maioria dos grupos possui entre 11 a 20 membros, e instrumentos como violas, pandeiros, tambores, sanfonas e cavaquinhos são comuns na maioria deles.

Além disso, o levantamento revela um aumento significativo no surgimento de grupos de Folia de Reis nas décadas de 1960 e 1970, mas destaca uma queda contínua desde o ano de 2001. O aumento no número de registros de grupos entre 2016 e 2020 indica o alcance do cadastramento, não necessariamente o surgimento de grupos. Essa tendência pode refletir mudanças socioeconômicas, culturais e demográficas ao longo do tempo, impactando a participação e a continuidade desses grupos tradicionais.

Folia e Festa de Santos Reis em Carvalhos – MG

Como estudo de caso realizado para a produção deste artigo, foram coletadas entrevistas e  observada a prática da Folia de Reis na cidade de Carvalhos, localizada no sul de Minas Gerais, a fim de explorar uma das nuances dessa tradição no estado. Nessa pequena cidade, ocorrem duas festas conhecidas como “Festas de Reis”, nos distritos do Muquem e dos Franceses, ambos situados na zona rural. Esses eventos reúnem muita musicalidade, celebrações religiosas, comidas e bebidas típicas de festas rurais, como espetinhos, pão com pernil, cerveja, cachaça, entre outros. 

Na última atualização publicada dos cadastramentos das Folias de Reis pelo IEPHA, foram mencionadas duas Folias na cidade de Carvalhos. A primeira é a “Folia do Muquem”, dedicada à devoção aos Santos Reis e ao Menino Jesus, composta por oito membros registrados. Essa Folia destaca-se pelo uso de bandeiras, estandarte, presença de palhaços, vozes e instrumentos como viola, violão, cavaquinho, sanfona, caixa (tambor), pandeiro, chocalho e triângulo. A segunda é a Folia dos Franceses, chamada “Pai e Filho”, com 12 membros registrados. Essa Folia é caracterizada pela presença de reis, palhaços, vozes, representação da Virgem Maria, bandeira de encontro, presépio, arcos e instrumentos como viola, violão, cavaquinho, sanfona, caixa (tambor) e pandeiro. Suas festividades estendem-se do Natal ao Dia de Reis. Na cidade vizinha de Seritinga, é mencionada a Companhia de Santos Reis “Unidos Pela Fé”, que percorre as cidades próximas, sendo muito conhecida em Carvalhos. Essa companhia compartilha elementos e instrumentos semelhantes às Folias de Carvalhos. Destaca-se que as informações descritas foram obtidas diretamente do site do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), no último registro disponível, datado de agosto de 2020.

A tendência de queda no surgimento e na existência de Folias de Reis nas últimas duas décadas, como relatado no mapeamento citado, é evidente, inclusive na cidade de Carvalhos, conforme relatado pelos moradores locais. Anteriormente aos anos 2000, a cidade contava com diversos grupos de Folia de Reis internos e também recebia visitas de grupos de outras cidades. Esses grupos eram mais numerosos, apresentavam uma maior ornamentação e eram calorosamente acolhidos pelos moradores, que frequentemente ofereciam almoços e cafés como gestos de hospitalidade.

Embora a tradição da Folia de Reis ainda persista em alguns lares, é evidente uma redução notável no seu envolvimento. Essa diminuição tem sido atribuída ao crescente impacto da internet e ao aumento das interações virtuais. Especialmente entre os mais jovens, observa-se um declínio no interesse em conhecer e participar de eventos tradicionais. No entanto, é importante ressaltar que, mesmo diante dessa diminuição na participação, a Folia de Reis mantém um valor significativo para a comunidade.

Exemplos concretos dessa importância podem ser observados nas Festas de Reis realizadas nos Franceses e no Muquem, que atraem pessoas de toda a região. Além disso, as Folias existentes nesses distritos animadamente percorrem a cidade, e a Folia de Seritinga é amplamente reconhecida na região, com seus membros compartilhando calorosamente sua paixão pelo que fazem. Esses exemplos demonstram que, apesar dos desafios e mudanças nos padrões de participação, a Folia de Reis ainda mantém sua relevância cultural e emocional para aqueles que a celebram. É um momento de encontro, música e devoção que continua a cativar e unir comunidades, preservando assim uma parte importante do patrimônio imaterial brasileiro.

Portanto, conclui-se que, mesmo diante de um cenário de redução no número de Folias de Reis que surgiram nas últimas décadas, torna-se ainda mais crucial a necessidade de preservação, divulgação e proteção dessa tradição. Ao longo dos séculos, essa festividade tem passado por transformações, adaptando-se a contextos de constantes mudanças. Ao considerar a Folia de Reis como um ritual religioso que engloba o cotidiano e a interpretação das memórias coletivas, é importante refletir sobre sua permanência e sua relevância para os indivíduos. Nesse sentido, é necessário buscar formas de manter viva essa tradição, levando em consideração as tecnologias atuais. O uso de plataformas digitais pode desempenhar um papel significativo na divulgação das comemorações da Folia de Reis, ampliando seu alcance e promovendo uma maior valorização. Ao adotar estratégias digitais, é possível alcançar um público mais amplo, inclusive os mais jovens, despertando o interesse e a participação nessa manifestação cultural.


Referências bibliográficas:

IEPHA/ MG. 2020. As Folias de Minas. Belo Horizonte/ MG. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/component/phocadownload/category/21-as-folias-de-minas. Acesso em 05 de julho de 2023.

IEPHA/ MG. 2019. Cadastro das Folias de Minas Gerais. Inventário das Folias de Minas. Belo Horizonte/ MG. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/component/phocadownload/category/21-as-folias-de-minas?download=21:lista-dos-cadastros-e-mapeamento-das-folias-de-minas. Acesso em 05 de julho de 2023. 

IEPHA/ MG. 2016. Dossiê para registro das Folias de Minas do estado de Minas Gerais. Belo Horizonte/ MG. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/component/phocadownload/category/21-as-folias-de-minas?download=18:dossie-de-registro-das-folias-de-minas. Acesso em: 05 de julho de 2023.

IEPHA/ MG. 2023. Folia de Minas. Belo Horizonte/ MG. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/15-patrimonio-cultural-protegido/bens%20registrados/225-folias-de. Acesso em: 05 de julho de 2023.

IEPHA/ MG. 2020. Lista de Folias Cadastradas. Belo Horizonte/ MG. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/component/phocadownload/category/21-as-folias-de-minas?download=93:lista-de-folias-cadastrados. Acesso em: 05 de julho de 2023.

SOUZA, A. L. S. de, ARAÚJO, A. L. R. de . 2020. Folia de Reis em Minas Gerais como Ritual Religioso, Festa Popular e Patrimônio Imaterial . REVES – Revista Relações Sociais. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/reves/article/view/10375/5725. Acesso em: 05 de julho de 2023. 


Helena Amaral Sant Ana

Natural de Carvalhos, sul de Minas Gerais, e apaixonada pela região de onde veio, com suas cachoeiras, montanhas, festividades e pessoas tão queridas em meio à simplicidade da vida, em um lugar onde o tempo ainda não foi devorado pela aceleração. Historiadora pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestranda pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisa a colonização e as representações narrativas de Aiuruoca no século XVIII e realiza outros trabalhos ligados à memória e à preservação histórica local. 


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O Movimento Negro e as Religiões Afro-brasileiras: alguns apontamentos (1960-1970)

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Jéssica Lopes de Assis | O Movimento Negro e as Religiões Afro-brasileiras: alguns apontamentos (1960-1970)

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre o Estado e as Religiões Afro-brasileiras – a Umbanda e o Candomblé – e, tentar compreender qual o papel do Movimento Negro diante de tal questão durante os anos iniciais da ditadura civil-militar1. 

Palavras-chave: Movimento Negro. Religião. Ditadura.

Abstract: The objective of this work is to analyze the relationship between the State and the Afro-Brazilian Religions – Umbanda and Candomblé – and try to understand the role of the Black Movement in the face of this issue during the initial years of the civil-military dictatorship. 

Key words: Black Movement. Religion. Dictatorship.

Riepilogo: El objetivo de este trabajo es analizar la relacón entre el Estado y las Regiones Afrobrasileñas – Umbanda y Candomblé – y tratar de comprender el papel del Movimiento Negro a esta problemática durante los años iniciales de la dictatura cívico-militar.

Parole chiave: Movimiento Negro. Religiones. Dictadura.

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Os Movimentos Negros no Brasil

A história do Movimento Negro no Brasil escolhida para ser abordada parte do pós-abolição da escravatura, pois, sem ter para onde ir, sem a mínima noção do que fazer e com poucas perspectivas, a população escrava, agora liberta, se viu diante de um grande desafio com a chegada do novo século: a modernidade. De acordo com Lília Schwarcz, a emergência do racismo seria uma espécie de “troféu” dessa nova fase do país (Schwarcz 2019, 32).

Na virada do século XX, junto ao crescimento econômico no Brasil, passou a surgir, em algumas capitais, os primeiros grêmios, clubes e agremiações de negros com o objetivo de mobilizá-los socialmente. A imprensa negra, jornais escritos pelos próprios negros, passou a ocupar um lugar de destaque, já que abordava questões inerentes a essa população, especificamente. A partir dessas pequenas, mas significativas, movimentações — e para atender a demanda cada vez maior dos negros com relação ao seu papel na sociedade —, fundou-se, em 1930, a Frente Negra Brasileira (FNB), em São Paulo; o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944 no Rio de Janeiro; e o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), em 1978, na cidade de São Paulo2. A terceira fase do Movimento Negro, representado pelo MNU, teve sua luta temporariamente derrotada após o golpe civil-militar, quando os militantes foram acusados de criar um problema que supostamente não existia: o racismo (Domingues 2007, 111).

Os Movimentos Negros no Brasil, assim como qualquer outro movimento social que fosse considerado uma ameaça ao Estado, sofreu duras repressões durante o regime civil-militar. Sem desconsiderar as lutas anteriores ao Movimento Negro Unificado, as reivindicações feitas a partir de 1978 se reacenderiam através da insatisfação com as políticas do Estado para a população negra, além de persistirem na pauta por melhores condições de vida e, principalmente, na denúncia contra o racismo institucionalizado mascarado pela “democracia racial”. 

As Religiões Afro-brasileiras e a ditadura

Antes do processo de hibridismo3, o Candomblé e a Umbanda eram religiões duplamente reprimidas e tratadas como atividades marginais durante os anos iniciais do Estado Novo. Porém, a partir das décadas de 1960 e 1970, Reginaldo Prandi, ao analisar o processo de desenvolvimento do Candomblé e da Umbanda, salientou que “a intelectualidade brasileira de maior legitimidade nos anos 60 participaria ativamente de um projeto de recuperação de origens, que iria remeter muito diretamente à Bahia” (Prandi 1996, 74). Fabíola Souza destacou que, naquela década, a tiragem das publicações umbandistas e candomblecistas aumentou consideravelmente e “estima-se que em 1964 haveria mais de quatrocentos títulos de livros que tratavam das religiões de matriz africana” (Souza 2014, 39). 

A valorização da cultura passou a ser ordem vigente do governo autoritário do General-Presidente Emílio Garrastazu Médici e, através da dicotomia repressão e propaganda, “estabeleceu-se uma memória coletiva de um governo manipulador e uma sociedade cujo comportamento oscilava entre a ignorância/inocência e a vitimização” (Cordeiro 2012, 84). 

A ditadura civil-militar, entre 1968 e 1974, se mostrou bastante popular e a estratégia da propaganda e das comemorações da Independência do Brasil foram fundamentais para atrair as lideranças das casas religiosas afro-brasileiras. O momento da comemoração da Independência é tomado aqui como exemplo, porque todos queriam fazer parte de tal evento: associações civis e religiosas, mesmo que de forma indireta, apenas atendendo ao chamado do regime4. Outro fator importante a ser ressaltado sobre esse caráter comemorativo foi o ato de rememorar heróis e batalhas regionais, inclusive a Abolição da Escravidão.

É de suma importância ressaltar que as religiões afro-brasileiras foram alvos de perseguição do Estado até serem branqueadas e ressignificadas. Passadas por tais processos, a Umbanda e o Candomblé se tornaram símbolos nacionais durante o governo Vargas e, posteriormente, exemplos da “democracia racial” brasileira, a partir da década de 1970. 

Sobre esse período, Fabíola Souza observou que “a década de 1970, foi marcada pela otimização dos laços políticos da Umbanda com o governo ditatorial e com a Igreja, movimento que se entendeu aos cultos afro-brasileiros em geral” (Souza 2014, 43). Ainda de acordo com suas análises, “de 1974 a 1976 foi o momento culminante do crescimento da Umbanda e do Candomblé, com seus terreiros compondo 96,8% do total das unidades religiosas” (Souza 2014, 43). 

Conclusão

O que se seguiu ao dia 1° de abril de 1964 ficou marcado na história brasileira por se tratar de um período de perda de direitos políticos, perseguições e torturas, de maneira geral. Mas a ditadura civil-militar pôde ser sentida e vivenciada de diversas formas por setores sociais diferentes, principalmente se tratando dos Movimentos Negros e das comunidades religiosas de matriz africana.

Aparentemente, Movimento Negro e religiões afro-brasileiras podem estar intimamente relacionados pelo caráter de herança cultural que elas carregam. Entretanto, é possível constatar que movimentos negros, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, e comunidades religiosas de matriz africana foram assimilados de maneiras completamente diferentes pelos militares.

[1] Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira acreditam que o movimento ocorrido em 1° de abril de 1964, que acabou com a experiência democrática iniciada no final de 1945, foi um golpe civil e militar. O acréscimo do termo civil é fundamentado, tanto pelo apoio de parte expressiva da opinião pública ao golpe, quanto pela mobilização de líderes civis de oposição radical ao governo Jango, com o apoio militar, é claro. 

[2] Petrônio Domingues dividiu o Movimento Negro brasileiro em três fases através dessas organizações negras, sendo as mais analisadas pela historiografia. 

[3] Alguns autores, como Gilberto Freyre (2003), classificam essa mistura de elementos nos rituais religiosos de matriz africana como hibridismo. De acordo com esse autor, “híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural, que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado, no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado” […]. 

[4] Janaína Cordeiro levantou os conceitos de consenso e consentimento para demonstrar a complexidade dos comportamentos sociais diante de regimes autoritários e ditatoriais e, é através de tal estudo, que buscamos explicar o significativo crescimento da valorização das culturas afro-brasileiras durante o período analisado. 


Referências Bibliográficas:

DOMINGUES, Petrônio. 2007. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. São Paulo. 

FERREIRA, Jorge. GOMES, Ângela de Castro. 2014. 1964: O golpe que derrubou um presidente pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

PRANDI, Reginaldo. 1996. As religiões negras do Brasil – Para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros. Revista USP. São Paulo.

SOUZA, Fabíola Amaral Tomé. 2014. Do Congá ao Peji: A ascensão afro- religiosa na cidade de Barra Mansa na metade do século XX. Universidade Severino Sombra. Vassouras, RJ.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. 2019. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1° Ed.- São Paulo: Companhia das Letras.


Jéssica Lopes de Assis

Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestranda na Universidade Federal de Juiz de Fora. 


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Entre “Buonaseras Katuxas” e “Boas Tardes Itália”

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Noah Mancini | Entre “Buonaseras Katuxas” e “Boas Tardes Itália”

Resumo: O breve artigo pretende suscitar algumas intersecções culturais entre a população trans feminina brasileira e o território italiano, a partir de bordões viralizados na internet, oriundos de vídeos produzidos pelas mesmas. O artigo também conta com uma entrevista especial com Úrsula Scavolini.

Palavras-chave: buonasera katuxa; bom dia brasil boa tarde itália; Ursula Scavolini 

Riepilogo: Il breve articolo intende sollevare alcune intersezioni culturali tra la popolazione femminile trans brasiliana e il territorio italiano, dai tormentoni realizzati su internet, dai video da loro prodotti. L’articolo presenta un’intervista speciale a Úrsula Scavolini.

Parole chiave: buonasera katuxa; buongiorno brasile;buon pomeriggio italia; Ursula Scavolini; 

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Bom dia Brasil, Boa Tarde Itália. 

Que bela maneira para começar uma frase, ou um dia? Essas palavras foram popularizadas por Bambola Star, mulher transexual brasileira, que mantém perfil ativo nas redes sociais, compartilhando seu cotidiano na Itália, onde atualmente vive. Pouco tempo depois esse bordão estava sendo proferido por parte da população LGBTQIAP+ brasileira, possivelmente referenciando Bambola, mas também reproduzindo tal mensagem sem necessariamente saber sua origem.

Acredito que a facilidade com que isso aderiu à boca do povo – nas conversas de boates até comentários na internet – ao mesmo tempo em que deriva de uma ironização da condição de colonizado, em contexto subdesenvolvido, no recorte territorial do sul global, desvalorizado monetariamente, esse lugar que habitamos; ao mesmo tempo, repetindo essas palavras, tal mensagem busca interlocução cumprimentando dois países diferentes (Itália e Brasil), referenciando o fuso horário. Quando repetimos estas palavras, nos colocamos momentaneamente, em dizeres humorísticos, a par desse universo de sonho e pompa. Há também certa admiração, calcada no ovacionamento através da reprodução verbal, desses corpos que contrariaram a estatística do preconceito e do genocídio, e que a despeito de qualquer outra norma, banharam-se de luxo e beleza. 

Há parte de todo um fundamento transcestral que circulou por invernos e veraneios europeus, ruas e palacetes do antigo mundo ocidental. Vindas de cá, oriundas desta terra, atravessaram “novamente” o marítimo pela primeira vez. Em uma época onde as coisas eram mais difíceis, no que tange respeito à aceitação da diversidade de gênero e sexualidade, criaram bases a partir de referenciais escassos ou inexistentes.

(…) saíram do Brasil em virtude da situação de pobreza, muitas vezes associada à violência doméstica e/ou homo/transfóbica, outras viviam uma situação financeira estável, mas desejavam mais – viver em uma sociedade mais plural e menos preconceituosa, ter acesso a uma renda que lhes propiciasse bens materiais e possibilidades de modificações corporais. (AGNOLETI e SOUSA, 2013, p. 4)

Mas nem tudo são flores. Na verdade, há menos flores que os aromas podem aparentar. A estatística de extermínio não deixa de aparecer, na subalternização social desses corpos. Consequência de vários fatores como imigração latino-americana, falta de amparo governamental, prostituição como única alternativa, tais pontos encontram terreno para exercer e embasar, caminhar de mãos dadas com a transfobia que gorgeia por aqui e por lá. 

Em 2022, localizamos 2 travestis/mulheres transexuais brasileiras que foram assassinadas fora do país, uma na França e outra na Espanha. Ao longo dos últimos seis anos pudemos observar que entre 2017 e 2022, 12 (doze) travestis/mulheres trans foram assassinadas fora do Brasil, sendo 5 casos na Itália; 2 casos em Portugal; 2 casos na França e Espanha e; 1 caso na Bélgica. (BENEVIDES, 2023, p. 32)

Tal número não é apenas trágico como faz-se expressivo notar que essas informações são as que chegaram ao nosso acesso, uma vez que o apagamento de tais identidades e a omissão estatal atrapalham o levantamento de dados. Mas os dados não podem ser apenas por ruins fatores: a despeito de qualquer destino, elas foram dar o nome, botaram o pé na Europa e fazem questão de serem lembradas. Quando assistimos a esses registros de interações, comemorações da vida, podemos ver a presença e a potência dessas pessoas (seja através da indumentária, da expressão corporal), que se fizeram memoráveis, se fizeram história, documentaram-se, propagaram-se. Celebrazioni de si projetadas nel mondo.

Na transnacionalização de seus costumes, fundaram tradições que perpassam gerações das performatividades de gênero, perpetuando-se na cultura popular (e principalmente, no vocabulário LGBTQIAP+ brasileiro), possibilitando a existência de personalidades singulares e inspiradoras. Fizeram com que outras fossem depois, e que continuem indo, para que um dia talvez tomem para si países, condados, e coroem-se com seus devidos títulos de rainhas e principessas. Constituem parte da identidade cultural não só da América Latina, como também da Europa. 

(…) nas estratégias de resistência que surgem como dinâmicas de sobrevivências para garantir os modos inteligíveis e articular, nestas negociações, barganhas, discursos, rompimentos com as normas, com os fascismos existentes nos controles heteronormativos e sobre os gêneros. (SALES, 2018, p. 68)

Entre alguns dos bordões, ou memes, que viralizaram nos últimos anos, outro foi o “Buonasera Katuxa”, “Buonasera Natasha”, onde a anfitriã de cerimônias de uma festa televisionada (ocasião do aniversário de Bambola Star) cumprimenta Natasha Simonini, convidada do evento, ocorrido na Itália. Essa festa é outro exemplo dos costumes celebrativos e afetivos: em um tapete vermelho estendido frente à casa noturna, as convidadas chegam e são apresentadas ao vivo. Cada uma delas digna de elogios, de comentários belíssimos e produzidas à sua maneira, saem de carros que paralisam a rua frente ao local do evento.  Desfilam pela entrada, apresentam, são apresentadas, parlano, soccializano, brillano. A noite das estrelas, cerimonial de honra, porque ao menos por hoje, la vitta è dolce. 

Neste hall de registros documentais videográficos dos eventos, encontra-se o aniversário de Úrsula Scavolini, que também viralizou pela espontaneidade das convidadas e de suas performatividades e discursos. Com uma hostess que caminhou por toda a festa e interagiu com os presentes, presenciamos mais uma notória galeria da beleza. Intitulados “compleanno Ursula” e “surpresas da noite” na plataforma do Youtube, estão disponíveis publicamente. 

Ursula Scavolini é juiz-forana, e artista do espetáculo. Viveu décadas na Itália circulando seu trabalho pela Europa e na festa citada, dos vídeos citados anteriormente, ocorria o Troféu Scavolini, comemoração e premiação característicos do evento. Úrsula atualmente mora em Juiz de Fora e entre seus últimos trabalhos realizou o projeto “Xica Manicongo” (2022), pelo edital Fernanda Muller, da Lei Murilo Mendes.

Entrevista com Úrsula Scavolini

Noah Mancini: Como começou sua história com a Itália? 

Úrsula Scavolini: Minha história com a Itália começou em 89, quando uma grande amiga minha chegou de lá. Nesse período eu tinha cerca de 17 anos, vi ela chegando toda poderosa, e era uma pessoa muito admirada por mim. Brinquei com ela que gostaria de conhecer a Itália, daí ela me disse: “se você quiser a gente pode dar um jeito”. Meu interesse foi crescendo e junto a decepções que tive no Brasil, como a perda da minha mãe, achei que tinha que tomar uma decisão na minha vida e escolher um caminho melhor para mim. Foi assim que consegui, através desta minha amiga, chegar até a Itália. E assim fui. Em 90 eu viajei. Cheguei nessa Itália que eu achava que era tudo, a coisa mais linda do mundo. Realmente é um país muito lindo, mas não foi tudo aquilo que eu esperava, como na vida da gente tudo é muito difícil no começo, para mim houve muita dificuldade para me adaptar àquele país, sendo que nunca tinha ido para muito mais longe que Juiz de Fora.

No começo foi difícil, não tanto pelos italianos, mas sim pela minha integração no país, para aprender a conviver com um país completamente diferente do nosso.

Noah: Como você vê a imigração de pessoas transexuais brasileiras para o território europeu, e sobretudo italiano? 

Úrsula: Hoje em dia acho que é mais facilitado, depois que entrou a comunidade europeia tudo ficou mais fácil. Mas quando fui para a Itália foi tudo mais difícil, porque muitos países pediam visto. Você tinha que ter um motivo para chegar até lá, muitas amigas minhas não conseguiram entrar, muitas voltaram, muitas outras eles não aceitaram por saber que eram transexuais. Eu tive sorte porque eu ainda era menor de idade, tinha visto estudantil, e isso facilitou a entrada. Hoje em dia é mais fácil com a comunidade europeia, do momento que você entra no primeiro país, sua entrada também é válida para os outros países da comunidade. Antigamente não era assim.

Também acredito que é bastante visada a imigração na Itália, embora muitos pensem que transexuais vão para lá a serviço da prostituição – infelizmente, tem essa parte, que é muito pesada, – hoje em dia tenho amigas que têm casa própria, têm negócios na Itália, são casadas. Então vejo que mudou muito. Mas ainda tem um controle bem triste, triste, tem sempre uma desconfiança, né? Pessoas transexuais são paradas, controladas, perguntam se tem dinheiro, reserva de hotel, perguntam para onde vão, quando vão, aquela sólida burocracia. Temos um olho a mais em cima de nós, somos notadas a mais, tem um controle diferente, mas nada que possa te colocar aterrorizada a partir do momento que você não tem nada a esconder.

Noah: Quando você registrou seu aniversário em vídeo, qual foi sua principal motivação? Ele era exibido em algum canal / veículo de comunicação?

Úrsula: Começou assim essa história: eu nunca tive uma festa grande aqui no Brasil, nunca pude ter um aniversário grande, o meu sonho era poder fazer uma festa de aniversário. E com o passar do tempo na Itália, eu morava em um hotel que chamava Hermitage e ali também moravam muitas amigas minhas. Estava chegando a data do aniversário e uma amiga virou e falou comigo: “porque você não faz a sua festa?”. Foi quando conversei com o dono do hotel, ele autorizou, nós combinamos, e assim foi feito: minha primeira festa de aniversário aconteceu no hotel Hermitage, chamei minhas melhores amigas, foi uma festa grande, teve bolo, salgado, música, nós reunimos todas nós, muito chiques, porque na época não tinha tantas festas entre nós. Assim pegou essa mania, por que foi uma festa muita falada, o nome correu, muita gente comentou, veio gente de outra cidade, chamou a atenção. E durante os anos as pessoas começaram a me cobrar por esta festa. Todo ano tinha uma [amiga] diferente, elas faziam vestido, se ofereciam para fazer shows. Daí inventei essa história de dar um prêmio à mais elegante, dar um prêmio à que fez o espetáculo maior, à que se destacou mais, dava um prêmio para a que chegou de pouco tempo… e assim se tornou a estátua do Oscar. Nós começamos a fazer o Troféu Scavolini e todo ano no meu aniversário eu premiava algumas das minhas amigas. Esse evento durou por mais de 15 anos, realizei muitos sonhos, vi muitas amigas felizes. 

Através disto tive uma carreira muito boa na Itália, comecei a trabalhar como apresentadora, entrevistadora dos eventos, trabalhei num restaurante brasileiro que chamava Central do Brasil, na Toscana. Assim fui crescendo, fazendo amizades, conhecendo milhões de brasileiras que estavam ali naquele país. Começaram a vir amigas da Espanha, da Suíça, da França, para festejar comigo e receber essa famosa estatueta, que era uma estatueta sìmile ao do Oscar, onde buscávamos alegrar, celebrar, trazer alegria para o nosso meio, pois a maioria de nós estava sem a família, longe da família, e algumas nem família tinham. Fui pegando o carinho delas e até hoje sou uma pessoa muito querida e respeitada.

Noah: Quais foram as maiores alegrias e dificuldades ao residir em território italiano? 

Úrsula: A minha maior alegria foi a conquista da minha casa e a conquista dos meus bens, das coisas que vivi. Foi poder ajudar minha família, ajudar minha avó. Ajudar ela a ter casa própria, ajudar meus irmãos, dar mais possibilidade de vida à minha família que estava aqui no Brasil, e isso eu fiz com o maior carinho. Digo até que pensei muito porque fiz primeiro para eles e depois fiz para mim, então essa foi a maior alegria.

A maior tristeza, você vivendo fora, você não vive a família, eu não vivi a minha avó, não vivi a velhice dela, sofri muito com a perda dela, eu não vivi meu pai, não pude cuidar do meu pai, porque quando a gente sai de nosso país para ir a outro, a gente faz uma escolha, e isso custa muito pra gente. Eu tive luxo, eu tive felicidade, mas tive muita tristeza. Você tem que fazer essa troca: ou você tem sua família ou você tem o seu futuro. Na minha condição de transexual naquela época, eu não poderia escolher os dois porque nem daria. Mas acredito que Deus escreve certo por linhas tortas, meu destino era aquele. Hoje vivo no Brasil há quase cinco anos, não sei se voltarei à Itália, mas não tive também oportunidade de viver esse tempo que estou vivendo aqui no Brasil, principalmente com minha família. Mas fiz o que podia e o que não eu podia para fazer eles felizes, e tenho certeza que, onde estão, estão orgulhosos de mim. 

Atualmente sou casada no Brasil, tenho uma vida tranquila, tenho um marido maravilhoso, tenho doze chiuauas que são lindos, tenho vários amigos, sou uma pessoa querida, respeitada, e procuro fazer o bem às pessoas, me sinto uma pessoa realizada. Não sei se voltarei à Itália, pois penso daquela forma: “não vou cuspir para cima, pois pode cair na minha cabeça”. Se um dia precisar voltar, eu voltarei, mas planos, por enquanto, ainda não. 

Referências bibliográficas

Agnoleti, Michelle Barbosa e Sousa, Eduardo Sérgio Soares. 2013. A transmigração no espaço, no corpo e na subjetividade: deslocamentos de fronteiras na experiência travesti. 37º Encontro Anual da ANPOCS. Águas de Lindóia, São Paulo.

Benevides, Bruna. 2023. Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) – Brasília, DF: Distrito Drag.

Sales, Adriana Barbosa. 2018. Travestis brasileiras e escolas (da vida): cartografias do movimento social organizado aos gêneros nômades. Tese de doutorado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Faculdade de Ciências e Letras. Assis, São Paulo.


Referências bibliográficas:

BAMBOLA STAR KATUXA CLOSE BEST OF ANIVERSÁRIO. 2011. Gravações de arquivo disponibilizadas no canal de @CoseaCaso na plataforma do Youtube.

Acesso em:

COMPLEANNO URSULA. 2008. Gravações de arquivo disponibilizadas no canal de @werbetmodena na plataforma do Youtube.

Acesso em:

Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=ZoViw1DFHdY 

Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=0ibUhxfCn0o 

Parte 3: https://www.youtube.com/watch?v=_d_ikxuE4jg&t=376s 

SURPRESAS DA NOITE.2008. Gravações de arquivo disponibilizadas no canal de @werbetmodena na plataforma do Youtube.

Acesso em: 

Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=kSbrjtTQsgA 

Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=FhcZKVEyw-A

Parte 3: https://www.youtube.com/watch?v=s7W31UKBK1o 

Parte 4: https://www.youtube.com/watch?v=3MU4s_BBNcs

Noah Mancini

É Bacharel Interdisciplinar em Artes e Design pela UFJF, MBA em Comunicação e Marketing pela Descomplica e Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela UNESPAR (Bolsista Fundação Araucária). Desenvolve seus trabalhos entre o texto, o corpo e a imagem


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A Representatividade Indígena nas obras de arte na Philadelphia’s Centennial Exhibition de 1876: Estados Unidos e América Latina

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Júlia Delage Gomes Sabino | A Representatividade Indígena nas obras de arte na Philadelphia’s Centennial Exhibition de 1876: Estados Unidos e América Latina

Resumo: O presente artigo tem como intuito analisar e comparar as representações indígenas nas obras expostas na Centennial Exhibition de 1876. Sendo uma exposição internacional, compara-se às obras dos Estados Unidos, Argentina, México e Brasil.

Palavras-chave: Estados Unidos. América Latina. Representações indígenas. 

Abstract: This article aims to analyze and compare indigenous representations in the works exhibited at the Centennial Exhibition of 1876, being an international exhibition, it compares works from the United States, Argentina, Mexico and Brazil

Key words: United States. Latin America. Indigenous representation.

Riepilogo: Questo articolo si propone di analizzare e confrontare le rappresentazioni indigene nelle opere esposte all’Esposizione del Centenario del 1876, essendo una mostra internazionale, mettendo a confronto opere provenienti da Stati Uniti, Argentina, Messico e Brasile.

Parole chiave: Stati Uniti. America Latina. Rappresentazioni indigene.

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A Philadelphia Centennial Exhibition, também conhecida como Exposição Universal da Filadélfia, foi uma exposição internacional que ocorreu em 1876 para a comemoração do centenário da independência dos Estados Unidos. Para celebrar a data simbólica, decidiram que ela seria feita em uma das cidades mais simbólicas para o processo de independência: a Filadélfia.

A exposição contou com a contribuição de 37 países, assim como 200 construções contendo diversos tipos de exposição, como inovações tecnológicas, como o telefone de Graham Bell, apresentado pela primeira vez na Centennial Exhibition. As exposições principais da Centennial foram as de maquinários industriais e de agricultura, além da presença de exposições cartográficas, de indumentária, objetos para o lar,  aspectos culturais dos países, além de exposição da flora de alguns países, bem como exposições arquitetônicas. O intuito principal da exposição era mostrar o desenvolvimento tecnológico e as inovações, em especial dos Estados Unidos (GONÇALVES, 2015).

Para pensar as representações indígenas, o foco foi a análise das obras de arte expostas em um dos prédios construídos especialmente para a ocasião: o Memorial Hall, edifício temático das artes. Dos 37 países, foram analisadas as obras dos Estados Unidos e dos países da América Latina presentes: Brasil, Argentina e México.

Análise das representações

Através da catalogação das obras, o país com o maior número de obras expostas na Centennial foram os Estados Unidos, constando 1452 obras no total. Analisando as obras expostas, os Estados Unidos contavam com 20 obras que contêm representação indígena, tendo em vista que uma das obras expostas era um livro de aquarelas com 126 ilustrações da vida indígena (126 Illustrations of Indian Life), feitas por George Catlin. 

Destacam-se, além das aquarelas de Catlin, a existência de mais duas aquarelas que remetem a acontecimentos históricos da história dos Estados Unidos. Além disso, as pinturas a óleo também se concentram em acontecimentos históricos e no poema épico indianista A Canção de Hiawatha, constando uma coleção de pinturas de cenas do poema pela autoria de Thomas Moran.

Das esculturas, uma escultura avulsa e duas que fazem parte de um conjunto contêm representações indígenas: a escultura Atala, de Randolph Rodgers, que é a representação do personagem Atala do poema épica de mesmo nome; as duas esculturas de Miss Edmonia Lewis, Hiawatha’s Marriage e Old Arrow Maker and his daughter (O Casamento de Hiawatha e O Velho Flecheiro e sua filha), ambas inspiradas no poema épico A Canção de Hiawatha. É importante destacar que Edmonia Lewis é a única mulher afro-indígena presente entre os artistas, sendo uma das primeiras (KARAHALIOS, 2021). Podemos perceber que os poemas épicos são um tema comum, além das cenas históricas.

De representações indígenas brasileiras, foram encontradas 3 obras: duas esculturas de Rodolfo Bernardelli, À Espreita e Saudade da Tribo, de tema indianista, e a pintura a óleo de Victor Meirelles, Primeira Missa no Brasil, uma pintura histórica. Nas 34 obras catalogadas da República Argentina, todas são pinturas a óleo e não há representações indígenas.

Por fim, foram analisadas as que representavam o México: El interior de Arca de Noé, de Joaquín Ramírez, um pintor indígena, sendo a obra uma alegoria da nação do México; La Muerte de Atala, de Luis Monroy, inspirada no poema épico Atala; Cristóbal Colón antes los Reyes Católicos, de Juan Cordero, pintura de cunho histórico; Benito Juárez Presidente, de Joaquín Escudero y Espronceda, retrato do presidente mexicano Benito Juárez, indígena.

De forma geral, percebe-se o indígena em grande parte das obras, a presença indígena como estereotipada, o selvagem, parte da natureza, aquele que necessita do homem branco para fazer parte da história e da cena; ou como o personagem heróico épico de valores europeus na pele de um homem indígena.

Nos Estados Unidos, nas obras em que são retratadas cenas históricas, os indígenas são colocados como coadjuvantes da história, aprendendo com os homens brancos, como em obras de missionários, ou como selvagens agressivos, como em quadros que retratam a captura de personagens brancos da história. O protagonismo indígena esteve presente em obras baseadas em histórias épicas, onde o personagem indígena possui os valores de um herói europeu. Por fim, existem também obras que retratam o cotidiano indígena, geralmente colocando-os como parte da natureza, ou como algo para documentação científica.

Quando se observam as obras brasileiras percebe-se algo parecido, a pintura histórica presente mostra o indígena como coadjuvante, enquanto o padre branco que reza a missa tem o protagonismo da cena (BAPTISTA, 2019). As esculturas de Rodolfo Bernardelli têm tema indianista, um movimento que busca exaltar o Brasil e os povos nativos, mas de uma forma idealizada pelos brancos (SILVA, 2009). 

Dentre as obras mexicanas, apesar de existirem representações que reforçam esse estereótipo, como La muerte de Atala (A morte de Atala), que se inspira no poema épico, havia obras como El interior del Arca de Noé (O interior da Arca de Noé) , que coloca o indígena na identidade nacional mexicana, que é pintado da perspectiva indígena, não tirando o espaço de outros, mas reivindicando a identidade indígena, que de fato tem fortes influências dos povos nativos. O protagonismo indígena também é notado, tendo em vista o retrato de Benito Juárez, o primeiro presidente mexicano de origem indígena (VILLARREAL, 2016).

É possível perceber, através das análises dos quadros, que a representatividade indígena nas obras reafirma os estereótipos dos nativos, em especial as obras dos Estados Unidos e do Brasil, enquanto as do México se distanciam desses estereótipos. Esses estereótipos são perpetuados desde o início do processo de conquista e colonização e são reforçados, ainda que de formas diferentes do século XIX em que a Centennial ocorreu (GONÇALVES, 2015).


Referências bibliográficas:

BAPTISTA, Marco Antonio. 2019.A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles: algumas influências e a cópia de Sebastião Vieira Fernandes. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 2, jul.-dez. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/mab_missacopia.htm. 18/07/2023.

International exhibition 1876 official catalogue. Filadélfia, 1876: Centennial Catalogue Company by John R. Nagle. Domínio público, disponível em:https://hdl.handle.net/2027/gri.ark:/13960/t9z10b76g. Acesso em 05/06/2023.

GONCALVES, John. , 2015.The Philadelphia Centennial Exposition of 1876: The Perpetuation of Native American Stereotypes. Providence.

GUSTIN, Kelsey. 2015. Building Babel: The 1876 International Exhibition at the Philadelphia Centennial. Boston. In: Sequitur, vol. 2 n. 1. p. 1 – 7. Disponível em: http://www.bu.edu/sequitur/2015/12/01/gustin-babel (Acesso em 12/05/2020)

HUHNDORF Shari Michelle. 2002. Going Native: Indians in the American Cultural Imagination. Nova York: The Journal of American History. p. 678.

KARAHALIOS, Vasiliki. 2021. Form, presence, and the performative body: Edmonia  Lewis’s Hiawatha Series, 1865-1873. Utah: Universidade de Utah.

MANTHORNE, Katherine. 2014. Curating the Nation and the Hemisphere: Mexico and Brazil at the US Centennial Exposition, 1876. Nova York. In: Journal of Cultural Studies, vol. 2 n. 2 e 3. p 175-193.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. 1994. Imagens da nação, do progresso e da tecnologia: a Exposição Universal da Filadélfia. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.2 p.151-167 jan./dez. 

PUCKETT, John L. Gender and Race at the Centennial Exposition. Sem data. Disponível em: West Filadélfia Collaborative History – https://collaborativehistory.gse.upenn.edu/stories/gender-and-race-centennial-exposition. Acesso em 20/06/2023.

SILVA, Maria do Carmo Couto da. 2009.  A propósito de três esculturas de Rodolfo Bernardelli: a Baiana (1886), o Retrato de Negro (1886) e o Túmulo de José Bonifácio (1888-89). 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/mc_bernardelli.htm>. Acesso em 18/06/2023.

TRENNERT, Robert A. 2021. “Popular Imagery and the American Indian: A Centennial View.” New Mexico Historical Review n. 51 vol. 3 

VILLARREAL, Paulina Bravo. 2016. La Patria mexicana:¿El cuerpo de la soberanía o la soberanía sobre el cuerpo? Reflexiones en torno a dos obras de Petronilo Monroy.  NIERIKA. REVISTA DE ESTUDIOS DE ARTE, Año 5, Núm. 9, enero-junio.

Yan Liu. 2017. Imagination and Construction of Cultural Identity: A Comparative Study of Different Reports on the 1876 Philadelphia Centennial Exposition, Comparative Literature: East & West, 1:1, 11-24


Júlia Delage Gomes Sabino

Bacharela em História com ênfase em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente é mestranda em História na UFJF.


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O que é a sociologia (e sua importância enquanto ciência) 

Revista Casa D’Italia – Ano 4, n. 36, 2023 – ISSN: 2764-0841 | Juiz de Fora, Minas Gerais
Marco Antônio S. Monteiro |O que é a sociologia (e sua importância enquanto ciência) 

Resumo: Breve ensaio a respeito da sociologia — seu surgimento histórico, seu conceito enquanto ciência autônoma e sua importância para a humanidade, esta justificada na visão de Pierre Bourdieu pela possibilidade de o sociólogo “manipular e gerir a ordem estabelecida”. Porém, é feita uma pequena ressalva quanto ao risco de não se seguir tal perspectiva com certa cautela.

Palavras-chave: Sociologia; Ciências Sociais; Metodologia; Pierre Bourdieu. 

Abstract: Brief essay about sociology – its historical emergence, its concept as an autonomous science and its importance for humanity, justified in Pierre Bourdieu’s view by the sociologist’s ability to “manipulate and manage the established order”. However, a small reservation is made regarding the risk of not following this perspective with some caution.

Key words: Sociology; Social Sciences; Methodology; Pierre Bourdieu.

Riepilogo: Breve saggio sulla sociologia: il suo emergere storico, il suo concetto di scienza autonoma e la sua importanza per l’umanità, giustificati, secondo Pierre Bourdieu, dalla capacità del sociologo di “manipolare e gestire l’ordine costituito”. Tuttavia, viene fatta una piccola riserva sul rischio di non seguire questa prospettiva con una certa cautela.

Parole chiave: Sociologia; Scienze sociali; Metodologia; Pierre Bourdieu.

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Aristóteles dizia que o homem, antes de tudo, é um animal político. Um animal político e racional. Entretanto, poderíamos completar essa definição afirmando que o homem, além de ser animal político e racional, também é um animal social. Vivemos nossas individualidades nos relacionando com outros indivíduos. Fazemos parte de complexos organismos: comunidades, cidades, países, continentes e, nas últimas décadas, com o avanço da tecnologia, somos capazes de nos conectar facilmente com nações que se encontram do outro lado do planeta. 

Essas relações entre pessoas que vivem em colaboração mútua, buscando objetivos comuns, são o que formam as sociedades. E a sociologia surge como ciência no século XIX justamente para estudar as dinâmicas das relações sociais, com método próprio e objetivos específicos que a definem e a diferenciam de outras ciências. 

Vale ressaltar que o estudo das organizações sociais existe na filosofia desde os gregos, porém não contava com o método científico da sociologia. Em várias passagens de sua República, Platão descreve a forma como entende e imagina uma sociedade. Aristóteles, em Ética a Nicômaco e em Política, também tece estudos a respeito das relações sociais. E assim, na história da filosofia, vamos encontrando diversos pensadores que se debruçaram sobre problemas e hipóteses a respeito das relações sociais humanas. Da antiguidade clássica à idade média, e chegando à era moderna. 

Vemos Hobbes, Locke e Rousseau conjecturando sobre um “contrato social” imaginário, que regularia a relação da sociedade com o Estado que a governa. Passando por Kant e Hegel, e tantos outros pensadores, que muito contribuíram para os estudos sobre o corpo social, alcançamos Karl Marx, um filósofo que hoje também é considerado um clássico do pensamento sociológico.

Entretanto, Marx não se preocupou em desenvolver um rigor científico específico para o estudo social. Ele era um filósofo suis generis, mas ainda assim partia da metodologia filosófica do materialismo histórico para estudar as questões que propunha. A primeira tentativa de se criar uma ciência social veio com Auguste Comte que, seguindo seu ideal positivista, iniciou um projeto de metodologia para o estudo científico da sociedade. Foi o embrião daquilo que Emile Durkheim, com bastante influência de Comte, aprimorou ao ponto de definir como sociologia e de conseguir tornar tal ciência uma cátedra universitária. Ou seja, o início da sociologia como ciência autônoma aconteceu na França do século XIX.

 No início do século XX, na Alemanha, existe outro nome que dá contribuições decisivas para o método científico da sociologia: Max Weber. Seu método mais subjetivista e focado na ação social propõe uma nova perspectiva sociológica, diferente da preocupação objetivista durkheimiana em observar os fatos sociais. 

Dessa forma, temos como referências clássicas para o estudo da sociologia Durkheim, Weber e Marx (este, apesar de filósofo — e apesar de sua controversa ideia revolucionária comunista —, apresentou uma análise da sociedade tão importante que é incluído nessa tríade de pensadores clássicos). A partir de então, no decorrer do século XX e em nosso século, a sociologia segue se desenvolvendo e novas perspectivas são apresentadas dia após dia, mantendo sua importância científica e nos apresentando diversos autores com ideias inovadoras, aos quais chamamos de sociólogos.

Mas, afinal, como podemos definir a sociologia?

A sociologia é uma ciência: possui metodologia própria, com observação empírica, e é eminentemente racional. Tem como fim o estudo das interações humanas, das estruturas e das instituições no âmbito social, propondo questões, estabelecendo hipóteses e buscando respostas, tudo isso pautado pelas regras metodológicas que possui (e que a legitimam enquanto ciência), de modo a produzir descrições e interpretações da sociedade. 

Max Weber conceitua a sociologia como “uma ciência que pretende compreender, interpretando, a ação social e, deste modo, explicá-la casualmente no seu desenvolvimento e nos seus efeitos” (Weber, 2022, p. 36). Se substituirmos “ação social” por “fato social”, teremos uma definição de caráter durkheimiano. É importante lembrar que Durkheim via o fato social como um objeto. Não por acaso, uma de suas frases memoráveis é a seguinte: “A primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas” (Durkheim, 2007, p. 15).

Outro ponto importante é diferenciar “sociologia” e “ciências sociais”, pois esta possui caráter mais abrangente, englobando antropologia e ciência política. A antropologia estuda principalmente a cultura e a simbologia de indivíduos e pequenos grupos, com um enfoque também voltado às etnias. A ciência política se dedica ao estudo do fenômeno político por meio das próprias estruturas políticas. A sociologia pode estudar fenômenos políticos também, mas pela perspectiva das relações sociais. Por isso, muitas vezes ciência política e sociologia se confundem ou dialogam entre si. Também a antropologia pode ser útil ao sociólogo e até mesmo se amalgamar à pesquisa sociológica. Da mesma forma, outras áreas das ciências humanas — como história e direito — dialogam muito bem com a sociologia.  

George Simmel, grande sociólogo contemporâneo de Weber, apontava que a sociologia tem como objetivo investigar “o que ocorre com os seres humanos e segundo que regras eles se movimentam (…) quando eles, em virtude de seus efeitos mútuos, formam grupos e são determinados por essa existência em grupo” (Simmel, 2006, p. 19). Pierre Bourdieu, sociólogo francês de atuação mais recente (entre meados e final do século XX), afirmava que a sociologia “tenta oferecer o que ninguém verdadeiramente lhe pede, isto é, a verdade sobre o mundo social” (Bourdieu, 2019, p. 50). 

Bourdieu nos mostra que a sociologia, além de ser uma ciência por excelência — em razão de possuir “sistemas coerentes de hipóteses, conceitos, métodos de verificação, tudo o que geralmente atribui-se à ideia de ciência” — também é um ofício desconfortável porque, ao examinar as estruturas e relações sociais, identifica problemas que muitas vezes se encontram escondidos ou negligenciados pela sociedade: “a sociologia, sem cessar, confronta aquele que a pratica a realidades difíceis; ela desencanta” (Bourdieu, 2019, p. 24). 

Porém, é justamente nesse “desconforto” da atividade sociológica que reside sua grande importância. A sociologia permite que identifiquemos questões, muitas vezes urgentes, de mazelas sociais que, ao serem identificadas, podem ser tratadas e “curadas”. Bourdieu também propõe uma sociologia mais engajada, que não busca apenas “compreender o mundo social, no sentido de compreender por compreender”, mas sim uma sociologia que procura “técnicas para manipulá-lo [o mundo social], colocando assim a sociologia a serviço da gestão da ordem estabelecida” (Bourdieu, 2019, p. 29).

Obviamente, essa proposta de Bourdieu deve ser observada com muita cautela, afinal, utilizar-se da ciência para “manipular” o mundo social pode ser um risco, caso o sociólogo caia naquilo que o cientista político Mark Lilla chama de “Sedução de Siracusa”, quando intelectuais se aliam ao poder político para tentar modificar a realidade e acabam gerando graves crises (Lilla, 2017, p. 167 – 169). Mesmo com essa ressalva, podemos admitir que Bourdieu demonstra que a sociologia é uma ciência relevante e com finalidades muito proveitosas. Exercida com sabedoria e não caindo na “sedução” do poder, ela se torna uma ferramenta humana formidável.


Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2019.

DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

LILLA, Mark. A Mente Imprudente: Os Intelectuais na Atividade Política. Rio de Janeiro: Record, 2017.

SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Lisboa: Edições 70, 2022.


Marco Antônio S. Monteiro

Doutorando em ciências sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, na linha de pesquisa Cultura, Democracia e Instituições. Mestre em direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Advogado inscrito na OAB-MG.


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